Tempos de pandemia. A essencialidade das Ciências Humanas, Sociais e das Artes
As ponderaçaµes de Lanãvi-Strauss permitem interpretar que as Ciências Humanas, Sociais e as Artes formulam problemas fundamentais da existaªncia, ainda que a explicaça£o possa escapar do seu domanio exclusivo.

Domanio paºblico
Em entrevista concedida no final da vida, o antropa³logo Claude Lanãvi-Strauss (1908-2009), um dos intelectuais mais marcantes da segunda metade do século XX, quando lhe perguntaram se um pensador da cultura como ele ficava incomodado com a expansão das pesquisas que pretendiam explicar o comportamento humano por meio da herana§a genanãtica, respondeu que não se sentia atingido. Primeiro, porque muito das “nossas pesquisas, da psicologia, da sociologia, são modos provisãorios de apreender fena´menos que tratamentos mais sanãrios va£o acabar solucionando…â€. Segundo, as questões do humano são ilimitadas: “Estamos condenados em vários naveis e esses naveis são incomensura¡veis. Para fazer ciência épreciso fazer como se o mundo exterior tivesse uma realidade e como se a razãohumana fosse capaz de compreendaª-lo. Mas é‘como se’â€(1).
As ponderações de Lanãvi-Strauss permitem interpretar que as Ciências Humanas, Sociais e as Artes formulam problemas fundamentais da existaªncia, ainda que a explicação possa escapar do seu domanio exclusivo. E de fato, atéhápouco tempo, seria inusual formular a pergunta sobre a centralidade das Ciências Humanas, das Ciências Sociais e das Artes no tratamento dos temas que lhes são pra³prios, a despeito da diversidade disciplinar existente no campo cientafico. O lugar que essas disciplinas ocupavam na hierarquia do conhecimento e da produção da ciaªncia, bem como o reconhecimento da sua capacidade de explicar e de representar os problemas da vida, dos mais imediatos aos mais transcendentes, não era matéria de exame, tampouco de questionamentos.
Nesse sentido, a pergunta já alude para o nublamento da legitimidade desses saberes, bem como das suas formas de expressão, revelando certas concepções correntes sobre o seu cara¡ter não essencial, juazo que desnuda disputas de poder internas ao campo cientafico. Naturalmente, o exame de tais ideias implica tratar de questões que recobrem amplo leque de problemas, cujos fundamentos últimos residem no modo como as sociedades contempora¢neas organizaram-se em todas as esferas da existaªncia:
na valorização da tecnologia como artefato dotado de neutralidade;
na pura assunção das regras do mercado, esfera na qual funcionariam leis inquestiona¡veis, cujo movimento global, para além das fronteiras nacionais e culturais, éentendido como se fosse natural e desejável (não hista³rico e social);
na correlata negação do poder Estado como instituição social reguladora, elidindo o seu atributo de ser, potencialmente, organismo voltado a dirimir iniquidades e a atender demandas alheias ao puro movimento de valorização do capital;
na domina¢ncia dos veaculos da cultura de massas que tendem a produzir modos de vida e a difundir concepções homogaªneas de mundo;
na prevalaªncia da razão prática que valoriza os meios em detrimento dos fins, área de atuação de um corpo administrativo que se legitima afirmando a racionalidade das suas decisaµes, como se fosse baseada em critanãrios exclusivamente técnicos e isentos de juazos de valor, sendo, na verdade, pura manifestação de poder institucional;
