Opinião

Deus? Reflexaµes sobre a féem tempos de pandemia
As experiências vividas por todos nós, permite-nos saber que quase sempre o isolamento nos leva a reflexões das mais pueris, atépensarmos seriamente em nossa própria existaªncia.
Por Waldenyr Caldas - 05/09/2020


Doma­nio paºblico

Nesse interregno pandaªmico em nosso cotidiano, onde boa parte da população foi compelida pela necessidade e o bom senso a ficar reclusa, confesso que, por motivos pessoais, como tantas outras pessoas, fiquei também um pouco reca´ndito e reflexivo. As experiências vividas por todos nós, permite-nos saber que quase sempre o isolamento nos leva a reflexões das mais pueris, atépensarmos seriamente em nossa própria existaªncia. a‰ bastante prova¡vel que muitas cabea§as no mundo, nesse momento, tenham passado por esse processo de reflexa£o e muitas outras ainda estejam a refletir sobre o que estamos vivendo. Aqui em nosso Paa­s, émais fa¡cil poder afirmar isso. Afinal, estamos acossados por uma pandemia aga´nica e devastadora que parece não cessar mais. De acordo com a OMS, cientistas e especialistas em infectologia, este va­rus não desaparecera¡ propriamente. Podera¡, isto sim, diminuir sua agressividade e incidaªncia, mas permanecera¡ entre nós. Seja como for, éalgo muito assustador termos que conviver com um sinistro mensageiro da morte, ainda que debilitado.

Como tantas outras pessoas no mundo, vejo nossa liberdade de aproveitar a vida reprimida por um va­rus extremamente virulento, oportunista e com fome de morte, que vem desafiando todo o conhecimento cienta­fico acumulado pelo homem aténossos dias. A ciência sabe muito pouco sobre ele. Mas, não éuma “gripezinha” como disse nosso presidente que, logo depois de seu pronunciamento, também foi contaminado e constatou na prática , por experiência própria, seu erro de avaliação desse terra­vel inimigo paºblico. As autoridades mundiais das organizações de saúde não se entendem, se contradizem, e a ressonância disso nospaíses éa desinformação acerca de um procedimento mais eficiente. Todos devem lembrar que, no ini­cio da pandemia, as instruções das autoridades era para que não usa¡ssemos ma¡scaras. Depois de poucas semanas o aconselhamento era usar ma¡scaras. Atualmente, o uso delas éobrigata³rio e em alguns estados e cidades brasileiras ganhou até“status” de lei, sob pena de pesada multa para quem não o fizer. Ora, éclaro que essas instruções desencontradas e desconectadas umas das outras, no caso do nossopaís, criam uma situação de insegurança reforçada ainda em grande escala pelo poder Executivo do Estado, seguramente o maior aliado dessa pandemia. Diante desse quadro nebuloso, surge a esperana§a de uma vacina ainda em fase de testes, mas com boas chances de tornar-se realidade em futuro pra³ximo. Atéla¡, meu caro leitor, ficaremos na expectativa de dias melhores para sairmos do caos que nos foi imposto pelo impondera¡vel.

a‰ bem verdade que a Raºssia já tornou sua vacina uma realidade. Mas, dividida sobre o assunto, parte da comunidade cienta­fica internacional recebeu com muita cautela essa nota­cia, usando o argumento de que os russos “pularam” etapas dos testes de eficiência da vacina que podem eliminar os eventuais efeitos negativos no corpo humano. Nãoéessa a interpretação dos cientistas russos. O governo de Vladimir Putin estãotão seguro do sucesso desta vacina, que já iniciou o processo de vacinação da população. Ao mesmo tempo, épreciso ver com cautela esta surpresa da comunidade cienta­fica internacional. Nãose pode afirmar com certeza, mas lamentavelmente, tudo indica que esta conquista cienta­fica dos russos vem ganhando contornos pola­ticos e mercantis. Afinal, de uma forma ou de outra, a vacina russa certamente diminuira¡ a demanda de outras vacinas fabricadas no ocidente, o que não seria nada conveniente para as empresas empenhadas na produção de uma vacina. E mais: não podemos subestimar a vaidade de governantes depaíses poderosos do ocidente. a‰ bastante prova¡vel, por exemplo, que Estados Unidos, Inglaterra ou Frana§a, ficassem ainda mais orgulhosos de sua supremacia pola­tica e cienta­fica, do seu poderio econa´mico, ao serem os primeiros a apresentarem esta preciosa vacina para a humanidade. Esse acontecimento, sem daºvida, aumentaria ainda mais o “status” internacional de um dessespaíses, não são entre a comunidade cienta­fica internacional, mas também junto a grande parte da população mundial. Seja como for, épreciso ter em mente que a conquista russa éalgo ainda bastante incipiente em face da magnitude planeta¡ria desta pandemia. O fato éque nesse momento, todos estãoprecisando de todos. A solidariedade precisa sobrepor-se a  vaidade e a  gana¢ncia mercantil. Tanto no ocidente quanto no oriente, pessoas estãosendo dizimadas diariamente.

Pois bem, mas diante da real e iminente ameaça de morte, em um misto de desespero, sofrimento e agonia por verem seus parentes e amigos sendo ceifados por um inimigo invisível que pode surgir a qualquer momento, de qualquer lado, em qualquer lugar durante as vinte e quatro horas do dia, as pessoas invocam a proteção de Deus. a‰ o que resta a muitos milhões de seres humanos aflitos. Com pouqua­ssimas exceções, as autoridades públicas já não merecem o cranãdito necessa¡rio nem mesmo para aliviar a angaºstia de quem espera a morte, ou a nota­cia sobre ela de um parente arquejante e asfixiado no leito do Hospital a  espera de um respirador artificial para tentar postergar o dia fatal para sua vida ou, enfim, seu renascimento. a‰ possí­vel que o trabalho incessante dos cientistas em todo o mundo possa vir aliviar esse medo e essa angaºstia coletiva, com a criação da vacina capaz de extirpar este grande mal. Os russos parecem ter dado o pontapéinicial. Assim que celebrarmos essa conquista o mundo podera¡ respirar aliviado. Enquanto isso não acontece, teremos que conviver com os limites de uma situação sobre a qual não temos controle, e procurar todas as formas de amenizar a expectativa dessa luta selvagem entre “Eros e Thanatos”, entre nosso corpo e este terra­vel inimigo invisível que representa a morte e nos ameaça a todos.

