Opinião

A democracia sem populismo pode nos salvar
Esta¡ na hora de reagir, focando no perigo comum, a extina§a£o da espanãcie, com a clareza de que somente com um regime democra¡tico, onde negacionismo e populismo não tenham Espaço, poderemos ultrapassar estes momentos.
Por Hernan Chaimovich - 04/10/2020


Doma­nio paºblico

Estou pensando no debate, nos comenta¡rios que se seguiram, na CNN e na FOX e, sobretudo, nos comenta¡rios que estãoaparecendo nas redes sociais elogiando o Trump e difamando o Biden, ambos candidatos a  presidaªncia dos EUA. Cada dia que passa, aumenta o meu temor de que os regimes democra¡ticos no mundo estejam desaparecendo. No Brasil, soma-se a este medo a constatação de que o respeito pela educação, pela ciência e pela tecnologia se esvai, com atitudes concretas do presidente Bolsonaro e, quem diria, do governador Doria. Esta reflexa£o se soma a minha preocupação com a situação que o planeta enfrenta hoje. Esta¡ cada dia mais claro que a espanãcie humana enfrenta uma tempestade perfeita composta de três categorias de traganãdias: desigualdade social, desastres ecola³gicos e pandemias. Nãoénecessa¡rio consultar as runas, os astra³logos ou as profecias religiosas para ver, perto de nós, componentes dessas traganãdias. Nãohánem exagero nem drama nesta constatação, afinal são dados experimentais que prenunciam, simplesmente, a possibilidade da extinção de mais uma espanãcie, a humana. Um cientista, como eu, se quer permanecer cientista, nunca pode se limitar apenas a observar um fena´meno. Minimamente, o fena´meno observado, já definido pela comunidade dos cientistas como observa¡vel, deve ser descrito.

A comunidade que aprecia esta observação pode, claro, tentar criticar a sua validade, mas: como negar que a distância entre os que tem e os que não tem estãoaumentando no mundo todo, e que esta pandemia escancara essa distância? Como esconder o fato de que, cada vez mais, os 1% de mais posses são donos de porcentagens maiores dos produtos nacionais brutos? Como esconder os milhares de mortos pela pandemia de covid-19? Como negar, depois de três ou quatro pandemias nas últimas décadas, que devemos nos preparar para a próxima? Por fim, ésão sentir o calor dos últimos dias, os extremos clima¡ticos que se repetem, a destruição das florestas e do cerrado, a acidificação dos oceanos, entre muitos outros indicadores, para afirmar que o prenunciado ponto de não retorno do equila­brio deste mundo como conhecemos estãopra³ximo.

A quantidade de espanãcies animais, vegetais ou microbianas deste planeta que desapareceram, inaºmeras sem deixar rastros, étão enorme que nem sabemos quantifica¡-las. Assim, a desaparição de mais uma, a humana, poderia nem deixar marcas indelanãveis. Mas, a  diferença dos dinossauros, ou os mastodontes, a espanãcie humana tem plena consciência de que a sua desaparição como espanãcie não éinevita¡vel. A princa­pio, nada impede que, com a ciência e a tecnologia existentes e as que estãopor vir, o homo sapiens possa reverter, em grande medida, as categorias tra¡gicas que hoje nos ameaa§am.

A barreira que nos impede de enfrentar iniquidade social, mudança climática e pandemia não passa nem pela ciência nem pela tecnologia, e se resume a uma única palavra: pola­tica.

Estratanãgias racionais de curto, manãdio e longo prazo, com marcos temporais de aferição bem definidos, metas acordadas e mensura¡veis podem ser formuladas para impedir que a temperatura do planeta exceda 2oC nos pra³ximos trinta anos. Na verdade, algumas destas já foram formuladas desde a Conferência do Clima no Brasil em 1992.

Diminuição das abissais diferenças socioecona´micas que nos separam dependem de medidas que visam a igualar as oportunidades e passam, sobretudo por três pilares: educação, educação e educação. Claro que ninguanãm aprende de esta´mago vazio, claro que neste século não se aprende nem se obtanãm trabalho sem acesso a  internet, mas esse patamar ma­nimo permite educação, e somente assim serápossí­vel evitar o fosso alastrante prenunciado pela era da informa¡tica. Tambanãm éinaceita¡vel uma concentração de renda gigantesca que permite, atéempaíses desenvolvidos, a existaªncia de segmentos da população desassistidos e mal nutridos.

Consciaªncia da ausaªncia de fronteiras para va­rus ou bactanãrias pandaªmicas, bem como a necessidade de comunidades locais de ciência bem estruturadas, capazes de dar orientações a políticas racionais de saúde, ciência de fronteira vigilante, entre outros componentes estratanãgicos, podem preparar o mundo para futuras pandemias.

As condições para impedir a desaparição da espanãcie, portanto, estãodadas. Estamos munidos de conhecimento e de tecnologia, capacidade de enfrentar enormes desafios com mais ciaªncia, tecnologia e humanidade. Poranãm, quando um candidato a presidente da maior potaªncia planeta¡ria se recusa a declarar sua repulsa aos movimentos de supremacia branca, declara para um grupo nazista que deve, simplesmente, ter paciaªncia, anuncia em alto e bom som que aceita os resultados da eleição somente se ele for eleito, e ainda não se manifesta se vai aceitar qualquer resultado eleitoral sem induzir a  violência seus seguidores, édifa­cil ver saa­das consequentes para evitar as traganãdias da tempestade perfeita.

Por aqui, o atual presidente, além de sua lamenta¡vel atitude perante a pandemia de covid-19, se da¡ ao luxo de destacar o negacionismo das queimadas da Amaza´nia e do Pantanal, que se fazem presentes em seu discurso como propaganda da suposta pola­tica ambiental na mais importante instituição multilateral, a ONU, num discurso lamenta¡vel, repleto de inverdades. Já no Estado de Sa£o Paulo, onde pesquisa e ensino superior vão contribuindo para o desenvolvimento intelectual, social e econa´mico, o governador pretende acabar com a autonomia das universidades e da Fundação de Amparo a  Pesquisa, que permite que este Estado seja o mais desenvolvido do Paa­s.

Em um Estado democra¡tico, o enfrentamento a tempestades perfeitas como a descrita deveria conduzir a um debate social amplo onde as melhores armas seriam usadas para mitigar cada um dos componentes que nos ameaa§am, visando ao enfrentamento e a  diminuição do sofrimento de todos. Nãoéisso que estamos vendo, nem nos Estados Unidos nem no Brasil.

Esta¡ na hora de reagir, focando no perigo comum, a extinção da espanãcie, com a clareza de que somente com um regime democra¡tico, onde negacionismo e populismo não tenham Espaço, poderemos ultrapassar estes momentos.

*As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Hernan Chaimovich
Professor Emanãrito do Instituto de Quí­mica da USP e ex-presidente do CNPq

 

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