Opinião

Politização da vacina afronta ciência e coloca vidas em risco
No caso da Covid-19, uma emergaªncia de saúde pública, precisamos diminuir o risco de circulaa§a£o do va­rus, então penso que devem ser obrigata³rias para todos e todas que puderem ser vacinados se não possua­rem algum tipo de contraindicaça£o,
Por Luiz Carlos Dias - 26/10/2020

O governador do Estado de Sa£o Paulo disse no último dia 16/10/2020 que, quando uma vacina for aprovada pela Agência Nacional de Vigila¢ncia Sanita¡ria (Anvisa), a vacinação contra a  Covid-19 seráobrigata³ria no Estado para as 45 milhões de pessoas e, apenas, quem tiver atestado médico, afirmando que não podera¡ receber a vacina, serádispensado de receber o imunizante. O governador paulista afirmou inicialmente que a vacinação contra a Covid-19 poderia comea§ar no dia 15 de dezembro em Sa£o Paulo, desde que Anvisa autorize o uso emergencial, mas tudo indica que ficara¡ para 2021, pois atéo momento não houve nenhuma abertura dos estudos de fase 3 em termos de eventos de pessoas contaminadas, para que se possa comparar o grupo que tomou a candidata vacinal CoronaVac com o grupo placebo.

A Anvisa informou que a agaªncia dara¡ a resposta em termos de liberação de todas as vacinas no menor tempo possí­vel. O Presidente da República afirma que a vacinação não seráobrigata³ria e ponto final. Nãopodemos aceitar a politização das vacinas como foi feito com os tratamentos a  base de medicamentos para Covid-19. As vacinas salvam vidas e são fundamentais para o bem-estar coletivo, com enorme impacto para toda a sociedade. No caso da Covid-19, uma emergaªncia de saúde pública, precisamos diminuir o risco de circulação do va­rus, então penso que devem ser obrigata³rias para todos e todas que puderem ser vacinados se não possua­rem algum tipo de contraindicação, sim.

Contradições

O Ministro da Saúde Eduardo Pazuello, em reunia£o com governadores no dia 20/10/2020, informou que o governo brasileiro compraria 46 milhões de doses da CoronaVac, após aprovação em fase 3 confirmando sua eficácia e após aprovação pela Anvisa. Mas hoje, 21/10/2020, o Presidente Bolsonaro, que classificou a CoronaVac como a "vacina chinesa de Joa£o Doria", afirmou que o Brasil não comprara¡ doses da CoronaVac, desautorizando o anaºncio feito pelo Ministro da Saúde. O Presidente afirmou que o povo brasileiro não serácobaia de ninguanãm e que a vacina precisa ser comprovada cientificamente pelo Ministanãrio da Saúde e certificada pela Anvisa.

Curioso que esta decisão veio logo após Mike Pompeo, secreta¡rio de Estado norte-americano, recomendar que o Brasil limitasse o comanãrcio com a China. Aa­ deu aquele na³ na minha cabea§a, pois esse mesmo presidente autorizou a compra da candidata vacinal de Oxford, ainda sem comprovação de eficácia e defendeu o uso indiscriminado das cloroquinas, sem qualquer evidência cienta­fica, indo contra as recomendações dos cientistas e da Anvisa. Aa­ sim, usando a população brasileira como cobaia e colocando vidas em risco. Governadores e secreta¡rios de saúde estãorevoltados com a decisão. A comunidade cienta­fica, assim como eu, estãoperplexa e incranãdula. A população brasileira precisa ter acesso a todas as vacinas seguras e eficazes aprovadas em fase 3. a‰ inaceita¡vel politizar a questãodas vacinas e colocar aspirações políticas pessoais acima da saúde pública da população brasileira.



Maior campanha de vacinação em massa da história

Essa sera¡, sem daºvida, a maior campanha de vacinação em massa da história. No Brasil, as futuras vacinas devem ser inseridas no Programa Nacional de Imunizações (PNI) para serem distribua­das para todo o Brasil. A questãosobre a loga­stica de produção e distribuição das vacinas para Covid-19 já foi discutida neste espaço aqui e neste outro artigo.  