A crueldade deste cena¡rio reaviva e torna mais presente a força das religiaµes, da crena§a, da onipotaªncia e da onipresença de Deus. a‰ a forma que as pessoas encontram para ter esperana§a, mas também a guarida contra o possí­vel sofrimento e dor pela morte do seu ente querido. a‰ a procura do consolo e atéde um certo ala­vio, porque afinal, “Deus quis assim…”. a‰ necessa¡rio entender e respeitar essa crena§a. Immanuel Kant já nos alertava da necessidade moral de acreditarmos em Deus, e logo abaixo discutiremos essa questão. Embora reze a Constituição que o Estado brasileiro élaico, ou seja, oficialmente imparcial no tocante a s questões religiosas, garantindo plena liberdade a todos os credos, a predomina¢ncia em nossopaís se faz pelo catolicismo. Para nós, não émais são uma questãode religiosidade, ela étambém cultural. Desde a mais tenra idade, já somos dirigidos no a¢mbito familiar a conhecer o credo cata³lico e a reconhecer na figura de Deus, a autoridade suprema sobre todas as coisas.

a‰ compreensa­vel, portanto, que em momentos de dor e agonia, procuremos o consolo na figura deste ser supremo, entendendo que “Deus quis assim”. Esta éuma frase bastante recorrente entre pessoas quando perdem seus entes queridos. Algumas, a s vezes aténão verbalizam, mas se resignam pensando dessa forma. A decisão de Deus, nesse caso, serve de consolo para que a filha assimile a morte de seu pai, de sua ma£e ou de qualquer um ente querido. Deus, por ser onipotente e onipresente anã, portanto, a única e lega­tima autoridade suprema que pode decidir, por exemplo, pela morte ou não, de qualquer pessoa se assim entender. Nãopor acaso, um provanãrbio da sabedoria popular, “o futuro a Deus pertence”, se tornou tão popular não apenas no Brasil, mas também em outrospaíses. Ele énada mais que um produto da Fanã. Embora saibamos ser a morte um processo natural da vida, ainda assim, ela nos causa comoção, tristeza, sofrimento e dor. Mas, a força para superar esse momento estãona proteção de Deus.

Esta crena§a plena e convicta na figura de Deus estãopresente em todas as religiaµes, desde os tempos mais remotos da civilização. Uma das melhores obras sobre esse tema éo livro de Richard Holloway, intitulado Uma breve história da Religia£o. Já o livro de John Hawkins, Hista³ria das Religiaµes, não menos importante, da¡ conta de uma pesquisa muito bem realizada e analisa as conexões entre religia£o e filosofia enfatizando as origens e a evolução de religiaµes como o Islamismo, Cristianismo, Budismo, entre outras. Vamos comentar um pouco dessa trajeta³ria, mas com o foco no bina´mio religia£o/filosofia.

Mesmo antes de Tales de Mileto e de outros fila³sofos pré-socra¡ticos, como Empanãdocles e Dema³crito, ou seja, quando ainda não havia propriamente o que se pode chamar de racioca­nio filosãofico, a prevalaªncia da religiosidade restringia-se a uma espanãcie de visão mitola³gica do mundo. Os ensinamentos religiosos eram transmitidos de uma geração para outra baseada no que hoje se conhece como mito, cujo objetivo era narrar histórias de deuses para tomarmos consciência de que a vida são poderia ser mesmo como era e nada mais. Nãohavia outras explicações. Parmaªnides (530 a.c. os460 a.c.), por exemplo, acreditava que tudo o que havia no Universo sempre existiu e que nada poderia surgir do nada. E, apesar de todo o desenvolvimento e aprimoramento dos estudos filosãoficos, da pesquisa cienta­fica e de outros saberes, os conceitos sobre a existaªncia de Deus, ou da entidade Deus, permanecem da mesma forma que há600 a.c., quando todas as explicações e crena§as religiosas passavam pela ideia ma­tica de Apolo e Hera, Hefaistos e Diona­sio, Zeus e Asclanãpio, Atena e Heracles, entre outros deuses ma­ticos.

Por outro lado, não devemos atribuir aos fila³sofos a responsabilidade de explicar a existaªncia de Deus. Alia¡s, mais do que sua própria existaªncia, nos perguntamos: de onde veio Deus? Nãose deve cometer nenhuma forma de injustia§a, especialmente algo dessa magnitude. Deixemos os fila³sofos filosofarem, isto éprimordial para a civilização, éo grande alimento e esta­mulo da alma. Atéporque, não hámesmo como sabermos da existaªncia ou não de Deus, tanto quanto de onde ele veio. Mas, ainda assim, RenéDescartes (1596-1650), herdeiro do racionalismo de Parmaªnides foi mais longe que seu antecessor. O fila³sofo grego tinha consigo a certeza de que reside na razãohumana o verdadeiro instrumento de conhecimento do mundo. Mesmo com toda essa convicção, Parmaªnides foi um dos muitos fila³sofos a defender que são nossa razãonão seria suficiente para provar a existaªncia de Deus. Hera¡clito (c.540-470 a.c), seu contempora¢neo, vai nessa mesma direção, mas acrescenta que existe uma “razãouniversal” (em alguns momentos ele fala em “lei universal”) a qual todos nosdevemos seguir. Uma espanãcie assim do “imperativo catega³rico” de Immanuel Kant, quando formulava seu conceito de “lei moral”, ou seja, um conjunto de fatores anãticos (ele chamava de “anãtica do dever”) e comportamentais indispensa¡veis para termos boa sociabilidade e interação social, enfim, para convivermos bem em sociedade. a‰ claro que o conceito de “imperativo catega³rico” em Kant émultifacetado, épolissaªmico, mas por enquanto, para este ensaio o que foi colocado acima parece ser o suficiente. Já Hera¡clito, contempora¢neo de Parmaªnides deixa de lado a palavra “Deus” e emprega o termo grego “logos” que significa raza£o. Ele acreditava na existaªncia de uma “lei universal” segundo a qual todos os homens deveriam seguir, orientar-se, muito embora individualmente cada um de nosdevaªssemos nos guiar por nossa própria raza£o.

Bem mais tarde e em outro contexto hista³rico, afinal já viva­amos o período do Renascimento Cultural, RenéDescartes em suas reflexões sobre o “ser perfeito”, fala da existaªncia de Deus. Para ele a perfeição não poderia ser algo criado pelo homem porque, afinal, somos imperfeitos e, como tal, a perfeição nos seria inacessa­vel. Dessa maneira, são um ser perfeito poderia gerar outro ser igualmente perfeito. Pois bem, énesse momento que Descartes justifica a existaªncia de Deus na condição de um ser perfeito. Talvez em face da forte presença do cristianismo nessa anãpoca, pode-se perceber em suas reflexões, a ideia de onipotaªncia e onipresença de Deus. Assim, se temos a ideia do que venha a ser um ser perfeito, então estamos pressupondo que ele existe. Atéporque, para o racionalismo cartesiano, como somos imperfeitos, a ideia de perfeição não poderia mesmo surgir entre nós. Quando este fila³sofo fala da alma, que para ele significa consciência pura, e da matéria que não possui consciência, estãoclaro que esses elementos são provenientes de Deus. Afinal, são Deus como ser perfeito poderia criar algo harmonizando a alma e a matéria.

Para Immanuel Kant (1724-1804), no entanto, a Féreligiosa, a crena§a, implica necessariamente na existaªncia de Deus. Isso se da¡ justamente no momento em que nem nossa raza£o, nem nossa experiência, ainda que agindo simultaneamente, seriam capazes de chegar a tal objetivo e explicar a Fédivina. Para ele, a não explicação, a falta de argumentos convincentes sobre a existaªncia de Deus criaria um espaço para a Féreligiosa. A partir dessa situação, portanto, crer ou não crer na existaªncia de Deus seria algo a ser deixado por conta da Fédo homem, ou seja, de cada um de nós. Quem tem Féevidentemente acredita, quem não a tem não acredita.

De certo modo, protestante como era, Kant contemporiza as diferenças existentes no cristianismo entre o catolicismo, a ortodoxia e o pra³prio protestantismo. Se não podemos provar a existaªncia de Deus com nossa razãoe nossa experiência, resta-nos então deixar que a escolha do homem o conduza aos caminhos da sua Fanã. Atéporque se usarmos a razãoveremos que a probabilidade da existaªncia de Deus torna-se na mesma proporção, tão prova¡vel quanto improva¡vel. Portanto, para se resolver esse impasse, significa que alguém ou alguma entidade possa realmente provar a existaªncia de Deus. Convenhamos, uma tarefa sem a ma­nima chance de sucesso.

Sendo assim, e considerando as ponderações de Kant de que essa prova ainda não existe, prevalece então a proporção do improva¡vel. Certamente diante dessa situação, ou seja, da impossibilidade de haver provas inequa­vocas da existaªncia de Deus, écompreensa­vel que uma parte nada despreza­vel da população opte por tornar-se agnóstica ou atémesmo ateia. O agnóstico, por exemplo, parte de uma premissa bastante sãolida. Ele considera impossí­vel afirmar em bases cientificas, de forma catega³rica e insofisma¡vel a existaªncia de Deus. a‰ sem daºvida, um argumento forte, ponderado, que prefere acreditar na pesquisa cienta­fica e não no que dizem as mais diversas religiaµes. Nãopor acaso, a palavra “a-gnostos” de origem grega significa algo que não se conhece verdadeiramente. a‰ um argumento forte, sustentado em bases sãolidas e que nos faz pensar.

De outra parte, apenas para introduzir mais um elemento nessa discussão, como já équase de doma­nio paºblico, o atea­sta nega peremptoriamente a existaªncia de qualquer divindade. Para o ateu não existe nenhum um tipo de deus. Todo o ritual, toda a liturgia da Igreja Cata³lica, por exemplo, entre outras religiaµes, em torno da figura de Deus, não passam de ficção engendrada por interesses voltados fundamentalmente para a conquista de poder, da manutenção do “status quo” e de interesses econa´micos. Contemporaneamente, alia¡s, os ateus tem ainda mais subsa­dios para sustentarem sua tese. Isto porque, atualmente talvez nem devamos falar em religiaµes propriamente, mas em “mercado de ‘religiaµes’”. Este produto baseado na “Fanã” tornou-se uma espanãcie de mercadoria a  venda, como tantas outras na sociedade de consumo. Voltaremos a falar nesse assunto mais adiante.

Originalmente a palavra “atheos” também égrega e significa o abandono total da ideia de que existe um deus. Para alguns estudiosos deste tema, a negação da existaªncia de Deus não se reduz apenas a uma descrena§a no que propagam as mais diversas religiaµes. Trata-se, antes de mais nada, de desacreditar que Deus tenha criado o Universo, que tenha o doma­nio sobre ele e que nós, habitantes da Terra, devemos nossa existaªncia, nossa conduta, inteiramente a este ser superior. A posição dos atea­stas, em face dessas afirmações, me parece muito mais uma postura filosãofica e muito menos uma contestação ao credo das religiaµes. Mas, essa posição atea­sta, de uma forma ou de outra, ainda que tenha um cara¡ter mais filosãofico, respinga um pouco no universo das religiaµes que tem em sua base, em seu discurso principal, a existaªncia e a crena§a em Deus.

Kant, no entanto, pondera acerca do ceticismo dos agnósticos e da posição consolidada dos ateus. Partindo do argumento de que existe um Deus, da imortalidade da alma e de que todos os homens tem direito ao que ele chama de livre arba­trio, então esses elementos tornam-se indispensa¡veis para a formação moral do homem. Independentemente da Fanã, cabe a cada um de nosdirecionarmos nossas escolhas de acordo com a razãoe a experiência dos sentidos que nos norteia. Esses dois elementos são segundo Kant, os vetores imprescinda­veis para que possamos ter verdadeiramente o conhecimento do mundo.

No entanto, diferentemente de Descartes, que acreditava na razãocomo elemento a nos conduzir a Fanã, Immanuel Kant trilha outro caminho. Para ele foi a Fée não a razãoque o levou ao que ele chama de “postulado prático”, isto anã, o conjunto de três elementos. Sa£o eles: a crena§a na imortalidade da alma, em Deus e em nosso livre arba­trio. Este último significa a possibilidade de escolhermos algo decorrente tão somente da nossa própria vontade, sem nenhum condicionamento ou interferaªncia. Trata-se exclusivamente de uma escolha realizada pela vontade do homem. Kant usa a expressão “postulado prático” para explicar que algo deve se consolidar no que ele chama de “ prática ” do homem. O reflexo disso interfere em sua ação social e, por extensão, em sua moral. Nãosem motivo, para Kant “émoralmente necessa¡rio supor a existaªncia de Deus”.

Mas aqui, se nos ativermos um pouco mais sobre a análise desta celebre frase do fila³sofo prussiano de Konigsberg veremos que, diferentemente do que apresentam alguns escritos sobre sua crena§a na existaªncia de Deus, épreciso ponderar que não se trata exatamente de acreditar ou desacreditar na existaªncia de Deus. Ele não quis dizer nenhuma das duas coisas. Trata-se, isto sim, de “supor a existaªncia de Deus” e, portanto, essa suposição em seu entendimento émoralmente necessa¡ria. Sendo assim, para Kant, por uma questãomoral supaµe-se que Deus existe. Kant estãoapenas supondo que Deus existe, ele não estãoafirmando como fizeram tantos outros fila³sofos entre eles, Berkeley e Arista³teles, por exemplo, para quem Deus era a causa inicial de tudo, soberano e criador de todas as coisas.

Ainda assim, de concreto mesmo, se tivanãssemos que procurar uma sa­ntese no pensamento kantiano sobre a existaªncia de Deus, dira­amos que ele realmente acreditava ser impossí­vel explicar essa existaªncia por meio da razãocomo pensava Descartes. Para Kant, como já demonstramos acima, o aºnico caminho para isso seria mesmo pela Fanã. Em outros termos, este fila³sofo deixou muito claro que, ou vocêacredita que Deus existe e, portanto, isso significa a Fanã, ou simplesmente não acredita e pronto, isto torna-se um fato consumado. De uma forma ou de outra, o problema estãoresolvido. Nãohácomo explicar a existaªncia de Deus cientificamente, nem pelos ca¢nones da divindade. Esta¡ aqui presente um dos três elementos do “postulado prático” que ele chama de livre arba­trio. Vocaª élivre para escolher sobre a existaªncia ou inexistaªncia de Deus.

Para Nietzsche, poranãm, esse éum falso dilema. Para ele, o cristianismo se distanciou da realidade terrena e concentrou sua doutrina na expectativa de que os fianãis cristãos abraçariam o catolicismo e, como reconhecimento por essa crena§a, por essa dedicação, após a morte ganhariam o canãu. Convicto de suas posições acerca das religiaµes, Nietzsche acrescenta ainda a s suas explicações: “Sede fianãis a  Terra, e não acreditais naqueles que vos falam de esperanças além deste mundo!”

Pois bem, a partir desse momento, estamos diante de uma situação cuja explicação não étão fa¡cil aceitar ou, quando menos, entender. Estou pensando no bina´mio Fanã/Deus. Quanto a  Féque, entre outras coisas, levou Kant considerar ser “moralmente necessa¡rio supor a existaªncia de Deus”, háunanimidade entre as pessoas em aceitar esta palavra como um substantivo feminino abstrato. Mas, diferentemente da palavra Fanã, háuma discussão muito grande com relação ao estatuto e a categoria gramatical da palavra Deus. Por esse motivo, temos que nos valer do sentido das palavras no nosso verna¡culo, porque trata-se sobretudo de uma questãosema¢ntica a ser interpretada. Então vamos a ela.

Era de se imaginar que fila³logos, linguistas e lexica³logos tivessem chegado a um consenso com relação a  seguinte questão: a palavra Deus éum substantivo concreto ou abstrato? A resposta implica em sanãrias reflexões filosãoficas, algumas questões religiosas e cria arestas para discussaµes que colocam em daºvida (no plano filosãofico e não religioso) a existaªncia de Deus. E assim, éclaro, dicionaristas, fila³logos e linguistas, não chegaram a um consenso.

De acordo com os estudos sema¢nticos, uma área da Lingua­stica que estuda o significado das palavras, em determinadas situações esses significados podem ser interpretados de formas diferentes, justamente em face do contexto de comunicação naquele momento, mas também da sua interpretação lanãxica. A este fena´meno, os linguistas chamam de “relação de sentido”. O que sabemos sobre toda a literatura a esse respeito éque, como os fila³sofos, os lexica³logos, fila³logos e linguistas, de certo modo, fila³sofos da palavra, também não se entenderam acerca da existaªncia de Deus. Bem, mas atéaa­ nenhuma novidade, mas também nada de grave. Permanecem então, duas diferentes interpretações, ou seja, a chamada “relação de sentido”. A desinteligaªncia entre esses estudiosos, como já assinalei antes, passa pela categoria gramatical da palavra Deus. Para boa parte deles, Deus éum substantivo concreto. Como consta do prestigioso Diciona¡rio Houaiss, inclui-se na subclasse dos nomes concretos. Nãose trata de “uma ação, um estado ou uma qualidade, considerados independentemente da classe de objetos ou seres a que se refere”. Esta éa explicação. No entanto, esse mesmo Diciona¡rio levanta uma questãoque diz respeito a  ambiguidade dos substantivos concreto e abstrato. Quanto ao primeiro, não hádaºvida. O substantivo concreto éreconhecido como algo que realmente existe e pode ser visto. Já o substantivo abstrato éconsiderado algo imagina¡rio e não podemos ver. Nesses termos, portanto, trata-se de algo imagina¡rio e não real.