na crescente institucionalização dos organismos da sociedade, inclusive das universidades, que passaram a guiar as suas decisaµes pelo ca¡lculo seguro, em detrimento do risco inerente a aventura cientafica, operando segundo moldes administrativos, abrindo espaço para interpretações de que sejam componentes da produção de bens, atributo que cria uma relação imediata com as demandas externas, sejam econa´micas, sejam políticas, para cujo concurso os meios acabam por prevalecer sobre os fins;
no processo de aprofundamento da individuação e de maºltiplas identidades, presentes na difusão de convicções que cada pessoa édona de si e responsável pela construção do seu pra³prio destino;
na compreensão de que os indivíduos são responsa¡veis exclusivos pelos insucessos do seu percurso, remetendo possaveis fracassos para a seara do erro, quando não da incapacidade pessoal, concepção cristalizada na valorização de personalidades inovadoras e empreendedoras;
no consequente paradoxo que alia personalidades auta´nomas e autorreferidas com a difacil tarefa de se assenhorar da própria trajeta³ria, manifesta na expansão dos diversos tratamentos terapaªuticos e nas expressaµes variadas de crena§as;
no enfraquecimento das formas de representação, sobretudo de cunho polatico, redundando na flagrante judicialização da existaªncia;
no enfraquecimento da esfera pública, com o consequente embaralhamento entre os universos paºblicos e privados;
no predomanio da comunicação mediada, cuja expressão mais aguda são as redes sociais com o seu arsenal disruptivo, especialmente na propagação de saberes e conhecimentos de senso comum, que atingem o limite com as fake news, fonte onde governos autorita¡rios sorvem o seus impulsos antidemocra¡ticos, com a resultante anatematização do pensamento crítico e discordante.
Cada um desses fena´menos estãona base da perda de legitimidade, ou do desconhecimento das Humanidades como campo do saber e das Artes como linguagem social particular, vistas, muitas vezes, como pré-cientaficas (as ciências humanas) e perfuncta³rias (as artes). No conjunto, épossível asseverar que as sociedades contempora¢neas, particularmente nas três últimas décadas, tornaram-se avessas a s formas de conhecimento que não possuem aplicação evidente, no limite são classificadas como inaºteis, ou como mera ilustração de mentes eruditas. Naturalmente, as afirmações acima inspiram-se na construção tapico-ideal de Max Weber, que implica acentuar os traa§os mais significativos dos fena´menos.
Teia de significados
Cabe, agora, indagar como esse quadro tende a levar ao questionamento do lugar e da importa¢ncia das Ciências Humanas e Sociais no rol das disciplinas tidas como dotadas de maior cientificidade e como produtoras de explicações mais verdadeiras, tendo em vista que as Artes não estãoaa subsumidas. Primacialmente, énecessa¡rio distinguir a diversidade das operações de conhecimento entre as áreas genericamente denominadas por Humanidades e as Ciências Experimentais, que tem no laboratório o ambiente normal da pesquisa. Como se sabe, na impossibilidade de testar de maneira definitiva comportamentos humanos, ou de construir leis abstratas que deem conta integral do movimento geral da história, as Humanidades são podem formular “leis hista³ricasâ€, portanto provisãorias, o que não significa que elas sejam arbitra¡rias e não cientaficas. O que as distingue, especificamente, éa rejeição das leis abstratas que acabam por abjurar a história, situando-as na contrama£o das concepções naturalizadas e aderentes a autorregulação do mercado e do movimento auta´nomo da economia vis-a -vis as esferas políticas, sociais e culturais, argumento que pode ser estendido a s diversas compreensaµes a respeito da neutralidade da tecnologia.
