Opinião

Carta ao governador de Sa£o Paulo
Senhor governador, éimperativo o reexame de sua proposta contida no PL 529/2020. Ha¡ muito a ser realizado e melhorado no Estado de Sa£o Paulo. Por que mexer no que funciona e comprometer o futuro?
Por José Eduardo Krieger, - 21/09/2020


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Senhor governador, desde o ini­cio do seu mandato e de maneira mais intensa por conta da emergaªncia sanita¡ria, o senhor enaltece a importa¢ncia da ciência para o desenvolvimento econa´mico e social, em contraste com outros gestores paºblicos e com a marénegacionista. Estamos cientes que o momento exige medidas austeras para assegurar o equila­brio das finana§as. Mas édifa­cil entender o Projeto de Lei 529/2020, proposto e defendido pelo senhor, que tramita na Assembleia Legislativa de SP e que atinge os pilares da produção e financiamento da ciência em Sa£o Paulo.

O senhor sabe que a USP, a Unicamp e a Unesp estãoentre as melhores do Paa­s. Com a Fapesp, respondem em grande parte pelo sucesso da produção cienta­fica e das políticas públicas que sustentam o dinamismo do nosso estado. A realidade do sistema de educação superior paulista nasceu após a derrota na Revolução de 1932, quando o Estado decidiu construir seu futuro com base no conhecimento e não na força das armas. As universidades são joias que requerem cuidados constantes e não de agressões.

As universidades de pesquisa vivem de seu compromisso profundo com a excelaªncia do conhecimento. Os valores que cultivamos ajudam a lapidar as liderana§as de amanha£, de modo que sejam capazes de lidar com as incertezas do futuro e construir um mundo melhor. A difusão do conhecimento e a formação profissional também fazem parte de sua missão. Cabe aqui destacar a presença da Unesp em mais de 25 cidades espalhadas pelos quatro cantos do Estado, cuja atuação contribui para formar profissionais atentos a  realidade e ao desenvolvimento local.

As três universidades gozam de autonomia para planejar e gerir suas atividades desde 1989. Exercem essa atribuição com sucesso, apesar do regramento engessado da administração pública.

A proposta do PL 529/2020 de transferir o excedente não utilizado a cada ano para o tesouro estadual comprometera¡ o planejamento de ações de longo prazo. Ao contra¡rio, o PL proposto pelo senhor estimula a utilização imediata de recursos, de modo a eliminar as sobras, com grande prejua­zo aos processos de longa duração que caracterizam a pesquisa cienta­fica.

A Fapesp éexemplo de sucesso mundial entre as agaªncias de fomento. Sua atuação se baseia nas melhores prática s internacionais para a seleção e acompanhamento de projetos cienta­ficos e tecnola³gicos. A principal renda da Fapesp vem do Estado “como renda de sua privativa administração”. Cabe ressaltar que graças a  visão do então governador Carvalho Pinto criou-se um patrima´nio renta¡vel a partir de uma dotação inicial e as rendas deste patrima´nio são recursos da Fapesp previstos em lei. Essa visão do então governador éque garante hádécadas a estabilidade das linhas regulares de fomento a  pesquisa e de criação de projetos estratanãgicos, mesmo em situações de instabilidade econa´mica ou de flutuações de moedas estrangeiras. Os recursos extraordina¡rios alocados nas recentes crises sanita¡rias da zika e da covid-19, ou os investimentos realizados no Projeto Genoma hámais de duas décadas, que colocaram o Brasil entre o seleto clube dospaíses avana§ados em biotecnologia, são exemplos de uso desses recursos que complementam o ora§amento da Fapesp para ações fundamentais para o interesse paºblico. Isso significa dizer que não háempenho destes recursos, eles garantem a missão regimental da Fapesp, estabelecida em lei.

Caro governador, precisamos da sua ajuda para explicar a  sociedade que as universidades são essenciais para transformar conhecimento em riqueza. As empresas não teriam como operar sem os estoques de conhecimentos e o pessoal qualificado e formado pelas nossas universidades. E, sem esses ingredientes, as empresas dificilmente gerara£o as inovações relevantes para a economia e a sociedade.

O Estado de Sa£o Paulo produz quase a metade da produção cienta­fica brasileira indexada em bases internacionais e cerca de um tera§o das riquezas do Paa­s. A regia£o metropolitana, onde estãoa USP, a maior e mais importante universidade de pesquisa da Amanãrica Latina, não dispaµe de um parque tecnola³gico, que geraria sinergias entre a criação de conhecimento e sua transformação em inovações pelas empresas. A nossa existaªncia no mercado internacional éinsignificante. O Brasil participa com algo em torno de 1% do comanãrcio exterior mundial. A contribuição da produção cienta­fica brasileira se aproxima dos 3% (três vezes mais do que a participação em transações comerciais). A nossa economia émuito fechada, a mais fechada do G20, e évoltada para o consumo interno que exige pouca competitividade e, por isso, não écapaz e não tem incentivos para utilizar o estoque de conhecimento produzido nas universidades e institutos de pesquisa.

A ciência e a tecnologia impactam também a economia madura e diversificada do Estado, composta pelas indaºstrias automobila­stica, taªxtil, química, aerona¡utica e de informa¡tica, que precisam se tornar mais competitivas. O asfalto ou as redes ferrovia¡rias, que foram as alavancas de progresso do passado, hoje são representadas por sofisticada infraestrutura de tecnologias de informação assistidas por inteligaªncia artificial e sistemas de automação. O sistema financeiro, agropecua¡rio e da saúde são nichos de oportunidade para intervenções estruturadas de ciência e tecnologia, voltadas para gerar servia§os mais eficientes e produtos de maior valor agregado. Ha¡ oportunidades para reinventar o mundo quando se pensa nas áreas de energia, loga­stica e mobilidade urbana, segurança pública, habitação, manejo do ambiente e do clima e promoção da saúde individual e populacional. As secretarias de Estado podem ser catalizadoras de algumas destas iniciativas e atrair as empresas na busca de soluções inovadoras. O modelo dos Centros de Engenharia de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids-Fapesp) agrupa pesquisadores de universidades, institutos e empresas cofinanciados por estas instituições e poderia também ter a participação das secretarias de Estado. O mesmo modelo também serviria para aproximar grupos interdisciplinares das universidades, que fazem abordagens anala­ticas para subsidiar políticas públicas ou priorizar ações governamentais.

Senhor governador, éimperativo o reexame de sua proposta contida no PL 529/2020. Ha¡ muito a ser realizado e melhorado no Estado de Sa£o Paulo. Por que mexer no que funciona e comprometer o futuro?

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


JoséEduardo Krieger
Professor titular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Laborata³rio de Genanãtica e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (Incor) do Hospital da Cla­nicas (HC-FMUSP)

 

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