Para vacinarmos 80% da população brasileira, ou cerca de 170 milhões de pessoas, com duas doses, precisaremos adquirir 340 milhões de vacinas, o que implica em 340 milhões de agulhas, seringas, frascos, tampas de frascos, embalagens para as agulhas e seringas. E vamos torcer para não haver escassez e nem aumento nos prea§os dos insumos. a‰ importante lembrar que tanto a malha aanãrea, como os Espaços para armazenamento das vacinas nos aeroportos e nos poraµes dos aviaµes, com ca¢maras frias para o armazenamento adequado, também vai trazer desafios loga­sticos.

Sera£o necessa¡rias milhões de embalagens, de caixas de resfriamento e embalagens tanãrmicas para armazenamento das vacinas, com muito rigor, cuidado, planejamento e organização. Segundo a OMS, cerca de 25% das vacinas no mundo, quando chegam no local de destino, estãodegradadas, por falhas no armazenamento ou no transporte. Cerca de 50% das vacinas chegam nos locais de destino sem efica¡cia, por problemas de temperatura e demora para chegar nos locais de vacinação. Sera¡ preciso uma estratanãgia bem elaborada e coordenada.




A CoronaVac ésegura e eficaz?

A CoronaVac, que, ao que tudo indica, estãose mostrando bem segura, mostrara¡ boa eficácia se o número de infectados no grupo que tomou o placebo for bem superior ao número de infectados no grupo que tomou a potencial vacina. Para ter uma ideia inicial da eficácia da candidata vacinal, espera-se a conclusão inicial de 61 eventos, ou 61 voluntários infectados, entre os milhares de voluntários no grupo que tomou o placebo e no grupo que tomou a CoronaVac.

O ensaio sofreu pequenos atrasos pois o Instituto Butantan ainda não conseguiu recrutar todos os 13 mil voluntários previstos e nem todos os voluntários já tomaram as duas doses. Uma questãocuriosa éque os equipamentos de proteção individual reduziram o número de infecções, visto que os profissionais da saúde sendo testados estãoprotegidos por rigorosos protocolos de segurança, exatamente para evitar a infecção, o que vai contra o desejado em fase 3, que éter um determinado número de eventos ou pessoas infectadas.

O Instituto Butantan ainda não tem os primeiros 61 voluntários infectados desde que o estudo cla­nico de fase 3 foi iniciado. Apenas quando este número for alcana§ado, o estudo cla­nico seráaberto temporariamente para checar a que grupo pertencem os 61 voluntários infectados e ter uma análise preliminar. O ideal éque todos ou a maior parte dos infectados esteja no grupo placebo, o que mostraria boa eficácia da candidata vacinal. Como a pandemia estãoem uma fase descendente, pode demorar a ter resultados de eficácia em fase 3.

Com o objetivo de acelerar o tempo para alcana§ar o número ma­nimo de 61 voluntários com diagnóstico de Covid-19 confirmado, o Instituto Butantan vai aumentar o número de voluntários da área de saúde. Quanto maior o número de voluntários, maior a chance de alcana§ar o número de 61 eventos com voluntários infectados. Como o espalhamento da doença diminuiu, mesmo os que tomaram o placebo ainda não adquiriram a doena§a.

Va­rus Sars-CoV-2 usado na CoronaVac éinativado

A empresa Sinovac e o Instituto Butantan apostaram no uso de uma plataforma conhecida, usando o va­rus Sars-CoV-2 inativado. Uma vez isolado e cultivado o va­rus, ele éinativado por uso de calor ou de reagentes qua­micos. Esta estratanãgia apresenta algumas vantagens, pois assim como outras vacinas, como da raiva e da gripe, sabe-se que são poucos os efeitos colaterais adversos de curto, manãdio e longo prazo. Isto vem sendo confirmado nos ensaios de fases 1, 2 e 3 com esta candidata vacinal. Para isolar e cultivar o va­rus, énecessa¡rio usar um laboratório de segurança máxima e para isso precisa de investimentos.

