O primeiro argumento a favor da vacinação leva em consideraça£o que o Homo sapiens deixou de viver num mundo “naturalâ€, contribuindo sobremaneira para isso o crescimento exponencial e descontrolado da populaa§a£o humana em relação a s outras
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Por que se vacinar?
Esta éuma questãocentral na atualidade, principalmente devido ao movimento antivacinas (anti-vax) que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como um dos dez maiores riscos a saúde global. Esse movimento se baseou em estudo que associava o desenvolvimento de autismo em criana§as vacinadas, publicado em conceituado peria³dico cientafico (Lancet), mas os dados apresentados eram fraudulentos e o artigo foi retratado. Mesmo assim, no entanto, o movimento antivacinas persistiu.
O primeiro argumento a favor da vacinação leva em consideração que o Homo sapiens deixou de viver num mundo “naturalâ€, contribuindo sobremaneira para isso o crescimento exponencial e descontrolado da população humana em relação a s outras espanãcies animais. No caso da atual pandemia (covid-19), fica clara a contribuição da globalização e dos meios de transporte na disseminação da doença no planeta. Em outras espanãcies que também vivem em bandos, as infecções ficam restritas a regia£o do seu habitat e a seleção natural atua hámilaªnios nessas espanãcies, preservando uns e atingindo outros.
Em qualquer infecção hávaria¡veis como carga infecciosa e padrãogenanãtico, tanto do hospedeiro como do agente infeccioso, que poupam alguns de sucumbir a s infecções. Poranãm, deixar a seleção natural operar na espanãcie humana éretroceder alguns séculos no tempo, negar os benefacios evidentes da medicina moderna e ignorar as mortes que poderiam ser evitadas.
Um breve hista³rico das vacinas
A história das vacinas éfascinante, poranãm vou me ater apenas aos fatos mais marcantes. No fim do século XVIII, o médico inglês Edward Jenner resolveu vacinar o filho do seu jardineiro com um material obtido de lesões (paºstulas ospox no inglês) semelhantes a varaola de peles de ordenhadoras de vacas que haviam contraado essa infecção no manuseio com as vacas (causada pelo varus cowpox). Já se sabia na anãpoca que ordenhadoras de vacas eram protegidas contra a varaola (causada pelo varus smallpox). Para provar que o menino estaria protegido após a vacinação, Jenner inoculou o menino com material obtido de pessoas com varaola, um experimento que não seria permitido hoje em dia considerando o risco e a bioanãtica. O fato éque o filho do jardineiro não desenvolveu varaola e Jenner publicou o seu trabalho sobre esse procedimento, que denominou variolae vaccinae (a “vacina da varaolaâ€, sendo que vaccinae deriva do latim vacca), em 1798.
A astaºcia de Jenner foi juntar dois fatos conhecidos: 1) as ordenhadoras de vacas eram protegidas da varaola; e 2) a variolização, um procedimento praticado na China e em outrospaíses, que consistia em escarificar a pele de indivíduos sadios com laquido obtido de crostas de varaola de paciente infectado, como uma tentativa de prevenir a varaola, o que nem sempre dava certo. Ou seja, juntando esses dois fatos, Jenner conseguiu vacinar o filho do seu jardineiro com mais segurança que o manãtodo usado na variolização.
O problema maior da vacina de Jenner na anãpoca era como obter esse material em quantidade para vacinar mais pessoas. Uma saada foi fazer a passagem do material vacinal de uma pessoa para outra e, evidentemente, isso acarretou a disseminação de outras infecções, como erisipela, safilis etc. Esse problema da produção da vacina e seu armazenamento são começou a ser resolvido dois séculos depois. A mortalidade da varaola na sua forma grave (varaola major) chegava a naveis elevados (acima de 30%) e estima-se que ao longo do século XX tenha causado 500 milhões de mortes, dez vezes mais que a gripe espanhola (A history of immunology).
