Opinião

Vacine-se contra tudo osParte I
O primeiro argumento a favor da vacinação leva em consideraça£o que o Homo sapiens deixou de viver num mundo “natural”, contribuindo sobremaneira para isso o crescimento exponencial e descontrolado da populaa§a£o humana em relação a s outras
Por Momtchilo Russo - 22/10/2020


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Por que se vacinar?

Esta éuma questãocentral na atualidade, principalmente devido ao movimento antivacinas (anti-vax) que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como um dos dez maiores riscos a  saúde global. Esse movimento se baseou em estudo que associava o desenvolvimento de autismo em criana§as vacinadas, publicado em conceituado peria³dico cienta­fico (Lancet), mas os dados apresentados eram fraudulentos e o artigo foi retratado. Mesmo assim, no entanto, o movimento antivacinas persistiu.

O primeiro argumento a favor da vacinação leva em consideração que o Homo sapiens deixou de viver num mundo “natural”, contribuindo sobremaneira para isso o crescimento exponencial e descontrolado da população humana em relação a s outras espanãcies animais. No caso da atual pandemia (covid-19), fica clara a contribuição da globalização e dos meios de transporte na disseminação da doença no planeta. Em outras espanãcies que também vivem em bandos, as infecções ficam restritas a  regia£o do seu habitat e a seleção natural atua hámilaªnios nessas espanãcies, preservando uns e atingindo outros.

Em qualquer infecção hávaria¡veis como carga infecciosa e padrãogenanãtico, tanto do hospedeiro como do agente infeccioso, que poupam alguns de sucumbir a s infecções. Poranãm, deixar a seleção natural operar na espanãcie humana éretroceder alguns séculos no tempo, negar os benefa­cios evidentes da medicina moderna e ignorar as mortes que poderiam ser evitadas.

Um breve hista³rico das vacinas

A história das vacinas éfascinante, poranãm vou me ater apenas aos fatos mais marcantes. No fim do século XVIII, o médico inglês Edward Jenner resolveu vacinar o filho do seu jardineiro com um material obtido de lesões (paºstulas ospox no inglês) semelhantes a  vara­ola de peles de ordenhadoras de vacas que haviam contraa­do essa infecção no manuseio com as vacas (causada pelo va­rus cowpox). Já se sabia na anãpoca que ordenhadoras de vacas eram protegidas contra a vara­ola (causada pelo va­rus smallpox). Para provar que o menino estaria protegido após a vacinação, Jenner inoculou o menino com material obtido de pessoas com vara­ola, um experimento que não seria permitido hoje em dia considerando o risco e a bioanãtica. O fato éque o filho do jardineiro não desenvolveu vara­ola e Jenner publicou o seu trabalho sobre esse procedimento, que denominou variolae vaccinae (a “vacina da vara­ola”, sendo que vaccinae deriva do latim vacca), em 1798.

A astaºcia de Jenner foi juntar dois fatos conhecidos: 1) as ordenhadoras de vacas eram protegidas da vara­ola; e 2) a variolização, um procedimento praticado na China e em outrospaíses, que consistia em escarificar a pele de indivíduos sadios com la­quido obtido de crostas de vara­ola de paciente infectado, como uma tentativa de prevenir a vara­ola, o que nem sempre dava certo. Ou seja, juntando esses dois fatos, Jenner conseguiu vacinar o filho do seu jardineiro com mais segurança que o manãtodo usado na variolização.

O problema maior da vacina de Jenner na anãpoca era como obter esse material em quantidade para vacinar mais pessoas. Uma saa­da foi fazer a passagem do material vacinal de uma pessoa para outra e, evidentemente, isso acarretou a disseminação de outras infecções, como erisipela, sa­filis etc. Esse problema da produção da vacina e seu armazenamento são começou a ser resolvido dois séculos depois. A mortalidade da vara­ola na sua forma grave (vara­ola major) chegava a na­veis elevados (acima de 30%) e estima-se que ao longo do século XX tenha causado 500 milhões de mortes, dez vezes mais que a gripe espanhola (A history of immunology).

