Opinião

A autonomia universita¡ria novamente sob ataque
A pretensa utilidade da apropriaa§a£o indevida de recursos para o governo estadual determinou a sua equivocada e destrutiva estratanãgia, camuflada pela aparaªncia de equacionamento de danãficit ora§amenta¡rio.
Por Nina Ranieri - 20/08/2020


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A história se repete. Gestores paºblicos não gostam da autonomia financeira das universidades públicas nem se preocupam com a sua sobrevivaªncia em condições adequadas. O projeto de lei que “estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equila­brio das contas públicas” (PL 529/2020), encaminhado pelo governo do Estado ao Legislativo paulista, mais uma vez confirma essa constatação ao prever a transferaªncia de recursos pra³prios das três universidades estaduais e da Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp), a tí­tulo de supera¡vit, para conta única do era¡rio.

Lembro outros dois episãodios assemelhados: o primeiro, no governo federal, relativo ao contingenciamento de verbas das universidades públicas, seguido da apresentação do projeto de lei do Future-se (atual PL 3.076/2020). Inicialmente enviada ao Congresso em julho de 2019, a polaªmica proposição não prosperou devido a inúmeros problemas jura­dicos e institucionais. Para as universidades, o Future-se era antes um “vire-se” que uma solução racional para os seus problemas cra´nicos de gestão, com grave restrição da autonomia universita¡ria. O atual projeto, entre outras medidas, pretende estimular a captação de recursos financeiros paºblicos adicionais pelas universidades federais, por meio de contratos de resultados, mas não enfrenta dificuldades estruturais dessas instituições, como a definição de fontes de recursos financeiros e garantia de ora§amento previsível. Se já não hárecursos para repasses regulares osinclusive pela opção de financiamento priorita¡rio das Fora§as Armadas no ora§amento de 2021, que dira¡ de recursos adicionais…

O segundo episãodio émais antigo. Como já registrado por Direto da Ciência, data de 2007, quando o governo do Estado editou o Decreto Declarata³rio nº 1/2007, que excepcionou as universidades estaduais osUSP, Unesp e Unicamp –, bem como a Fapesp, do regime regular do Siafem, dadas as suas peculiaridades de organização e funcionamento. Diz o seu artigo 3º:

A execução ora§amenta¡ria, financeira, patrimonial e conta¡bil das Universidades Paºblicas Estaduais serárealizada em tempo real no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Munica­pios osSiafem/SP, nos termos do Decreto nº 51.636, de 9 de mara§o de 2007, sem prejua­zo das prerrogativas asseguradas no artigo 54, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que lhes facultam regime financeiro e conta¡bil que atenda a s suas peculiaridades de organização e funcionamento.

Para¡grafo aºnico osNo exerca­cio de sua autonomia financeira as Universidades Paºblicas Estaduais podera£o efetuar transferaªncias, quitações, e tomar outras providaªncias de ordem ora§amenta¡ria, financeira e patrimonial necessa¡rias ao seu bom desempenho, na forma do inciso VII, do artigo 54, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

O secreta¡rio da Fazenda a  anãpoca era Mauro Ricardo Costa, atualmente secreta¡rio estadual de Projetos, Ora§amento e Gestão.

Inconformismo com a autonomia

O que ambos os episãodios revelam, em tempos e circunsta¢ncias distintos, éo desejo, por parte do Poder Executivo, de apropriação dos recursos financeiros das universidades, além de ceticismo e inconformismo com a autonomia universita¡ria assegurada no artigo 207 da Constituição. No caso das universidades estaduais paulistas, háum dado adicional: não háno Brasil osnem em nenhum lugar do mundo osmodelo de financiamento com repasse regular de verbas públicas (9,57% da arrecadação la­quida do Imposto sobre Circulação de Mercadorias, Servia§os e Transportes osICMS), em duodanãcimos mensais.

O modelo, originalmente previsto no Decreto nº 29.598/1989, foi sucessivamente mantido e teve os recursos ampliados por leis ora§amenta¡rias anuais, mas sempre incomodou os gestores das finana§as estaduais (e mesmo parlamentares, haja vistas a  CPI instaurada em 2019 pela Assembleia Legislativa do Estado de Sa£o Paulo osAlesp, sob uma alegação osinvera­dica osde irregularidades na gestãodas três universidades paulistas).

O episãodio federal exemplifica a postura ta­pica dos canãticos diante da autonomia; no caso do Estado de Sa£o Paulo, a dos inconformados. Os primeiros, acostumados com o centralismo no campo educacional e administrativo, ao invanãs de tomar a autonomia como a capacidade de se autodirigir, e atémesmo de se autoprover, a consideram um entrave para a gestãogovernamental, particularmente em anãpocas de crise. O indescrita­vel ex-ministro Weintraub e sua assessoria são canãticos paradigma¡ticos, que se valeram atémesmo de nota­cias falsas para promover suas convicções ideola³gicas. Mas não apenas eles; o corte dos recursos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) pelo Ministanãrio da Ciência, Tecnologia e Inovação, em 17 de agosto, vai na mesma direção.