Essa plataforma normalmente oferece resposta humoral, de produção de anticorpos neutralizantes, mas não resposta celular, com produção de células T, o que de fato foi observado com a CoronaVac. Essa candidata vacinal precisa do uso de adjuvantes para induzir uma boa resposta no sentido de estimular o sistema imunológico e levar a  produção de anticorpos neutralizantes.

Outro ponto éa necessidade de duas doses para induzir boa reposta imune, o que tem se observado com praticamente todas as candidatas vacinais em fase 3 para a Covid-19. Este fato dificulta as estratanãgias de vacinação em massa, como já discutido em artigo aqui e neste outro aqui. 

Uma vez aprovada em fase 3, certamente havera¡ divulgação de informações sobre em que grupos a vacina tem mais eficácia e quem não pode tomar. Mas após passar em todas as fases com enorme rigor cienta­fico e ser aprovada em fase 3, a população pode confiar e deve tomar a vacina.


Estudo cla­nico mostra que os antivirais remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir
e interferon beta-1a são ineficazes contra a Covid-19

O estudo cla­nico “Ensaio Solidariedade” (Solidarity Therapeutics Trial) foi realizado durante 6 meses em 405 hospitais de mais de 30países. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os resultados publicados no dia 15/10/2020 trazem evidaªncias conclusivas de que os antivirais remdesivir, hidroxicloroquina, lopinavir/ritonavir e interferon beta-1a, são ineficazes contra a Covid-19. O “Ensaio Solidariedade” éum ensaio randomizado, padrãoouro, e envolveu 11.266 adultos, sendo 2.750 no grupo remdesivir, 954 no grupo hidroxicloroquina, 1.411 no grupo lopinavir/ritonavir, 651 no grupo interferon mais lopinavir, 1.412 no grupo Interferon e 4.088 no grupo placebo, que não recebeu nenhum medicamento.

O estudo mostrou resultados decepcionantes, sendo que os medicamentos não tiveram nenhum efeito sobre a diminuição da mortalidade, não levaram a  diminuição do tempo de internação para pacientes hospitalizados com Covid-19, não ajudaram os pacientes a se recuperar mais rapidamente e ainda registrou 1.253 mortes. A Gilead Sciences, fabricante do remdesivir, emitiu uma nota questionando os resultados do estudo afirmando que os benefa­cios do remdesivir foram demonstrados em outros três ensaios clínicos.

The Great Barrington Declaration, uma manifestação arriscada

Uma manifestação de cerca de 6400 cientistas americanos e europeus, conhecida como “The Great Barrington Declaration”, defende que os idosos e doentes nos Estados Unidos e no Reino Unido sejam protegidos e fiquem em isolamento social, mas que as pessoas sauda¡veis levem sua vida trabalhando normalmente, socializando em bares e restaurantes e participando de eventos esportivos e culturais, aumentando a circulação do va­rus com o objetivo de acelerar a obtenção da imunidade coletiva, comunita¡ria, ou de rebanho (eu odeio esta palavra).

Os signata¡rios do documento defendem que o isolamento social produz efeitos adversos tanto na saúde mental e física das pessoas, assim como na saúde pública. Eu concordo com este último ponto, mas se estes mesmospaíses, tanto la¡ como ca¡, tivessem desde o ina­cio, adotado as medidas não farmacola³gicas preconizadas pela OMS e pelos cientistas, conscientizando a sua população, nosnão estara­amos nesta quarentena tão prolongada. O problema não éisolamento social, que salvou milhões de vidas, mas as quarentenas mal feitas em virtude de tanta desinformação.

Na³s aprendemos muito sobre a pandemia, ainda hámuito aprender, mas sabemos que podem haver casos de reinfecção, que não ésão uma questãode quem sobrevive e quem morre ao ser infectado, pois sabemos dos vários efeitos colaterais e das sequelas graves no coração, no pulma£o, no cérebro, principalmente em quem tem o quadro mais grave da doena§a. Ao circular livremente, as pessoas estara£o expostas ao va­rus, algumas ficara£o doentes, va£o infectar outras pessoas próximas, outras va£o morrer e algumas que sobreviverem tera£o sequelas que podem ser irreversa­veis.