Um pouco mais de história

Somente no fim do século XIX éque se estabeleceu a relação entre doenças e microrganismos, devido aos trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch, dois cientistas fundadores da microbiologia e de duas escolas (uma na Frana§a e outra na Alemanha) geradoras de vacinas eficazes contra infecções, que foram fundamentais para o surgimento de um novo ramo do conhecimento, a imunologia.

A primeira experiência de Pasteur com as vacinas relacionava-se com a ca³lera avia¡ria, que causa grandes prejua­zos aos criadores de galinhas. A vacina foi descoberta por acaso, pois, ao usar uma cultura de Pasteurella multocida, bactanãria causadora da ca³lera, que havia sido esquecida na bancada por um assistente que saa­ra de fanãrias, foi verificado que a injeção dessa cultura não causava ca³lera nas galinhas. Mais ainda, se esses animais fossem inoculados com uma cultura nova que causava ca³lera também não desenvolviam a doena§a.

Pasteur resolveu homenagear Jenner e cunhou o nome de vacina para qualquer agente usado para imunizar contra infecções.

Em 1885, Pasteur aplicou a vacina antirra¡bica, usando o mesmo princa­pio de envelhecimento do agente infeccioso, numa criana§a que foi mordida por um ca£o com raiva. A criana§a sobreviveu e o trabalho de Pasteur teve grande repercussão social, dando ini­cio a  aplicação de conhecimentos da microbiologia/imunologia na medicina.

A vacina antirra¡bica havia sido desenvolvida anteriormente, por Emile Roux, em ca£es, usando amostras de tecido nervoso envelhecido contendo o va­rus da raiva. Robert Koch, por sua vez, descobriu o bacilo da tuberculose, obtendo sucesso em cultiva¡-lo em laboratório e, em seguida, conseguindo reproduzir a doença em animais com o produto dessa cultura.

Esses três eventos fazem parte do postulado de Koch e, junto com Pasteur, estabelecem a teoria microbiana (germes) das doena§as.

Koch não conseguiu desenvolver uma vacina para a tuberculose, mas seus disca­pulos e colegas Behring, Ehrlich e Kitasato desenvolveram uma nova maneira de produzir vacinas para a difteria e o tanãtano. Na realidade, essas vacinas se basearam no trabalho pioneiro de Shibasaburo Kitasato, que mostrou ser possí­vel proteger um animal contra o tanãtano transferindo soro de animal que havia sido infectado anteriormente. Por exemplo, quando o soro de coelhos infectados com Clostridium tetani era transferido para camundongos, estes se tornavam protegidos contra a bactanãria ou a toxina teta¢nica.

Essa prática recebeu o nome de soroterapia e o procedimento foi denominado de imunização passiva, pois era passivamente transferido, sendo aplicado em soldados feridos na guerra para evitar o desenvolvimento de tanãtano, o que era comum na anãpoca. Posteriormente, foi demonstrado que a mistura do soro (anticorpos) com a bactanãria neutralizava o efeito da bactanãria e que os animais tornavam-se imunes a ela. Esse processo dependia de uma resposta ativa do animal ao esta­mulo, sendo a base imunola³gica de todas as vacinas.

Paralelamente aos trabalhos do grupo alema£o, a‰mile Roux e Alexandre Yersin, do grupo francaªs, caracterizaram a toxina da difteria e utilizaram cavalos para obter soro antitoxina em grande quantidade e puderam comprovar a eficácia da soroterapia na redução de casos fatais de difteria na população.

Chama a atenção que tanto a patologia da difteria como a do tanãtano se deve a toxinas e que os soros (parte fluida do sangue denominada de humoral e que contanãm anticorpos) previnem totalmente essas doena§as. Isso revela que a imunidade humoral osque hoje sabemos ser mediada por anticorpos oséfundamental para controlar essas infecções. Poranãm, o mesmo princa­pio não foi possí­vel ser aplicado na tuberculose, o que na anãpoca gerou grande frustração. Hoje sabemos que a imunidade a  tuberculose édependente de imunidade celular, um mecanismo imunológico que depende de células e que não étransferido por anticorpos.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Momtchilo Russo
Professor titular do Departamento de Imunologia do ICB-USP e do Departamento de Molanãstias Infecciosas da FMUSP

 

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