Opinião

Por que as universidades são importantes?
O olhar ma­ope se fecha aos dados e a s histórias e personagens, sejam pessoas ou cidades, que de fato revelam as mais importantes contribuia§aµes das universidades públicas no nossopaís.
Por Peter Schulz - 26/08/2020


Doma­nio paºblico

Universidades existem háquase um milaªnio. Se volta¡ssemos no tempo com a visão atual, talvez não reconhecaªssemos as poucas que existiam no século XII como universidades, afinal elas se modificaram bastante. As universidades atuais, todas distintas umas das outras, guardam, no entanto, identidades entre si (senão não as chamara­amos de universidades), elas hoje são mesclas diferentes de alguns modelos, que se desenvolveram a partir do século XIX, e dependem de onde e quando se instalam. O que salta aos olhos da Hista³ria éque se nasceram hámais de 900 anos e se espalharam por todo o mundo éporque são promotoras do desenvolvimento diverso em cada um dos seus lugares.

Estranhamente, apesar dessa diversidade, na virada do século, muitos osdentro e fora das universidades osparecem querer que as universidades sejam todas iguais e apenas melhores ou piores em uma ranãgua duvidosa. a‰ o apego crescente a uma contabilidade, os rankings, que transforma todas elas em corredores de 100 metros rasos em busca de medalhas, quando, na verdade, mistura-se nisso halterofilistas com nado sincronizado. Atenção, a analogia atéque éboa: atividades totalmente diferentes, mas modalidades de uma coisa, esporte. Atentas, empresas de rankings, que são um nega³cio com apurado senso de marketing, criam rankings para, aparentemente, contemplar isso, como o Ranking de Impacto do Times Higher Education, com uma metodologia algo obscura e coleta de dados idem<[I]. Esquecendo, portanto, esses rankings, que ora servem para promover, ora para subsidiar ataques contra elas (usando também outra contabilidade, a dos cifraµes), para que servem as universidades?

Universidades são abrangentes em suas missaµes e complexas na realização delas. Na abertura de um ensaio sobre exatamente para que servem as universidades, Geoffrey Boulton e Colin Lucas antecipam a questãode fundo e o enfrentamento do momento[II]

 “a‰ o complexo e interagente todo da universidade que éa fonte dos distintos benefa­cios econa´micos, sociais, culturais e utilita¡rios apreciados pela sociedade. Ela precisa ser entendida, valorizada e administrada como um todo. Essas percepções são um desafio direto não apenas para governos, mas também para gestores universita¡rios, que tem sido ou assombrados ou seduzidos pela lógica inadequada que estãolevando a demandas que universidades não podem satisfazer, enquanto obscurecem suas mais importantes contribuições”.

E complementam o manifesto:

“O desafio [interno e externo a s universidades] épermitir autonomia sem uma accountability opressiva, e dar a estudantes e docentes a liberdade para pensar, especular e pesquisar. Essas são as condições essenciais para a criatividade individual e coletiva que são as fontes dos benefa­cios mais amplos e intensos da universidade para sua sociedade.”

a‰ preciso responder a  pergunta do tí­tulo escapando, portanto, da accountability, que obscurece as mais importantes contribuições. Levando em conta a diversidade das universidades, podera­amos considerar que sua importa¢ncia seja uma identidade comum, assim, algo que valha no Reino Unido, talvez se aplique aqui com adaptações.

No artigo “Sete maneiras pelas quais universidades beneficiam a sociedade”, Jean-Paul Addie relata exemplos brita¢nicos de como as “universidades transformam suas vizinhana§as, cidades, regiaµes epaís”. Faa§o aqui esse exerca­cio para a universidade em que me formei e vim a trabalhar como docente, a Unicamp. Boa parte dos exemplos são repetidos isoladamente em diferentes ocasiaµes e faz parte do exerca­cio vaª-los juntos.

