Opinião

Professor por acaso?
“Um professor não énem mais nem menos inteligente do que qualquer outro homem; ele geralmente fornece uma grande quantidade de fatos a  observaa§a£o daqueles que procuram” (Jacques Rancia¨re)[1]
Por Jean Pierre Chauvin - 02/10/2020


Doma­nio paºblico

Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, aos 24 de setembro de 2020 d.C., o atual ministro da Educação sugeriu que “hoje ser professor” seria “quase uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa”. Felizmente, a afirmação de Milton Ribeiro suscitou numerosos protestos de internautas nas redes sociais, inclusive uma carta aberta do escritor Igna¡cio de Loyola Branda£o, a sugerir que o professor e pastor pedisse desculpas a  categoria.

Longe de mim fazer ressalvas ao autor de Nãovera¡spaís nenhum, distopia publicada háquase 40 anos que retrata uma terra arrasada osesta –, tomada por dogmatismos em nome da democracia; barbaridades em nome da suposta ordem; hipocrisias em nome da moralidade; doutrinação pola­tica em nome da liberdade de mercado etc.

Mas, salvo engano, penso que podera­amos sonhar um pouco mais alto e recomendar ao entrevistado que, ao menos por educação, ele se desculpasse com os seus colegas de ofa­cio; com os docentes que julga incapazes, sem conhecer; com os alunos, monitores, estagia¡rios e pesquisadores (inclusive os “sem-bolsa”)país afora; com os pais e ma£es que atuam em parceria com educadoras e educadores; com os familiares, amigos e conhecidos dos professores.

Por acaso, a maior parte dos cidada£os civis, religiosos, militares e pola­ticos da “Pa¡tria Amada” chegaram aonde supaµem estar graças a figuras que, porventura, tenham lhes ensinado algumas coisas, situadas entre os conteaºdos formais (ministrados dentro ou fora da sala de aula) e os conselhos de vida, concedidos durante o intervalo de 10 ou 20 minutos entre as aulas. Quem leciona háduas décadas, como eu, certamente tera¡ pilhas de depoimentos sobre as maºltiplas tarefas e competaªncias do professor.

Seria o caso de perguntar: Milton Ribeiro teria dito o mesmo em relação a profissionais de outras áreas, como médicos, advogados, engenheiros, policiais, bombeiros, secreta¡rios, dentistas, oftalmologistas, almoxarifes, bartenders, enfermeiros, técnicos de radiologia, vendedores e, por que não dizermos, pola­ticos? Suponho que não, pois, como ensinou Roland Barthes, “[…] o poder (a libido dominandi) aa­ esta¡, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder”[2].

Lição elementar da lógica: o risco da generalização éque, além de (fingir) ignorar as condições preca¡rias de trabalho docente e silenciar perante a falta de investimentos em ensino e pesquisa, o representante ma¡ximo da educação contradiz o tí­tulo do posto a que foi ala§ado, sucedendo a colegas que declararam guerra a  Educação e a  Ciência; negaram a história; ridicularizaram docentes e discentes na televisão; inventaram experiências inexistentes no curra­culo etc. etc. etc. Teriam eles sido ministros por acaso?

O problema éque sou desses que tomaram gosto por analisar e interpretar textos, especialmente quando envolvem circunsta¢ncias nada casuais. Parece-me descabida boa-fésupor espontaneidade em declarações como a de Milton Ribeiro. Afirmações desse quilate, veiculadas em jornais de grande circulação, alcana§am milhões de brasileiros.

Palavras feito aquelas, aparentemente soltas, embora proferidas por um professor que ocupa a pasta da Educação, colaboram com que a sociedade veja incompetaªncia profissional onde falta remuneração justa e estrutura adequada nas escolas e universidades; condene “assistencialismo”, em vez de defender o direito de criana§as, jovens e adultos ao ensino gratuito, laico e de qualidade; suponha haver profissionais do acaso, onde sobram provas de que os professores constituem uma das classes mais desprestigiadas e precarizadas (nopaís onde ler, escrever, realizar operações ba¡sicas de aritmanãtica e raciocinar continuam sendo pontos mais do que fracos).

Posso afiana§ar que muito do pouco que sou guarda relação direta com o colanãgio que frequentei e a universidade em que estudei. Talvez por ser filho e sobrinho de professores; talvez por ter confiado nos bons mestres e mestras que tive; talvez por partilhar do dia¡logo com sa¡bios colegas de giz, lousa e saliva; talvez por ser curioso; sabe-se la¡, eu tenha me tornado professor.

Creio que eu atéconsiga “fazer outras coisas”, além de pesquisar, preparar e vender aulas. Mas, ainda que tivesse me tornado professor por acaso ou conveniaªncia, suponho que isso não impediria me empenhar em fazer o melhor por mim e pelas(os) estudantes, justamente para que desconfiem daqueles sujeitos que recorrem a  hipocrisia, ao negacionismo e ao senso comum como pseudoargumentos.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Jean Pierre Chauvin
Professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA/USP

 

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