As Artes, em contrapartida, escapam do terreno palmilhado pelas ciências. A produção artastica émenos sujeita aos juazos acerca da sua importa¢ncia, pois évista como alheia aos critanãrios de verdade, sendo interpretada como linguagem apenas expressiva e comumente entendida enquanto fruto de vocações individuais diferenciadas. Tal vantagem relativa torna-se, frequentemente, desvantagem, pois o trabalho artistico fica mais sujeito a ser qualificado como inessencial, mero produto de consumo conspacuo; por vezes suntua¡rio, veaculo de atribuição de prestígio e diferenciação social aos proprieta¡rios de obras, aproximando-as da condição dos bens de luxo ofertados no mercado e submetendo-as a s instituições de legitimação, como as curadorias dos museus, principal insta¢ncia, atualmente, de sua valorização. O campo das Artes em geral, especialmente das artes pla¡sticas, cuja linguagem adquiriu, pelo menos desde o Modernismo, expressão crescentemente abstrata, faculta o aparecimento de concepções sobre a sua inutilidade. O engano subjacente a essas interpretações ancora-se na dificuldade de admitir que o conjunto das linguagens artasticas ésocialmente saturado. O exemplo das artes pla¡sticas éparadigma¡tico, pois desde as vanguardas modernas haviam explorado as inaºmeras possibilidades de expressão do mundo, mas, com o abstracionismo, terminam por recusar as formas anteriores da representação, expressão da rejeição surda a uma sociedade dissonante, de resto característica da música atonal, que revelou a desarmonia vigente no mundo contempora¢neo. A procura incessante de formas de representar tem se revelado, especialmente no campo das artes, na impossibilidade de se estabelecer consensos sobre o sentido geral da linguagem artastica.
Esse cena¡rio de incompreensaµes sobre o modo como as Ciências Humanas e Sociais constroem as suas operações de conhecimento, nas quais a posição do pesquisador éparte integrante das perguntas e dos problemas a serem investigados oso que não elide, antes pressupaµe e acentua, as questões sobre a objetividade dos procedimentos de pesquisa osagravou-se no curso das profundas transformações ocorridas nas últimas décadas, que modelaram e construaram hierarquias no campo cientafico. Dito de outro modo, passou-se a privilegiar a dimensão aplicada e útil do conhecimento, dirigido a um objetivo especafico, cuja forma mais desenvolvida o tornou meio de promover a riqueza, sem que se pergunte sobre os fins e a quem se destina. A tecnologia adquiriu independaªncia formal em relação a s exigaªncias anãticas, a exemplo da propalada inteligaªncia artificial, que parece se desprender das perguntas sobre os princapios a ela subjacentes e os problemas normativos que a acompanham.
A contemporaneidade, em suma, encontra-se imersa numa teia de significados que tem desvalorizado reflexões sobre o cara¡ter contingente dos critanãrios de verdade, numa espanãcie de recusa em admitir que a própria valorização da ciência deriva da mudança no ca¢none da cultura. a‰ a essa espanãcie de cegueira que se pode atribuir os questionamentos sobre a importa¢ncia das disciplinas que lidam com os significados, na contraface da afirmação da tecnologia e do saber aplicado e útil. Nesse diapasão, éfacultado lana§ar ma£o do oximoro que pensa a utilidade das disciplinas dos sentidos a sua pretensa inutilidade, para parafrasear Theodor Adorno. Explicitamente falando, as perguntas sobre os fundamentos da vida social, portadoras de inescapa¡veis sentidos craticos e normativos, distinguem-se de compreensaµes seduzidas por critanãrios práticos e da aplicabilidade, produzindo, além do mais, importunações de natureza polatica, tão avessas a uma era de recuo democra¡tico e de desconfianção generalizada sobre a importa¢ncia da ciaªncia, da cultura e do conhecimento. A utilidade desses campos do saber deriva, então, do seu distanciamento em relação aos consensos vigentes, porque não compartilham da ideia de transparaªncia do mundo social, condição que lhes permite propor problemas essenciais de reflexa£o.
Por esses motivos, o impulso crítico da Ciências Humanas, Sociais e mesmo das Artes incomoda, especialmente em contextos regressivos, caracterasticos depaíses como o Brasil do presente. No caso especafico das Humanidades, tendo em vista que os objetos de conhecimento e de expressão dessas áreas originam-se de questões ligadas ao universo imediato do pesquisador, resulta daa maior adesão aos temas da sua sociedade, limitando o alcance das operações de generalização, por conseguinte, ficam mais sujeitas a censura de poderes instituados. Dito em outros termos, explicar e compreender são procedimentos que não se afastam, antes se pressupaµem, sendo parte da mesma operação, significando que o conhecimento nessas disciplinas admite a normatividade, pois mescla o ser (o objeto da investigação) ao dever ser (os valores do investigador), sem, contudo, abjurar a objetividade. Contrariamente, toda a construção da explicação exige manãtodo, procedimentos rigorosos e atitude de questionamento incessante sobre o alcance da objetividade a ser atingida, processo que se realiza na narrativa. Todavia, a doxa, hoje dominante no ambiente acadaªmico, parece derivar da valorização do conhecimento internacionalmente validado, que não se confunde com o cara¡ter cosmopolita dos criadores, embora limite o raio de alcance das pesquisas no campo das Humanidades.