Conclui-se dessas explicações, que o substantivo abstrato tem mesmo um estatuto imagina¡rio. a‰ dentro desse racioca­nio, que boa parte dos estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento defendem a inexistaªncia de Deus. Para eles, a palavra Deus éconsiderada um substantivo abstrato, não pode ser visto e, portanto, éimagina¡rio. Assim, se não quisermos classificar como substantivo abstrato, podera­amos chamar de “substantivo imagina¡rio”, o que não mudaria absolutamente nada. Ainda assim, permaneceria gramaticalmente abstrato. Desnecessa¡rio seria dizer que essas divagações lingua­sticas evidentemente não definem nada, nem no plano filosãofico nem religioso. Elas apenas trazem uma substanciosa contribuição a mais para estimular o debate. Nãopodemos também esperar que esses estudiosos resolvam um enigma dessa magnitude.

Mas, diante desse quadro épreciso pensar nos fianãis da Igreja Cata³lica e em sua incontesta¡vel convicção de que Deus existe. Para o cata³lico, esta crena§a, esta Féda qual nos fala Kant étão forte, que interfere em seu cotidiano trazendo realmente prazer e felicidade em sua crena§a. Este éum fato incontesta¡vel e fa¡cil de percebe-lo empiricamente. Curioso, poranãm, ése observar por exemplo, que atémesmo alguns ateus igualmente convictos da inexistaªncia de Deus, já devem ter se surpreendido pronunciando alguns provanãrbios mundialmente conhecidos e frequentemente usados como, “graças a Deus”, “o futuro a Deus pertence”, por algum bom motivo. Nesse caso, éclaro, não se trata propriamente da crena§a na existaªncia de Deus, mas de um ha¡bito cultural. Atéporque, os provanãrbios tem a propriedade de sintetizar aquilo que estamos pensando naquele momento, sem a necessidade de nos alongarmos em nossas explicações. a‰ a linguagem da linha reta, clara e objetiva decodificada imediatamente por seu interlocutor. Portanto, se para o crente, seja qual for sua religia£o, as expressaµes “graças a Deus” e “o futuro a Deus pertence” pressupaµem imediatamente a existaªncia de Deus, para o ateu, elas não passam de provanãrbios utilita¡rios para expressar-se objetivamente naquele momento.

Ha¡ que se pensar ainda no seguinte: frequentemente épossí­vel se constatar que a discussão dos fila³sofos acerca da existaªncia ou inexistaªncia de Deus, fica mesmo circunscrita a  explicação filosãofica, ao plano filosãofico. A discussão que faa§o aqui, evidentemente, não da¡ conta do que pensam todos os fila³sofos sobre essa questãoe isso nem seria possí­vel neste ensaio, entre outras coisas, por falta de Espaço. Mas, pelo que aqui apresentamos, pode-se perceber convergaªncias e divergaªncias entre esses pensadores, o que émuito bom, porque enriquece ainda mais o debate sobre o tema. Nesse aspecto, portanto, épossí­vel filosoficamente entendermos a figura de Deus, mas não sua existaªncia ou inexistaªncia, uma vez que Deus passa a ser algo etanãreo, algo vola¡til, onde evidentemente, a mais racional das proposições e discussaµes não pode constatar sua existaªncia ou inexistaªncia.

No entanto, uma coisa écerta. Esta¡ claro que o Deus que os fila³sofos discutem sobre sua existaªncia ou não, estãomuito distante do Deus e da imagem que a Igreja Cata³lica dele criou. Diferentemente do que possam pensar os fila³sofos, para os religiosos de todo o mundo, a existaªncia ou inexistaªncia de Deus éum falso problema. Independentemente da religia£o, esses fianãis trazem consigo dentro d’alma os benefa­cios e a felicidade da crena§a no que Descartes chamou de “ser perfeito”, isto anã, a figura de Deus. Os fianãis tem tanta certeza da existaªncia de Deus que conseguem em seu cotidiano, incorporar sua “presena§a” e com ele “conviver” lado a lado diuturnamente. Nãoraro, vemos e ouvimos um fiel falar: “tenho Deus aqui comigo”. Seus pedidos, alguns considerados impossa­veis, em determinado momento podem acontecer e não se sabe de que forma isso ocorre, o que reforça ainda mais a crena§a e, consequentemente, a ideia difundida pela Igreja Cata³lica da onipotaªncia e onipresença de Deus. Em toda a literatura sociola³gica que conhea§o, não há(nem poderia haver) nenhuma explicação para situações como esta. Devemos reconhecer, portanto, que se isso realmente acontece, ou seja, se esses pedidos considerados impossa­veis são atendidos, então isso significa o triunfo da crena§a, da Fanã. Nãoconsigo ver outra explicação que não essa. De concreto mesmo, éque os fianãis ficam felizes e isso os fazem ainda mais cranãdulo na existaªncia de Deus. Bem, isso evidentemente, se for possí­vel acreditar ainda mais do que já acreditam.

Por outro lado, lamentavelmente, em algunspaíses o conceito de religia£o tem cada vez mais ganhado um contorno muito mais mercantil do que propriamente uma opção que os fianãis possam fazer pela crena§a, pela Fanã. No Estado laico esta situação ébastante recorrente. Por exemplo, éo caso do Brasil. Oficialmente, de acordo com nossa Constituição, não temos uma religia£o especa­fica, e isso tem facilitado o aparecimento de outras religiaµes, ou ainda outras versaµes, outras interpretações do Catolicismo e de outras religiaµes. Claro, isto éplenamente aceita¡vel, atéporque não hánada de errado escolhermos a religia£o que bem nos convier e acreditarmos. Em umpaís democra¡tico, háque se democratizar também a escolha pela Fanã, pela crena§a.

a‰ neste quadro polissaªmico-religioso que as figuras de Deus e de Jesus Cristo adquirem um excepcional valor de troca, apenas para lembrar da expressão que Karl Marx usa quando escreve sobre o fetichismo da mercadoria. A laicidade do Estado permite por absoluta omissão e incompetaªncia dos seus governantes, que algumas dessas Igrejas administradas por impostores da fanã, pessoas burlistas, vendam aos fianãis a “salvação” da sua alma. Puro engodo, nada mais além disso. a‰ um ato criminoso, crime de estelionato previsto no Código Penal Brasileiro. A pena prevista éde cinco anos de reclusão e multa, nos termos do artigo 171. O ludibrio éum recurso espaºrio que fere o estado democra¡tico de direito. a‰ certo que não enfraquece nossa democracia, claro, mas écerto também que essa ardileza explora de forma agressiva e inescrupulosa, a fée a ingenuidade de pessoas humildes e desamparadas que procuram guarida nessas “igrejas” para minorar sua angaºstia, desamparo e sofrimento. Uma coisa éo estado ser laico, outra coisa édeixar correr solto o nota³rio ludibrio contra um povo sofrido que procura um lenitivo na figura de Deus. Para isso, evidentemente, as pessoas que frequentam essas determinadas Igrejas, devem contribuir regularmente com certa quantia em dinheiro para ter a garantia de que salvara¡ sua alma. A não contribuição significa também a não garantia dos benefa­cios de salvação da sua alma. Por acreditarem que aquele pastor estãofalando em nome de Deus ou de Jesus Cristo, atéporque eles se apresentam como representantes de Deus na terra, alguns fianãis mais cranãdulos não medem esforços para contribuir com a Igreja desse pastor e garantir seu lugar no canãu. Importante esclarecer que o discurso do pastor fraudulento não éclaro, direto e objetivo. Ele écheio de meandros, trejeitos, grandiloquente e feito de forma sub-repta­cia, mas o suficiente para que os fianãis entendam que devem deixar o seu da­zimo de salvação da alma.

Então, nesse caso, o racioca­nio para se constatar que a crena§a na existaªncia de Deus tornou-se mercadoria émuito fa¡cil. As pessoas, e não são poucas, ficam boa parte de suas vidas investindo dinheiro para futuramente, quando de sua morte, receberem seu espaço no canãu. E aqui, éapenas com a morte dessas pessoas que elas podera£o receber o benefa­cio do valor de uso da mercadoria que compraram do pastor fraudulento, burlista. Ha¡ algo de muito drama¡tico em tudo isso. As pessoas bem intencionadas e que podem pagar pela “salvação” da sua alma, passam a viver cada vez mais felizes porque afinal, tem “garantida” sua entrada no canãu. Elas acreditam fielmente nessa promessa e não hámais nada a se discutir, éum fato consumado. Para elas a existaªncia e a crena§a na figura de Deus éalgo absolutamente consolidado. Sa£o rara­ssimas as pessoas que percebem estarem sendo ludibriadas pelo pastor impostor, que tem sempre intenção oportunista e malanãvola, de usar a figura de Deus para seu enriquecimento ila­cito. Com pouqua­ssimas exceções, os vea­culos de comunicação de massa no Brasil, especialmente o ra¡dio e a televisão estãorepletos de pastores-locutores que usam a logomaquia como ardil, de pura ma¡ fanã. Eles passam o dia inteiro fazendo pregações, discursos inflamados, se esgoelando com uma reta³rica fa¡tica, falando de Deus, de salvação da alma dos fianãis, mas sempre tentando convencer as pessoas a participarem de suas pregações na Igreja, justamente com o objetivo sub-repta­cio de uma futura “contribuição” em dinheiro.

a‰ assim. O Catolicismo, la­dimo representante do cristianismo ainda éa maior religia£o do ocidente, apesar das mais diversas interpretações que dela tem sido feitas e que, de certo modo, vão fragmentando os postulados ba¡sicos deste credo e debilitando sensivelmente a Fédos seus fianãis. E, mais do que isso, háque se considerar ainda os mais diversos casos envolvendo a sexualidade de uma parte do clero cata³lico envolvido em pedofilia, espanãcie de perversão que torna a pessoa sexualmente atraa­da por criana§as. Os casos dessa pedofilia clerical mais conhecidos, entre outros, aconteceram nos Estados Unidos, Austra¡lia e Inglaterra. Por conta disso, o Papa Francisco pronunciou-se publicamente para, em nome da Igreja Cata³lica, pedir desculpas a todo o mundo. O caso de corrupção do Banco do Vaticano éoutro acontecimento que ciclicamente volta aos noticia¡rios dos vea­culos de comunicação de massa. a‰ inega¡vel que casos dessa magnitude tem mesmo que abalar os alicerces da Igreja Cata³lica e isso certamente abalou a féde alguns fianãis, incranãdulos diante de um quadro tão desolador para um cata³lico. Mas este éum outro estudo e entendo que ele deve ser realizado por pesquisadores interessados neste tema.

Seja como for, o fato concreto éque em todas as religiaµes a existaªncia e a crena§a na figura de Deus permanece una¢nime e a­ntegra. Para esses fianãis, Deus éo senhor do Universo. Ele éo seu criador, organizou a trajeta³ria dos bilhaµes de astros celestes, da Via La¡ctea, gala¡xia onde se localiza o sistema solar, do qual faz parte nosso planeta, harmonizou sua trajeta³ria em torno do sol permitindo a luz solar se projetar sobre a terra, dando origem ao dia e a noite. Enfim, para os fianãis a  existaªncia de Deus, tudo o que existe no Universo origina-se da criação divina. Para a Igreja cata³lica, por exemplo, a teoria cienta­fica do “Big Bang” que teria dado origem ao Universo, e a mais aceita entre a comunidade cienta­fica com algumas discorda¢ncias, naturalmente, não passa de uma ficção bem construa­da pelos criativos cientistas.

Apenas para esclarecer, esta teoria éa mais aceita entre os astra´nomos, fa­sicos e cientistas de todo o mundo. Ela se baseia na canãlebre teoria da relatividade de Albert Einstein de 1905, e em pesquisas realizadas pelos astrônomos Milton Humason e Edwin Hubble. O Universo teria sua origem em uma grande explosão ca³smica (Big Bang, em inglês) ocasionando a liberação de alta­ssima quantidade de energia e, por decorraªncia, a criação do que conhecemos hoje como Espaço-tempo. Para os cientistas, o Universo ainda continua em expansão e isso permite que cada vez mais gala¡xias e astros se distanciem. a‰ claro que esta sa­ntese aqui não poderia mesmo dar conta de um tema tão fascinante quanto complexo. Atéporque, como não tenho evidentemente a pretensão de explicar a origem do Universo, então devo parar depois de ter dado essas explicações elementares. Meu objetivo éapenas fazermos ver a distância abissal que separa os conceitos e a concepção do mundo entre a religia£o e a ciaªncia

Como resolvi escrever sobre um tema insolaºvel e cuja resposta única não existe, reconhea§o que ele pode ser um pouco pesado e cansativo. Alia¡s, estou convicto de que não hánenhuma resposta. Me parece que Immanuel Kant tem raza£o. Crer ou não crer na existaªncia de Deus, seria algo a ser deixado por conta da Féde cada um de nós. Por isso mesmo éque quero finalizar registrando a presença do cancioneiro popular brasileiro e assim, sem fugir do assunto, apresentar o texto poanãtico da canção de Chico Buarque, intitulada Partido Alto, composta em 1972, para o filme de Caca¡ Diegues, Quando o Carnaval Chegar. Chico Buarque trata nesta canção de um problema social grave e cra´nico recorrente no Brasil, mas com a sutileza de um compositor reconhecidamente talentoso e refinado na elaboração das letras de suas canções. Ele sabe trabalhar o verbo, a palavra, a grama¡tica, com rara habilidade, e écapaz de tratar de um tema doloroso como este, mantendo o humor bem caractera­stico brasileiro e, ao mesmo tempo, trazer a  tona a crônica desigualdade social em nossopaís. Reconhea§o nesse compositor, o grande mestre da palavra no cancioneiro popular brasileiro. Reproduzo o texto poanãtico na a­ntegra, porque nele Deus estãopresente do ini­cio ao fim. Além disso, ter aqui a letra completa da canção ajuda o leitor a fazer sua própria análise e, mais do que isso, lhe da¡ elementos para analisar minha análise. Vejamos:

Diz que deu, diz que da¡
Diz que Deus dara¡
Nãovou duvidar, a³ nega
E se Deus não da¡
Como éque vai ficar, a³ nega
Diz que Deus diz que da¡
E se Deus negar, a³ nega
Eu vou me indignar e chega
Deus dara¡, Deus dara¡

Deus éum cara gozador, adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado me deixar cabreiro
Na barriga da misanãria nasci brasileiro
Eu sou do Rio de Janeiro

Jesus Cristo inda me paga, um dia inda me explica
Como éque pa´s no mundo essa pouca titica
Vou correr o mundo afora, dar uma canjica
Que épra ver se alguém se embala ao ronco da cua­ca
E aquele abraa§o pra quem fica

Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio
Pele e osso simplesmente, quase sem recheio
Mas se alguém me desafia e bota a ma£e no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio
Que eu já estou de saco cheio

Deus me deu ma£o de veludo pra fazer cara­cia
Deus me deu muitas saudades e muita preguia§a
Deus me deu perna comprida e muita mala­cia
Pra correr atrás de bola e fugir da pola­cia
Um dia ainda sou nota­cia.

Ao longo de todo o texto poanãtico, Chico Buarque faz um contraponto sobre as ações de Deus e a personagem da canção, mas com a leveza e o humor de quem tem sanãrias daºvidas se pode ou não, contar com a ajuda divina para resolver seus problemas. Diferentemente de grande parte das suas canções, Partido Alto tem um discurso claro, direto e objetivo. As sofisticadas meta¡foras e outros recursos possa­veis de serem usados do nosso verna¡culo, na grande maioria das suas canções não estãopresentes nesse momento, o que torna a intelecção do seu texto poanãtico acessa­vel a qualquer pessoa que o ler. Nãose pode afirmar, mas ébastante prova¡vel que o uso nesta canção de uma linguagem coloquial e nada sofisticada, tenha mesmo o objetivo de mostrar certa desconfianção que os desvalidos economicamente tem em relação aos pedidos que fazem a Deus em suas orações. Na primeira estrofe da canção quando ele diz o seguinte:

Diz que deu, diz que da¡
Diz que Deus dara¡
Nãovou duvidar, a³ nega
E se Deus não da¡
Como éque vai ficar, a³ nega…, estãoclaro que o personagem parece não duvidar da ajuda de Deus. Mas, são parece mesmo. Logo em seguida e inseguro, ele admite a possibilidade de Deus não o ajudar e fica sem saber (“como éque vai ficar, a³ nega”) o que fara¡ se isso ocorrer, além de ficar indignado, não se sabe com quem, não estãoclaro, mas provavelmente com Deus. Esse dia¡logo com sua “nega” éapenas o ini­cio de todo um desabafo que vira¡ logo em seguida.

Na segunda estrofe o personagem se refere a Deus, mas não o trata como a Divindade Suprema, ritual que fazem todos os religiosos. Ao contra¡rio, trata-o como se ele fosse apenas uma pessoa a mais de seu relacionamento, e como se já o conhecesse bem para saber de suas ações. Para ele, “Deus éum cara gozador, adora brincadeira”. Entre todas as oportunidades que o Senhor teria para coloca¡-lo no mundo, parece ter optado pela pior delas, senão uma das piores (“pois pra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro”), ou seja, sem condições de prover sua própria vida e ter que contar com a ajuda divina. a‰ a partir desse momento, que o personagem da canção de Chico inicia seu descontentamento com Deus, enumerando uma sanãrie de situações que o deixam cabreiro, desconfiado, assustadia§o e que não gostaria de estar vivendo. Destaque-se entre elas, por exemplo, o fato de já ter nascido como mais um brasileiro misera¡vel: “na barriga da misanãria nasci brasileiro”.

Como já disse antes, o texto éde fa¡cil intelecção, objetivo, mas na mesma proporção impactante e capaz de causar inquietação ao ouvinte de Partido Alto. No entanto, diferentemente da grande maioria das pessoas, o personagem da canção reage por ter sido colocado na “barriga da misanãria” quando, com um pouco de boa vontade, Deus poderia ter sido mais compreensivo e solida¡rio, dando-lhe condições para sair do estado de caraªncia quase absoluta dos meios de subsistaªncia. Nesse momento, ele se faz uma pergunta que também éextensiva a  sua “nega”: “…E se Deus não da¡, como éque vai ficar, a³ nega…”. Normalmente não éessa a postura dos fianãis, daquelas pessoas para quem Deus éo Senhor do Universo e, portanto, “seja feita a sua vontade”, como manda a oração do Padre Nosso. Para os fianãis não se questiona jamais o que Deus decide, o que ele faz, apenas aprova-se e aceita-se com muita gratida£o.

Já na terceira estrofe seu descontentamento écom Jesus Cristo, de quem espera um dia receber alguma forma de pagamento e explicações por ter sido colocado no mundo apenas como “pouca titica”, isto anã, pessoa insignificante, despreza­vel. Mas logo em seguida, ele volta novamente a mostrar seu descontentamento com Deus que o fez “…um cara fraco, desdentado e feio, pele e osso simplesmente, quase sem recheio…”, mas bom de briga e de pouca paciaªncia, fica facilmente de “saco cheio”. Ao mesmo tempo, talvez por sentir-se desamparado, ele resolve assumir seu lado liberta¡rio pela vida e decide “…correr o mundo afora, dar uma canjica…” para motivar as pessoas com o som, com o “ronco da cua­ca…”.

E, finalmente, na última estrofe da canção a personagem reconhece que Deus o colocou no mundo em uma situação muito difa­cil de se viver. Por exemplo, a frase “Deus me deu ma£o de veludo pra fazer cara­cia”, embora daª margem a diversas interpretações, vamos ficar apenas com aquela que parece sugerir o texto poanãtico de Partido Alto. Isto porque, no ethos cultural do malandro carioca, na linguagem coloquial, na ga­ria do seu cotidiano, “ma£o de veludo” significa ter muita habilidade, atenção, esperteza, sutileza e atécerta “cara­cia” para pilhar os incautos, os imprecatados. Os desavisados. Mas Deus também deu outros recursos ao personagem desta canção para tentar driblar a misanãria, ainda que para isso permanea§a a  margem da sociedade. A “preguia§a”, a “perna comprida e muita mala­cia”, são recursos dos quais precisa usar para “fugir da pola­cia”. Sua maior oportunidade é“correr atrás de bola” na esperana§a de que um dia um clube de futebol, brasileiro ou não, reconhea§a seu eventual talento e o contrate. Aa­ sim, ele passara¡ a ser nota­cia como éo seu desejo.

Esta leitura de Partido Alto, éapenas uma a mais. A obra musical e litera¡ria de Chico Buarque ébastante estudada nas universidades por professores e alunos e, sendo assim, certamente existem diversas outras leituras que poderiam ajudar ao leitor interessado em esmiua§ar um pouco mais a relação do bina´mio Deus/malandro. Mas não ésão. Dentro da própria canção, além de Deus/malandro, existem outras vertentes em seu texto poanãtico que podem ser estudadas.

O crítico italiano Umberto Eco, em seu trabalho Obra Aberta, ao teorizar sobre a linguagem poanãtica nos deixa a  vontade para interpretarmos não apenas a linguagem litera¡ria da prosa e da poesia, mas qualquer obra de arte. Vale para a literatura, a música, as artes pla¡sticas ou qualquer outra modalidade arta­stica. Para este tea³rico, a obra de arte traz consigo uma estrutura de conteaºdo e proposições que a torna sempre aberta, ou seja, sempre passa­vel de mais uma leitura. Isto significa, em outros termos, que pudemos interpreta¡-la sem o temor de que estamos fazendo de forma errada. Este livre arba­trio que temos para interpretar como bem entendermos éde relevante importa¢ncia uma vez que, quanto maior o número de leituras sobre uma obra, mais conheceremos seus meandros e sutilezas. Isso não significa, evidentemente, que afinal conseguimos entender as proposições do artista ao realizar aquela obra. Alia¡s, isso nem éalgo tão importante no contexto de sua obra. Se como diz o crítico inglês Ezra Pound, “o artista éa antena da raça”, éprova¡vel que este artista de quem estamos interpretando sua obra, já tenha outra concepção sobre aquela obra analisada. Assim, a próxima interpretação que se fizer de Partido Alto, continuara¡ sendo uma leitura a mais que se seguira¡ de outras mais. Isso ébom.

Por um lado, uma coisa écerta: o enigma da existaªncia ou inexistaªncia de Deus, éalgo que divide opiniaµes. Seja na letra de uma canção, como éo caso de Partido Alto, na literatura, em uma pea§a de teatro ou no cotidiano das pessoas. Nãohánenhuma chance de haver um consenso por mais que fila³sofos, cientistas, crentes, agnósticos, ateus, entre outros, discutam exaustivamente sobre este tema. Por outro lado, éincontesta¡vel que se Deus existir realmente, na concepção de um Deus da Igreja Cata³lica, ele tem demonstrado ser sobretudo muito democra¡tico. Isto porque, deu ao homem a capacidade de saber analisar, criticar e escolher o que quer ser. Se crente para venera¡-lo, se agnóstico para optar pela ciaªncia, ou se ateu para desconsidera¡-lo inteiramente. Ainda bem, se esta liberdade do homem para critica¡-lo e atécontesta¡-lo democraticamente, éde fato, obra de Deus, então as coisas se ajustam no plano do bom senso. a‰ verdade, poranãm, que crentes sempre reagem energicamente e ocasionalmente atébrigam com agnósticos e ateus quando falam de suas opções. O problema éque retornamos a uma situação recorrente. Os agnósticos, com raza£o, dizem que não hánenhuma prova dessa existaªncia divina e, por decorraªncia, da liberdade dada ao homem para analisar criticamente essa divindade. Enfim, desisto. Nãohámesmo solução. Mas, de uma forma ou de outra, em existindo Deus, éo caso de pedir aos que acreditam em sua existaªncia, que ele seja mais solida¡rio aos misera¡veis, aos desvalidos, aos desamparados, para quem a morte já se tornou melhor que a vida. O personagem de Partido Alto e outros milhões de esquecidos ficara£o felizes se esse pedido for atendido.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Waldenyr Caldas
Professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP

 

.
.

Leia mais a seguir