A pretensa utilidade da apropriaa§a£o indevida de recursos para o governo estadual determinou a sua equivocada e destrutiva estratanãgia, camuflada pela aparaªncia de equacionamento de danãficit ora§amenta¡rio.

Reprodução
A história se repete. Gestores paºblicos não gostam da autonomia financeira das universidades públicas nem se preocupam com a sua sobrevivaªncia em condições adequadas. O projeto de lei que “estabelece medidas voltadas ao ajuste fiscal e ao equilabrio das contas públicas†(PL 529/2020), encaminhado pelo governo do Estado ao Legislativo paulista, mais uma vez confirma essa constatação ao prever a transferaªncia de recursos pra³prios das três universidades estaduais e da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp), a título de supera¡vit, para conta única do era¡rio.
Lembro outros dois episãodios assemelhados: o primeiro, no governo federal, relativo ao contingenciamento de verbas das universidades públicas, seguido da apresentação do projeto de lei do Future-se (atual PL 3.076/2020). Inicialmente enviada ao Congresso em julho de 2019, a polaªmica proposição não prosperou devido a inúmeros problemas juradicos e institucionais. Para as universidades, o Future-se era antes um “vire-se†que uma solução racional para os seus problemas cra´nicos de gestão, com grave restrição da autonomia universita¡ria. O atual projeto, entre outras medidas, pretende estimular a captação de recursos financeiros paºblicos adicionais pelas universidades federais, por meio de contratos de resultados, mas não enfrenta dificuldades estruturais dessas instituições, como a definição de fontes de recursos financeiros e garantia de ora§amento previsível. Se já não hárecursos para repasses regulares osinclusive pela opção de financiamento priorita¡rio das Fora§as Armadas no ora§amento de 2021, que dira¡ de recursos adicionais…
O segundo episãodio émais antigo. Como já registrado por Direto da Ciência, data de 2007, quando o governo do Estado editou o Decreto Declarata³rio nº 1/2007, que excepcionou as universidades estaduais osUSP, Unesp e Unicamp –, bem como a Fapesp, do regime regular do Siafem, dadas as suas peculiaridades de organização e funcionamento. Diz o seu artigo 3º:
A execução ora§amenta¡ria, financeira, patrimonial e conta¡bil das Universidades Paºblicas Estaduais serárealizada em tempo real no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municapios osSiafem/SP, nos termos do Decreto nº 51.636, de 9 de mara§o de 2007, sem prejuazo das prerrogativas asseguradas no artigo 54, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que lhes facultam regime financeiro e conta¡bil que atenda a s suas peculiaridades de organização e funcionamento.
Para¡grafo aºnico osNo exercacio de sua autonomia financeira as Universidades Paºblicas Estaduais podera£o efetuar transferaªncias, quitações, e tomar outras providaªncias de ordem ora§amenta¡ria, financeira e patrimonial necessa¡rias ao seu bom desempenho, na forma do inciso VII, do artigo 54, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
O secreta¡rio da Fazenda a anãpoca era Mauro Ricardo Costa, atualmente secreta¡rio estadual de Projetos, Ora§amento e Gestão.
Inconformismo com a autonomia
O que ambos os episãodios revelam, em tempos e circunsta¢ncias distintos, éo desejo, por parte do Poder Executivo, de apropriação dos recursos financeiros das universidades, além de ceticismo e inconformismo com a autonomia universita¡ria assegurada no artigo 207 da Constituição. No caso das universidades estaduais paulistas, háum dado adicional: não háno Brasil osnem em nenhum lugar do mundo osmodelo de financiamento com repasse regular de verbas públicas (9,57% da arrecadação laquida do Imposto sobre Circulação de Mercadorias, Servia§os e Transportes osICMS), em duodanãcimos mensais.
O modelo, originalmente previsto no Decreto nº 29.598/1989, foi sucessivamente mantido e teve os recursos ampliados por leis ora§amenta¡rias anuais, mas sempre incomodou os gestores das finana§as estaduais (e mesmo parlamentares, haja vistas a CPI instaurada em 2019 pela Assembleia Legislativa do Estado de Sa£o Paulo osAlesp, sob uma alegação osinveradica osde irregularidades na gestãodas três universidades paulistas).
O episãodio federal exemplifica a postura tapica dos canãticos diante da autonomia; no caso do Estado de Sa£o Paulo, a dos inconformados. Os primeiros, acostumados com o centralismo no campo educacional e administrativo, ao invanãs de tomar a autonomia como a capacidade de se autodirigir, e atémesmo de se autoprover, a consideram um entrave para a gestãogovernamental, particularmente em anãpocas de crise. O indescritavel ex-ministro Weintraub e sua assessoria são canãticos paradigma¡ticos, que se valeram atémesmo de notacias falsas para promover suas convicções ideola³gicas. Mas não apenas eles; o corte dos recursos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) pelo Ministanãrio da Ciência, Tecnologia e Inovação, em 17 de agosto, vai na mesma direção.
Os inconformados, a seu turno, concordam com uma autonomia tutelada, destinada a tornar a instituição eficiente e facilitar aspectos administrativos, mas não aceitam a autonomia financeira e ora§amenta¡ria. Entendem que os ganhos acadaªmicos e cientaficos não justificam tão ampla autonomia administrativa e de gestãofinanceira e patrimonial. Tais reclamos são o resultado da presença do Estado numa área em que a promoção do desenvolvimento cientafico, social e econa´mico se faz a longo prazo, ao custo de pesados investimentos paºblicos. Apesar de evidente, não édemais frisar que, na atual crise sanita¡ria, não fossem as universidades, institutos e agaªncias públicas de fomento a pesquisa, não haveria como fazer frente ao desenvolvimento de pesquisas e medidas capazes de minorar seu impacto. De fato, as três universidades, juntas, respondem por um tera§o da pesquisa cientafica nacional indexada em bases de dados internacionais.
Entre os inconformados, destacam-se a secretaria de Estado da Fazenda e Planejamento e a de Projetos, Ora§amento e Gestão, entre outras, para as quais não se justifica a existaªncia, no corpo da Administração Indireta, de entes com regime financeiro e ora§amenta¡rio diferenciado. Tambanãm nos conselhos de Educação nacional estaduais não háclareza quanto a extensão das prerrogativas da autonomia, seja em matéria curricular, seja no atendimento de programas governamentais, por exemplo.
Estatuto juradico especial
Juridicamente, as universidades públicas não são órgãos paºblicos como os demais, justamente em razãode sua autonomia, prevista no artigo 207 da Constituição. Sua natureza juradica éespecafica. Essa posição foi reala§ada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ao definir processos e elencos particularizados de ações auta´nomas nas áreas do ensino, da administração e de gestãofinanceira.
Por todas essas razões éque a LDB, em seu artigo 54, fala em “estatuto juradico especial†para as universidades públicas. A autonomia époder derivado e deve ser exercido nos limites específicos de sua outorga. a‰ o efeito de uma limitação que a lei impaµe a si mesma, de uma abstenção proposital do legislador. Autonomia não ésoberania, nem significa independaªncia, mas poder funcional derivado, submetido ao ordenamento juradico que lhe deu causa. Ou seja: o ente que recebe autonomia submete-se, regra geral, ao ordenamento juradico, ressalvadas algumas situações nas quais o pra³prio ordenamento juradico lhe atribui o poder de se autorregular.
A despeito desse regime juradico ter sido definido em 1988, pois não éque estamos, novamente, diante de mais um ataque a autonomia das universidades estaduais paulistas? Sem entrar na análise das motivações que levaram o governo do Estado a apresentar o PL 529/2020, misturando alhos com bugalhos no intuito de minimizar o danãficit ora§amenta¡rio para 2021, o fato éque paira enorme ameaça a autonomia financeira das universidades paulistas, com graves prejuazos juradicos, polaticos e institucionais. Os primeiros, provocados pela flagrante inconstitucionalidade da medida, a que se seguira¡ intensa judicialização; os segundos, pela possível derrota da estratanãgia das secretarias da Fazenda e de Planejamento e de Projetos, Ora§amento e Gestão, como já ocorreu com o Decreto Declarata³rio de 2007; e os prejuazos institucionais, pela insegurança nas instituições, com reflexos na sua produção acadaªmica e cientafica, além dos já causados pela pandemia da covid-19. Toda essa situação desencadeia ta¡ticas defensivas, não cooperativas, por parte dos grupos afetados e tende a relativizar o Direito em sua generalidade abstrata.
Este éum jogo em que todos perdem. Ainda que conflitos de interesses sejam naturais nas sociedades humanas, o curioso, neste caso, éque a apropriação dos ditos “supera¡vits†osinexistentes nas universidades públicas e na Fapesp posto não haver recursos excedentes, leva ao paradoxo de o Estado tirar com uma ma£o o que deu com a outra. A pretensa utilidade da apropriação indevida de recursos para o governo estadual determinou a sua equivocada e destrutiva estratanãgia, camuflada pela aparaªncia de equacionamento de danãficit ora§amenta¡rio. O tiro pode sair pela culatra, a vista da crescente valorização social das universidades, institutos e agaªncias de pesquisa paºblicos nesses tempos de pandemia. Tal reconhecimento demonstra que a população valoriza ciaªncia, tecnologia e educação. Os parlamentares certamente sabera£o captar esse sentimento, em acertada estratanãgia de ganha/ganha.
*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva
do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do
maisconhecer.com
Nina Ranieri
Professora associada da Faculdade de Direito da USP e coordenadora da Ca¡tedra Unesco de Direito a Educação