Um pouco mais de história
Somente no fim do século XIX éque se estabeleceu a relação entre doenças e microrganismos, devido aos trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch, dois cientistas fundadores da microbiologia e de duas escolas (uma na Frana§a e outra na Alemanha) geradoras de vacinas eficazes contra infecções, que foram fundamentais para o surgimento de um novo ramo do conhecimento, a imunologia.
A primeira experiência de Pasteur com as vacinas relacionava-se com a ca³lera avia¡ria, que causa grandes prejuazos aos criadores de galinhas. A vacina foi descoberta por acaso, pois, ao usar uma cultura de Pasteurella multocida, bactanãria causadora da ca³lera, que havia sido esquecida na bancada por um assistente que saara de fanãrias, foi verificado que a injeção dessa cultura não causava ca³lera nas galinhas. Mais ainda, se esses animais fossem inoculados com uma cultura nova que causava ca³lera também não desenvolviam a doena§a.
Pasteur resolveu homenagear Jenner e cunhou o nome de vacina para qualquer agente usado para imunizar contra infecções.
Em 1885, Pasteur aplicou a vacina antirra¡bica, usando o mesmo princapio de envelhecimento do agente infeccioso, numa criana§a que foi mordida por um ca£o com raiva. A criana§a sobreviveu e o trabalho de Pasteur teve grande repercussão social, dando inicio a aplicação de conhecimentos da microbiologia/imunologia na medicina.
A vacina antirra¡bica havia sido desenvolvida anteriormente, por Emile Roux, em ca£es, usando amostras de tecido nervoso envelhecido contendo o varus da raiva. Robert Koch, por sua vez, descobriu o bacilo da tuberculose, obtendo sucesso em cultiva¡-lo em laboratório e, em seguida, conseguindo reproduzir a doença em animais com o produto dessa cultura.
Esses três eventos fazem parte do postulado de Koch e, junto com Pasteur, estabelecem a teoria microbiana (germes) das doena§as.
Koch não conseguiu desenvolver uma vacina para a tuberculose, mas seus discapulos e colegas Behring, Ehrlich e Kitasato desenvolveram uma nova maneira de produzir vacinas para a difteria e o tanãtano. Na realidade, essas vacinas se basearam no trabalho pioneiro de Shibasaburo Kitasato, que mostrou ser possível proteger um animal contra o tanãtano transferindo soro de animal que havia sido infectado anteriormente. Por exemplo, quando o soro de coelhos infectados com Clostridium tetani era transferido para camundongos, estes se tornavam protegidos contra a bactanãria ou a toxina teta¢nica.
Essa prática recebeu o nome de soroterapia e o procedimento foi denominado de imunização passiva, pois era passivamente transferido, sendo aplicado em soldados feridos na guerra para evitar o desenvolvimento de tanãtano, o que era comum na anãpoca. Posteriormente, foi demonstrado que a mistura do soro (anticorpos) com a bactanãria neutralizava o efeito da bactanãria e que os animais tornavam-se imunes a ela. Esse processo dependia de uma resposta ativa do animal ao estamulo, sendo a base imunola³gica de todas as vacinas.
Paralelamente aos trabalhos do grupo alema£o, a‰mile Roux e Alexandre Yersin, do grupo francaªs, caracterizaram a toxina da difteria e utilizaram cavalos para obter soro antitoxina em grande quantidade e puderam comprovar a eficácia da soroterapia na redução de casos fatais de difteria na população.
Chama a atenção que tanto a patologia da difteria como a do tanãtano se deve a toxinas e que os soros (parte fluida do sangue denominada de humoral e que contanãm anticorpos) previnem totalmente essas doena§as. Isso revela que a imunidade humoral osque hoje sabemos ser mediada por anticorpos oséfundamental para controlar essas infecções. Poranãm, o mesmo princapio não foi possível ser aplicado na tuberculose, o que na anãpoca gerou grande frustração. Hoje sabemos que a imunidade a tuberculose édependente de imunidade celular, um mecanismo imunológico que depende de células e que não étransferido por anticorpos.
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Momtchilo Russo
Professor titular do Departamento de Imunologia do ICB-USP e do Departamento de Molanãstias Infecciosas da FMUSP