Na³s vimos o estrago que a Covid-19 causa em idosos, em pessoas com comorbidades, diabanãticos, carda­acos, imunodeprimidos e sabemos que mesmo os jovens sauda¡veis podem morrer. E essa declaração veio em um momento em que o número de hospitalizações estãocrescendo na Europa e próxima da eleição presidencial nos EUA.


Doma­nio paºblico

A pandemia da Covid-19 escancarou as desigualdades sociais, econa´micas, as discriminações estruturais e as mazelas da nossa sociedade. Uma outra publicação, assinada por cerca de 80 cientistas na revista médica The Lancet, afirma que a defesa da imunidade coletiva proposta na The Great Barrington Declaration éantianãtica e “uma fala¡cia perigosa sem evidência cienta­fica” e que a ausaªncia de medidas de controle não farmacola³gicas levaria a milhões de mortes, prolongando a pandemia, causando estragos na economia e paralisando os sistemas sanita¡rios.

Nãorestam daºvidas que as medidas não farmacola³gicas como distanciamento fa­sico, evitando aglomerações e Espaços mal ventilados, o uso de ma¡scaras, hábitos de higiene respirata³ria e de limpeza das ma£os, testes de diagnóstico confia¡veis, rastreamento de contatos das pessoas infectadas e o isolamento social são essenciais para reduzir a mortalidade e evitar o colapso dos servia§os de saúde.

Na³s ainda nem sabemos se as pessoas, que foram infectadas com a Covid-19 e se recuperaram, va£o desenvolver imunidade duradoura e, caso forem reinfectadas, podem ficar doentes e transmitir o va­rus. A melhor alternativa para se atingir a imunidade coletiva éuma cobertura vacinal ampla, com um imunizante seguro e eficaz.

Nova reinfecção

Um artigo publicado no dia 12/10/2020 na revista The Lancet Infectious Diseases mostrou um novo caso de reinfecção, descrito por pesquisadores do Laborata³rio de Saúde Paºblica do Estado de Nevada e da Universidade de Nevada, nos Estados Unidos. O paciente de 25 anos, que não pertence a grupos de risco, testou positivo para duas infecções por diferentes cepas do Sars-CoV-2 no período de apenas 48 dias. A segunda infecção foi considerada mais grave do que a primeira e ele precisou ser internado e receber suporte de oxigaªnio. Outros quatro casos de reinfecção foram confirmados na Banãlgica, Holanda, Hong Kong e Equador e comentados aqui. 

Desafio humano

Um artigo publicado no dia 20/10/2020 na revista Nature destaca que o governo brita¢nico assinou um contrato com a organização comercial de pesquisa cla­nica Open Orphan e sua subsidia¡ria hVIVO, para realizar um estudo conhecido como desafio humano (human challenge). O objetivo étestar cerca de 30-50 voluntários sauda¡veis na faixa de 18-30 anos, sem qualquer comorbidade, para que eles recebam pequenas doses do va­rus Sars-Cov-2, que causa a Covid-19, atéserem infectados, no sentido de ajudar no desenvolvimento de vacinas. Todos os voluntários sera£o internados no Royal Free Hospital, em Londres, em uma área de segurançanível3, sob rigorosos cuidados médicos.

O desafio humano funciona assim, alguns voluntários recebem uma candidata vacinal e outros recebem um placebo e numa segunda etapa, todos sera£o infectados com o va­rus Sars-CoV-2. O estudo estãoprevisto para iniciar em janeiro de 2021, desde que receba a aprovação final regulamentar dos comitaªs de anãtica. A empresa nVivo, responsável pelo desafio, tem experiência em estudos anteriores com outros va­rus respirata³rios.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Luiz Carlos Dias
Professor Titular do Instituto de Quí­mica da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Manãrito Cienta­fico e membro da Fora§a-Tarefa da UNICAMP no combate a  Covid-19.

 

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