Os inconformados, a seu turno, concordam com uma autonomia tutelada, destinada a tornar a instituição eficiente e facilitar aspectos administrativos, mas não aceitam a autonomia financeira e ora§amenta¡ria. Entendem que os ganhos acadaªmicos e cienta­ficos não justificam tão ampla autonomia administrativa e de gestãofinanceira e patrimonial. Tais reclamos são o resultado da presença do Estado numa área em que a promoção do desenvolvimento cienta­fico, social e econa´mico se faz a longo prazo, ao custo de pesados investimentos paºblicos. Apesar de evidente, não édemais frisar que, na atual crise sanita¡ria, não fossem as universidades, institutos e agaªncias públicas de fomento a  pesquisa, não haveria como fazer frente ao desenvolvimento de pesquisas e medidas capazes de minorar seu impacto. De fato, as três universidades, juntas, respondem por um tera§o da pesquisa cienta­fica nacional indexada em bases de dados internacionais.

Entre os inconformados, destacam-se a secretaria de Estado da Fazenda e Planejamento e a de Projetos, Ora§amento e Gestão, entre outras, para as quais não se justifica a existaªncia, no corpo da Administração Indireta, de entes com regime financeiro e ora§amenta¡rio diferenciado. Tambanãm nos conselhos de Educação nacional estaduais não háclareza quanto a  extensão das prerrogativas da autonomia, seja em matéria curricular, seja no atendimento de programas governamentais, por exemplo.

Estatuto jura­dico especial

Juridicamente, as universidades públicas não são órgãos paºblicos como os demais, justamente em razãode sua autonomia, prevista no artigo 207 da Constituição. Sua natureza jura­dica éespeca­fica. Essa posição foi reala§ada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ao definir processos e elencos particularizados de ações auta´nomas nas áreas do ensino, da administração e de gestãofinanceira.

Por todas essas razões éque a LDB, em seu artigo 54, fala em “estatuto jura­dico especial” para as universidades públicas. A autonomia époder derivado e deve ser exercido nos limites específicos de sua outorga. a‰ o efeito de uma limitação que a lei impaµe a si mesma, de uma abstenção proposital do legislador. Autonomia não ésoberania, nem significa independaªncia, mas poder funcional derivado, submetido ao ordenamento jura­dico que lhe deu causa. Ou seja: o ente que recebe autonomia submete-se, regra geral, ao ordenamento jura­dico, ressalvadas algumas situações nas quais o pra³prio ordenamento jura­dico lhe atribui o poder de se autorregular.

A despeito desse regime jura­dico ter sido definido em 1988, pois não éque estamos, novamente, diante de mais um ataque a  autonomia das universidades estaduais paulistas? Sem entrar na análise das motivações que levaram o governo do Estado a apresentar o PL 529/2020, misturando alhos com bugalhos no intuito de minimizar o danãficit ora§amenta¡rio para 2021, o fato éque paira enorme ameaça a  autonomia financeira das universidades paulistas, com graves prejua­zos jura­dicos, pola­ticos e institucionais. Os primeiros, provocados pela flagrante inconstitucionalidade da medida, a que se seguira¡ intensa judicialização; os segundos, pela possí­vel derrota da estratanãgia das secretarias da Fazenda e de Planejamento e de Projetos, Ora§amento e Gestão, como já ocorreu com o Decreto Declarata³rio de 2007; e os prejua­zos institucionais, pela insegurança nas instituições, com reflexos na sua produção acadaªmica e cienta­fica, além dos já causados pela pandemia da covid-19. Toda essa situação desencadeia ta¡ticas defensivas, não cooperativas, por parte dos grupos afetados e tende a relativizar o Direito em sua generalidade abstrata.

Este éum jogo em que todos perdem. Ainda que conflitos de interesses sejam naturais nas sociedades humanas, o curioso, neste caso, éque a apropriação dos ditos “supera¡vits” osinexistentes nas universidades públicas e na Fapesp posto não haver recursos excedentes, leva ao paradoxo de o Estado tirar com uma ma£o o que deu com a outra. A pretensa utilidade da apropriação indevida de recursos para o governo estadual determinou a sua equivocada e destrutiva estratanãgia, camuflada pela aparaªncia de equacionamento de danãficit ora§amenta¡rio. O tiro pode sair pela culatra, a  vista da crescente valorização social das universidades, institutos e agaªncias de pesquisa paºblicos nesses tempos de pandemia. Tal reconhecimento demonstra que a população valoriza ciaªncia, tecnologia e educação. Os parlamentares certamente sabera£o captar esse sentimento, em acertada estratanãgia de ganha/ganha.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Nina Ranieri
Professora associada da Faculdade de Direito da USP e coordenadora da Ca¡tedra Unesco de Direito a  Educação

 

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