“Um professor não énem mais nem menos inteligente do que qualquer outro homem; ele geralmente fornece uma grande quantidade de fatos a observaa§a£o daqueles que procuram†(Jacques Rancia¨re)[1]

Domanio paºblico
Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, aos 24 de setembro de 2020 d.C., o atual ministro da Educação sugeriu que “hoje ser professor†seria “quase uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisaâ€. Felizmente, a afirmação de Milton Ribeiro suscitou numerosos protestos de internautas nas redes sociais, inclusive uma carta aberta do escritor Igna¡cio de Loyola Branda£o, a sugerir que o professor e pastor pedisse desculpas a categoria.
Longe de mim fazer ressalvas ao autor de Nãovera¡spaís nenhum, distopia publicada háquase 40 anos que retrata uma terra arrasada osesta –, tomada por dogmatismos em nome da democracia; barbaridades em nome da suposta ordem; hipocrisias em nome da moralidade; doutrinação polatica em nome da liberdade de mercado etc.
Mas, salvo engano, penso que poderaamos sonhar um pouco mais alto e recomendar ao entrevistado que, ao menos por educação, ele se desculpasse com os seus colegas de ofacio; com os docentes que julga incapazes, sem conhecer; com os alunos, monitores, estagia¡rios e pesquisadores (inclusive os “sem-bolsaâ€)país afora; com os pais e ma£es que atuam em parceria com educadoras e educadores; com os familiares, amigos e conhecidos dos professores.
Por acaso, a maior parte dos cidada£os civis, religiosos, militares e polaticos da “Pa¡tria Amada†chegaram aonde supaµem estar graças a figuras que, porventura, tenham lhes ensinado algumas coisas, situadas entre os conteaºdos formais (ministrados dentro ou fora da sala de aula) e os conselhos de vida, concedidos durante o intervalo de 10 ou 20 minutos entre as aulas. Quem leciona háduas décadas, como eu, certamente tera¡ pilhas de depoimentos sobre as maºltiplas tarefas e competaªncias do professor.
Seria o caso de perguntar: Milton Ribeiro teria dito o mesmo em relação a profissionais de outras áreas, como médicos, advogados, engenheiros, policiais, bombeiros, secreta¡rios, dentistas, oftalmologistas, almoxarifes, bartenders, enfermeiros, técnicos de radiologia, vendedores e, por que não dizermos, polaticos? Suponho que não, pois, como ensinou Roland Barthes, “[…] o poder (a libido dominandi) aa esta¡, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poderâ€[2].
Lição elementar da lógica: o risco da generalização éque, além de (fingir) ignorar as condições preca¡rias de trabalho docente e silenciar perante a falta de investimentos em ensino e pesquisa, o representante ma¡ximo da educação contradiz o título do posto a que foi ala§ado, sucedendo a colegas que declararam guerra a Educação e a Ciência; negaram a história; ridicularizaram docentes e discentes na televisão; inventaram experiências inexistentes no curraculo etc. etc. etc. Teriam eles sido ministros por acaso?
O problema éque sou desses que tomaram gosto por analisar e interpretar textos, especialmente quando envolvem circunsta¢ncias nada casuais. Parece-me descabida boa-fésupor espontaneidade em declarações como a de Milton Ribeiro. Afirmações desse quilate, veiculadas em jornais de grande circulação, alcana§am milhões de brasileiros.
Palavras feito aquelas, aparentemente soltas, embora proferidas por um professor que ocupa a pasta da Educação, colaboram com que a sociedade veja incompetaªncia profissional onde falta remuneração justa e estrutura adequada nas escolas e universidades; condene “assistencialismoâ€, em vez de defender o direito de criana§as, jovens e adultos ao ensino gratuito, laico e de qualidade; suponha haver profissionais do acaso, onde sobram provas de que os professores constituem uma das classes mais desprestigiadas e precarizadas (nopaís onde ler, escrever, realizar operações ba¡sicas de aritmanãtica e raciocinar continuam sendo pontos mais do que fracos).
Posso afiana§ar que muito do pouco que sou guarda relação direta com o colanãgio que frequentei e a universidade em que estudei. Talvez por ser filho e sobrinho de professores; talvez por ter confiado nos bons mestres e mestras que tive; talvez por partilhar do dia¡logo com sa¡bios colegas de giz, lousa e saliva; talvez por ser curioso; sabe-se la¡, eu tenha me tornado professor.
Creio que eu atéconsiga “fazer outras coisasâ€, além de pesquisar, preparar e vender aulas. Mas, ainda que tivesse me tornado professor por acaso ou conveniaªncia, suponho que isso não impediria me empenhar em fazer o melhor por mim e pelas(os) estudantes, justamente para que desconfiem daqueles sujeitos que recorrem a hipocrisia, ao negacionismo e ao senso comum como pseudoargumentos.
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Jean Pierre Chauvin
Professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA/USP