As Humanidades na formação da USP
Esse universo de problemas enquadra a produção do conhecimento em geral e subjaz a construção das hierarquias disciplinares nos ambientes específicos das universidades contempora¢neas. Na Universidade de Sa£o Paulo osUSP oso ambiente acadêmico reverbera muitas dessas concepções difundidas na vida social, pois, na condição de instituição da sociedade, essas organizações reproduzem parte das ideias dominantes. Mas éinteressante assinalar que a criação da USP, em 1934, resultou de um projeto cultural e polatico totalmente exitoso, permitindo-lhe assumir, no futuro, a posição mais distinguida dentre as universidades latino-americanas. No bojo desse projeto original para o Paas na anãpoca osque aliou ensino, pesquisa e extensão e contou com a participação de profissionais e de jovens professores europeus, como Claude Lanãvi-Strauss –, as Humanidades tiveram papel fundamental tanto na reunia£o das escolas profissionais existentes, quanto no estreitamento das relações entre os vários campos disciplinares, sendo a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras osFFCL osa instituição agregadora e o centro da inovação.
Dessa experiência resultou um setor de Ciências Humanas e Sociais altamente diferenciado e aºnico no Brasil, o que permitiu a USP formar vários intelectuais, pesquisadores e cientistas brasileiros, a exemplo de Antonio Candido de Mello e Souza, Florestan Fernandes, Canãsar Lattes, entre inúmeros outros. As Ciências Humanas e Sociais, hoje existentes, são herdeiras do projeto original, ainda que a reforma universita¡ria, de 1968, tenha separado as Ciências Ba¡sicas e Naturais em institutos especializados e dado origem a habilitações independentes, como as Faculdades de Educação e de Psicologia, anteriormente cursos ministrados na antiga FFCL. A formação da Faculdade de Economia foi, nesse sentido, precoce em comparação com as anteriores, pois já havia adquirido identidade própria no final da década de 1940. Outros centros altamente qualificados de docaªncia e de pesquisa no campo das Ciências Humanas, Sociais e das Artes localizam-se em instituições como a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo osFAU osnúcleo de prestígio internacional na área. Novas instituições foram criadas, posteriormente, como a Faculdade de Comunicações e Artes- ECA –fundada na segunda metade dos anos 1960, que abriga, atualmente, um amplo espectro de cursos e disciplinas nos setores das artes pla¡sticas, das artes industriais, das artes performa¡ticas, das comunicações e do jornalismo. A Escola de Artes, Ciências e Humanidades osEACH -, construada em 2005 e, pouco depois, o Instituto de Arquitetura e Urbanismo osIAU oslocalizado no campus de Sa£o Carlos, são representativos do adensamento da reflexa£o, visto que abrigam uma profusão de objetos de pesquisa e volumosa produção intelectual.