Na lista de benefa­cios, o primeiro dos sete éque universidades são motores econa´micos. No artigo publicado no The Conversation[III], o vianãs são os empregos e a atividade econa´mica gerados pela existaªncia da universidade em si. Isso acontece para qualquer organização, mas aquelas com fins lucrativos seguem seus planos de nega³cio e não um compromisso com a sociedade. Universidades com fins lucrativos muitas vezes fecham ou mudam de lugar. Por outro lado, as universidades públicas (e as poucas sem fins lucrativos aqui no Brasil) permanecem. Afinal, aquelas criadas hánove séculos continuam la¡ onde surgiram. Mas existe um outro fator: universidades também criam empresas. No caso da Unicamp, o que salta (ou deveria saltar) aos olhos, são suas empresas filhas, um exemplo que écitado frequentemente. Ironicamente e apesar do alerta acima, esse benefa­cio éjustamente percebido por um exerca­cio de contabilidade, que, no entanto, revela em vez de obscurecer. A percepção vem de um cadastro crescente das empresas fundadas por ex-alunos, muitas a partir de projetos desenvolvidos enquanto se formavam e incubadas na Universidade[IV]. A última contagem chega a 717 empresas ativas que geram mais de 30 mil empregos e que no conjunto faturam anualmente mais do que 3 vezes o ora§amento da Unicamp. Cerca de metade das empresas localizam-se na regia£o de Campinas e 86% atuam no estado de Sa£o Paulo, onde recolhem impostos, o que precisa ser lembrado por aqueles que sempre exigem a tal accountability, baseados em argumentos sem nenhuma accountability.

O segundo dos sete benefa­cios apontados para o Reino Unido éo de que as universidades transformam seu entorno e suas cidades. Por aqui vale pensar um pouco sobre o distrito de Bara£o Geraldo, onde o primeiro campus da Unicamp começou a funcionar em 1970. Naquele ano a população do distrito era de 10 mil habitantes. Cinco anos depois eram 15 mil[V]. Hoje são 50 mil habitantes, portanto a população do distrito aumentou mais que o dobro da média brasileira no período. Mas Bara£o Geraldo não éum “distrito dormita³rio”, éum centro de lazer e cultura, com equipamentos culturais dentro do campus da universidade e fora dele, envolvendo ações de membros da comunidade universita¡ria. Depois da Unicamp vieram a Bara£o um dos campi da Pontifa­cia Universidade Cata³lica de Campinas e o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações nos mesmos anos 1970. Nas décadas seguintes foi inaugurado o campus do atualmente chamado Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (que hoje conta com o Sirius, o maior e mais sofisticado laboratório de pesquisas da Amanãrica Latina), o primeiro centro de processamento de dados do Banco Santander na Amanãrica do Sul, além de outras instituições, sejam de alta tecnologia ou de ensino superior. Outra contabilidade a ser feita.

Benefa­cio três: a universidade atrai talentos! A Unicamp atrai estudantes de dezenas depaíses, em particular dos nossos vizinhos. a‰ uma tradição em que a minha experiência pessoal se insere. Orientei vários estudantes depaíses andinos, alguns voltaram a seus lugares de origem para fazer ciência por la¡, outros ficaram e pesquisam por aqui e alguns passaram a contribuir para a ciência na Europa. E a tradição segue: segundo o último anua¡rio estata­stico[VI], 287 estudantes de mestrado e 527 de doutorado estrangeiros estudavam e pesquisavam na Unicamp em 2018.

Os dados do para¡grafo acima se relacionam diretamente como o quarto benefa­cio das universidades, tanto na Europa, quanto por aqui: construção de laa§os internacionais. Um benefa­cio diretamente ligado ao ensino e a pesquisa desenvolvida na Universidade.  Recorrendo novamente a uma contabilidade, podemos ter uma ideia da intensidade desses laa§os. Segundo a última edição do Ranking de Leiden, 40,8% dos artigos cienta­ficos da Unicamp entre os anos 2015 e 2018 são em colaboração com instituições de outrospaíses[VII]. Em números absolutos são 5027 resultados de pesquisas tornadas públicas e oriundos desses laa§os.

Seguindo adiante na lista de benefa­cios no artigo inglês, temos que as universidades ajudam a enfrentar problemas sociais.  Pensando na Unicamp, o que vem a  mente de imediato éa área da saúde. Os hospitais e outras unidades de atendimento da universidade, ou por ela administrados, prestam atendimento pelo SUS a uma população de mais de seis milhões de habitantes. Em 2018 foram mais de um milha£o de consultas e 61 mil intervenções cirúrgicas, sendo que o Hospital das Cla­nicas realizou 365 transplantes nesse ano. Contabilidade que parece que nunca élembrada pelas autoridades éque o Sistema ašnico de Saúde não cobre o total dos recursos necessa¡rios para que a população seja atendida. Boa parte dos recursos vem do ora§amento da universidade e de suas reservas, que ora estãoameaa§adas de confisco.

A lista de enfrentamentos de problemas sociais éampla, mas o contexto da crise sanita¡ria devido a  pandemia da Covid-19 evidencia a releva¢ncia da ciência e do comprometimento social da universidade. Apesar do sub financiamento, a Unicamp administra mais leitos de UTI do que várias capitais dopaís[VIII].  A mobilização de cientistas da Unicamp resultou, em apenas duas semanas de esforços, no medicamento do Hospital das Cla­nicas para a realização de testes diagnósticos do chamado Padra£o Ouro da Organização Mundial da Saúde. Traªs meses depois esses testes diagnósticos já atendiam 40 munica­pios da regia£o e comunidades vulnera¡veis[IX].

No conjunto de benefa­cios aparecem também o fomento da criatividade e do debate aberto e a melhoria da qualidade de vida de quem tem acesso a  universidade. O fomento a  criatividade já se anunciou acima com os equipamentos culturais da Unicamp, mas que surge também espontaneamente em outros de seus Espaços, como na sua Praça da Paz. Ao longo da história da universidade, podemos lembrar que um professor da Unicamp tornou a Sinfa´nica de Campinas numa das orquestras mais reconhecidas do Brasil e outros docentes criaram o primeiro curso de graduação em música popular do Brasil. A Unicamp leva a³pera ao interior do estado e pea§as de teatro ao mundo.

O debate aberto marcou seus anos iniciais, como lembrado por revista de circulação nacional[X], com a manchete “A Unicamp ensina opaís a pensar”. O debate seguiu nas décadas seguintes com encontros hoje hista³ricos e agora pode ser acompanhado nos semina¡rios remotos “Conversas na crise osdepois do futuro”, promovidos pelo Instituto de Estudos Avana§ados[XI].

Por fim, a educação superior melhora a qualidade de vida de quem a recebe. No Reino Unido, lembrando o artigo sobre os sete benefa­cios,país completamente diferente do Brasil, educação superior ainda épromotora de mobilidade social. Aqui esse papel éainda mais fundamental e as políticas de inclusão social da Unicamp se ampliaram nos últimos anos. E hoje, com o vestibular inda­gena, atraa­mos talentos não apenas depaíses vizinhos, mas também de nações dentro do nosso territa³rio.

 A accountability serásempre incompleta, mas eu convido amigos e colegas para que fazm esse exerca­cio para outras universidades públicas do Brasil. a‰ importante e urgente para evitar os assanãdios falaciosos constantemente sofridos. Entender o impacto social das universidades ainda se localiza no a¢mbito acadêmico de propostas metodola³gicas e alguns poucos estudos de caso[XII]. a‰ preciso ampliar e institucionalizar a iniciativa. Boulton e Lucas lembram que “governos em todo mundo acertadamente consideram as universidades como fundamentais para a realização de muitas das prioridades nacionais”. Nãoéo que estãoacontecendo no Brasil. O olhar ma­ope se fecha aos dados e a s histórias e personagens, sejam pessoas ou cidades, que de fato revelam as mais importantes contribuições das universidades públicas no nossopaís.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Peter Schulz
Ex-professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em peria³dicos especializados em Fa­sica e Cienciometria, dedica-se a  divulgação cienta­fica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade.

 

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