Opinião

Um desencontro de dois gigantes da literatura brasileira
Falecido em 1953, Graciliano não conheceu Rosa na plenitude do Corpo de baile e do Grande sertão: veredas, publicados exatamente em 1956.
Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo - 23/08/2020


Reprodução

Ano que vem completam-se 75 anos da publicação de Sagarana, o primeiro livro de Joa£o Guimara£es Rosa. Sa£o nove contos, ambientados no sertão mineiro, escritos e reescritos durante muitos anos atéserem apresentados ao paºblico, em 1946, quando Rosa já beirava os 40 anos.
Eu conheci esse livro muito tarde.

Nãotive maturidade para laª-lo de verdade quando estudava para os vestibulares. Sa³ fui aproveitar mesmo quando já estava avana§ado no curso de Hista³ria da FFLCH. Pelas ma£os do professor Marcos Silva, li dois contos do Sagarana: o preferido da cra­tica e do autor os“A hora e vez de Augusto Matraga” ose aquele que, em minha opinia£o (opinia£o de quem simplesmente gosta, sem maiores estudos), éum dos textos mais belos, inspirados e desconcertantes que já li: “Conversa de bois”. Gosto tanto que meus sogros me deram de presente uma versão do carro de bois do conto esculpida em madeira por um artesão do cerrado mineiro.

No embalo, li o livro todo e, depois, fui para o Grande sertão: veredas, que reli anos depois, quando um colega do curso de Direito, também da USP, me soprou: “No julgamento do ZéBebelo tem todas as correntes jura­dicas representadas, olha la¡!!!”. Olhei, e redescobri o livro. Recentemente, comecei a ler de novo essa obra por conta de uma viagem que fiz com dois camaradas pelo norte de Minas Gerais, justamente para ver de perto o sertão rosiano. Leio, releio e o livro nunca termina de dizer o que tem para dizer, para lembrar a imagem de atalo Calvino sobre os cla¡ssicos.

Claro que a paisagem daquele sertão não émais a mesma e claro que um grande escritor não éum mero bom redator de descrições. O pra³prio Rosa disse divertir-se quando lhe chamavam “regionalista” por descrever com beleza o pa´r do sol sertanejo quando sua inspiração viajava por muitas outras terras. Na carta que escreveu ao editor da primeira edição de Sagarana disse que as histórias ali narradas poderiam se ambientar em qualquer lugar, embora ele tenha preferido que seus personagens estivessem no sertão e falassem sua la­ngua:

“Porque tinha muitas saudades de la¡. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, a¡rvores. Porque o povo do interior ossem convenções, ‘poses’ osda¡ melhores personagens de para¡bolas: la¡ se veem bem as reações humanas e a ação do destino: la¡ se vaª bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes a¡rvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca”, escreveu.

Na viagem, eu queria me deslumbrar um pouco imaginando como um escritor tirou poesia daquilo que a maioria de nosdeixa passar despercebidamente. Um pouco de permissão a  ingenuidade, recomendada nesse caso. Saa­mos de Cordisburgo, cidadezinha onde Rosa nasceu, e fomos atéJanua¡ria, antiga “princesa do norte”, cobia§ada e atacada por exanãrcitos de jaguna§os. Fizemos contato com aquele Brasil, mudado, mas ainda o mesmo que inspirou a história do menino Tia£ozinho, guia do carro de bois que carregava o cada¡ver de seu pai, sob o comando do cruel Agenor Soronho, enquanto os oito bois expressam, na sua “conversa”, a fragilidade da arroga¢ncia humana, o peso do inexora¡vel, a força da ação do destino.

Mas uma das histórias mais interessantes de Sagarana não estãono livro. Em seu enredo háum escritor que nunca havia publicado e o jua­zo duro de um consagrado mestre.

Rosa concluiu uma primeira versão da obra em 1938. Com o pseuda´mino “Viator”, a inscreveu em um concurso litera¡rio com um tí­tulo simples: Contos. Tratava-se de uma versão bem diferente da que foi publicada oito anos mais tarde, em 1946, mas já trazia aspectos que o tornariam inconfunda­vel. Na composição do jaºri do concurso estava ninguanãm menos que Graciliano Ramos, já o autor consagrado de Sa£o Bernardo, Angaºstia e Vidas secas, que viria a paºblico naquele mesmo ano.

No final, Graciliano votou contra a vita³ria dos textos de Rosa, que ficou com um segundo lugar. Rosa nunca disse que foi por isso, mas deixou passar mais oito anos antes de publicar uma versão reescrita, já com o tí­tulo de Sagarana.

Graciliano, que não conhecia a identidade de Viator, escreveu mais tarde que passou muito tempo procurando aquele autor. “Eu desejava sinceramente vaª-lo crescer, talvez convencer-me de que me havia enganado preterindo-o. Afinal os julgamentos são preca¡rios ose naquele ta­nhamos vacilado. Eu, pelo menos, vacilara”, confessou.

Quando, enfim, em 1944, dois dos maiores escritores da literatura brasileira do século XX encontraram-se pessoalmente, o tema foi aquele concurso. Naquele momento, Graciliano já era Graciliano, mas Rosa ainda não era Rosa.

O dia¡logo, somado a alguns comenta¡rios elogiosos ao que seria o primeiro livro de Rosa, nos foi transmitido numa crônica de Graciliano publicada posteriormente em Linhas tortas:

“osO senhor figurou num jaºri que julgou um livro meu em 1938.
osComo era o seu pseuda´nimo?
osViator.
osAh! O senhor éo médico mineiro que andei procurando.
[…]

osSabe que votei contra o seu livro?
osSei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me diante de uma inteligaªncia livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e a  cra­tica.
[…]

Esse doloroso interesse de surpreender a realidade nos mais leves pormenores induz o autor a certa dissipação naturalista osmovimentar, por exemplo, uma boiada com vinte adjetivos mais ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um pouco nas descrições. Se isto édefeito, confesso que o defeito me agrada.
A arte de Rosa éterrivelmente difa­cil. Esse antimodernista repele o improviso. Com imenso esfora§o escolhe palavras simples e nos da¡ impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de caboclo, uma conversa cheia de provanãrbios matutos. O seu dia¡logo érebuscadamente natural: desdenha o recurso ingaªnuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexaµes, e aproximar-se, tanto quanto possí­vel, da la­ngua do interior”.

Graciliano finalizou seu texto com uma afirmação que se revelou profanãtica: “Certamente ele fara¡ um romance, romance que não lerei, pois, se for comea§ado agora, estara¡ pronto em 1956, quando os meus ossos comea§arem a esfarelar-se”.

Falecido em 1953, Graciliano não conheceu Rosa na plenitude do Corpo de baile e do Grande sertão: veredas, publicados exatamente em 1956.

“Graças a Deus, tudo émistanãrio.”

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Alexandre Ganan de Brites Figueiredo
Mestre e doutor pelo Prolam/USP e pa³s-doutorando na FEA-RP/USP

 

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