O núcleo original das Humanidades na USP permaneceu reunido na atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas osFFLCH -, a maior instituição da Universidade de Sa£o Paulo, que conta com cinco departamentos de Letras (Letras Cla¡ssicas e Verna¡culas, Letras Modernas, Teoria Litera¡ria, Letras Orientais, Linguastica), responsa¡veis por 17 diferentes habilitações; três departamentos que compõem o curso de Ciências Sociais (Antropologia, Ciência Polatica e Sociologia); um departamento de Filosofia; um departamento de Hista³ria; um departamento de Geografia. O conjunto dos 11 departamentos da FFLCH atende aproximadamente 11 mil estudantes de graduação, 3 mil de pós-graduação e 5 mil nos diversos cursos de extensão, perfazendo um volume que gira em torno de 19 mil alunos. A instituição possui, ainda, 23 cursos de pós-graduação e, entre 2016-2020, titulou perto de 3.400 mestres e doutores. Todos esses atributos fazem da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas o maior centro brasileiro de formação na área, cujos cursos tem sido classificados internacionalmente nas mais diferenciadas posições, elevando o patamar de excelaªncia da Universidade de Sa£o Paulo, contribuindo para o aªxito que a instituição tem obtido nas avaliações.
Como se vaª, a USP édetentora de um setor de Humanidades e Artes incomum e raro, pois a ele se agregam acervos documentais e museola³gicos ampares, atestado em organismos como o Instituto de Estudos Brasileiros osIEB ose a Biblioteca Brasiliana Guita e JoséMindlin de obras raras; o Museu Paulista, que reaºne um acervo hista³rico e documental nota¡vel; o Museu de Arqueologia e Etnologia osMAE –, que possui exemplares de civilizações anteriores a era crista£, além do mais importante conjunto etnola³gico sobre as sociedades indagenas no Brasil; o Museu de Arte Contempora¢nea osMAC osdetentor de pea§as de valor inestima¡vel, tendo, possivelmente, o maior volume de artes pla¡sticas modernistas no Hemisfanãrio Sul. Essas instituições são centros de pesquisa e de reflexa£o cientafica, a elas se somam vários outros núcleos documentais da mesma natureza. Nesse cena¡rio incomensura¡vel do ponto de vista da sua complexidade e da sua riqueza, a Universidade de Sa£o Paulo édesaconselha¡vel desconhecer a importa¢ncia das Ciências Humanas, Sociais e das Artes, aqui classificadas genericamente, apesar das suas singularidades.
Compreender as complexidades da vida humana
A conjuntura mundial no presente momento, foi redefinida pela pandemia que surpreendeu mesmo a ciência mais avana§ada, haja vista a perplexidade dos cientistas diante dos efeitos desconhecidos do varus e da desorientação inicial sobre as medidas mais adequadas a serem tomadas. Apa³s o va¡cuo de explicações para dar conta desse acontecimento imprevisto para a maioria dos habitantes do planeta, a ciência foi revalorizada e, no seu bojo, realidades já hámuito conhecidas, como as profundas desigualdades sociais caracteristicas das sociedades contempora¢neas e que se aprofundaram em todos ospaíses com o processo de mundialização, como tem revelado as pesquisas, não puderam ser escoimadas da agenda cientafica. Mesmo porque, se as doenças são fena´menos coletivos, dado o seu cara¡ter de desequilibrar as relações humanas, as epidemias e pandemias são males sociais por excelaªncia, dada a sua abrangaªncia e frente a desigualdade dos efeitos que provoca. Na conjuntura atual, a valorização da ciência e das pesquisas desenvolvidas nas universidades, se resulta da necessidade de encontrar explicações plausaveis para responder a angaºstia que a todos apossa, implica reafirmar o lugar das Ciências Humanas e Sociais, uma vez que não se entende o aparecimento e a difusão do varus sem levar em consideração os processos hista³ricos e coletivos que o produziram.
O mundo da pandemia demanda explicações e inspira compreensaµes que não se esgotam em concepções que escoimaram o tratamento da complexidade da vida humana, que são se realiza no convavio social. A naturalização das leis do mercado em escala global contribuiu para criar a anormalidade social em que hoje vivemos, pois requereu o tra¢nsito intenso e permanente de pessoas e mercadorias, que passaram a ritmar as sociedades contempora¢neas. A aposta cega no poder da tecnologia revelou-se impotente para responder de modo imediato aos desafios da doena§a. Lana§ou-se ma£o, então, de medidas conhecidas e praticadas háséculos em situações de epidemias, como a quarentena e o isolamento social. Nãose pode desconhecer, no entanto, que a ruptura dos laa§os de convivaªncia, de cooperação e de afeto a qual os habitantes do planeta foram relegados, se ésempre subjetivamente grave, em contextos de intensa mobilidade espacial tende a aprofundar o desconforto.
Ruiu, em suma, o arcabouço sobre o qual se assentaram princapios tidos como incontorna¡veis em quase meio século, como expa´s um presidente europeu, insuspeito de comungar com o idea¡rio socialista, ao declarar que a traganãdia provava que, nas últimas décadas, se havia feito tudo errado. Ou seja, as ideias neoliberais aprofundaram as desigualdades sociais e o Estado manimo revelou-se enfraquecido diante da magnitude da tarefa a qual foi instado a desempenhar; a intensa mobilidade geogra¡fica foi coibida, do mesmo modo que o ritmo do consumo de bens, poderosos marcadores sociais e sambolos de distinção; a desconfianção em relação a s políticas e direitos sociais deixaram parcelas inteiras da população vulnera¡veis e a mercaª da propagação do varus. Finalmente, o controle da pandemia obrigou a politização das medidas sanita¡rias, visaveis no cara¡ter mandata³rio das deliberações oficiais, na distribuição de recursos, na adoção de programas paºblicos, ao ponto de se poder medir o aªxito das políticas de saúde a partir da orientação segura e inequavoca do Estado.
Nesse universo de problemas não equacionados, érelevante lembrar a poderosa representação da peste criada pela literatura desde a Antiguidade cla¡ssica, que concebeu obras-primas da ficção mundial; rememorar as linguagens artasticas que construaram imagens pungentes da vida sufocada, quando conformaram e conferiram expressão a essas situações extremas. No conjunto, tornam palpa¡veis e da£o concretude a esses acontecimentos imprevisaveis e fornecem um desaguadouro ao mal-estar reinante, que medrou no terreno inseguro da vida, no medo que a todos assolou, companheiro da angaºstia que fez dos outros o perigo a ser evitado. Se o momento érepleto de promessas para a construção de um conhecimento integrado e clama por saadas inovadoras, o risco de se retornar a concepções puramente técnicas para a ultrapassagem da crise não estãoescoimado. A produção de vacinas em tempo recorde, se são fundamentais a sobrevivaªncia de amplas parcelas da população mundial, tem como contraface a valorização das empresas farmacaªuticas e as organizações privadas de saúde e toda a sorte de companhias capazes de responder a s questões pontuais da crise.
Em meio a esse mundo de fundos desconcertos, as universidades podem se erigir em possaveis respiradouros na busca de soluções efetivamente civilizata³rias, mas sob a condição de tratar das mazelas sociais e subjetivas inerentes ao mal que nos atingiu. Para tanto, a atitude sine qua non exige romper a defasagem corriqueira entre as pesquisas experimentais, realizadas em laboratórios, e os problemas substantivos da humanidade formulados pelas Ciências Humanas e Sociais e que são representados nas diversas linguagens das Artes. A cultura, como assinalou Claude Lanãvi-Strauss, éo reposita³rio comum de todos os problemas. A Universidade de Sa£o Paulo, dada a complexidade e diversidade das pesquisas desenvolvidas nas diversas disciplinas humanasticas, ocupa posição privilegiada para enfrentar os desafios do presente.
* Este texto foi concebido tendo em vista oferecer subsadios a participação da USP em fa³rum acadêmico internacional sobre o papel das ciências humanas nas universidades.
(1) Entrevista de Claude Lanãvi-Strauss. Ilustrada. Folha de S. Paulo, 03/10/1993. A entrevista foi reproduzida pelo jornal, por ocasia£o do falecimento do antropa³logo. Caderno Mais. Folha de S. Paulo, 03/11/2009.
*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva
do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do
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Maria Arminda do Nascimento Arruda
Professora titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP