Opinião

Vacine-se contra tudo osParte II
A vacinação éum direito, mas também uma obrigaa§a£o. Vacinar-se não éuma opa§a£o individual, pois não se vacinar, além de afetar o indiva­duo, afeta a sociedade como um todo.
Por Momtchilo Russo - 28/10/2020


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Vacinas no século XX e XXI

No século XX a produção, armazenamento e vacinação em massa tornaram-se uma realidade. O exemplo da primeira vacina contra a vara­ola éica´nico, pois mostra o ini­cio do conceito de vacinas, as dificuldades de se produzir, estocar e distribuir a vacina e o efeito da vacinação em massa. No Brasil a vacinação em massa erradicou a vara­ola em 1973, a poliomielite em 1989 e controlou o sarampo, tanãtano e outra infecções, fatos que comprovam a eficácia do Programa Nacional de Vacinação, que infelizmente sofre abalos atualmente.

Em relação a  vacinação contra o tanãtano e a difteria, o francaªs Gaston Ramon, do Instituto Pasteur, e o inglês Alexander Thomas Glenny merecem destaque. Ramon, um veterina¡rio, observou que cavalos que produziam um soro antitoxina mais potente apresentavam no local da injeção uma reação inflamata³ria maior do que aqueles com menor inflamação. Nesse sentido, ele tentou induzir uma inflamação mais intensa no local com substâncias inflamata³rias que ele denominou de adjuvantes (do latim adjuvare, ajudar) que são atualmente utilizados em várias formulações vacinais e em imunoterapias.

Glenny, por sua vez, mostrou que a resposta imune ao toxoide (toxina inativada) diftanãrico era mais intensa quando a imunização (vacina) era feita com toxoide precipitado em sal de aluma­nio referido como alum. Alum éo nome genanãrico de adjuvantes que usam aluma­nio em sua composição e que são utilizados atualmente em várias vacinas, como a tra­plice, hepatite A e B, papilomava­rus, estreptococos, meningite, entre outras.

Vacinas para tudo?

a‰ possí­vel vacinar-se contra tudo? A resposta énão. Nãose tem vacinas contra vários tipos de infecções, como mala¡ria, leishmaniose, sa­filis, toxoplasmose, HIV, hepatite C e outras. No entanto, épossí­vel prever para quais tipos de infecções serámais difa­cil produzir vacinas protetoras e eficazes. Isso porque as vacinas eficazes disponí­veis são geralmente contra infecções que causam uma doença aguda que, quando resolvida de algum modo, o indiva­duo nunca mais desenvolve a mesma doena§a, como no caso de sarampo, poliomielite, hepatite A. Por outro lado, doenças que se tornam crônicas, nas quais o indiva­duo nunca se livra do agente infeccioso, como HIV, hepatite C ou doenças que acometem o indiva­duo mais de uma vez, como mala¡ria, dificilmente tera£o vacinas. No caso de viroses, a taxa de mutação do va­rus influencia a eficiência da vacina. Assim sendo, quanto mais mutações sofre um determinado va­rus, como acontece na hepatite C e na Aids, mais difa­cil serádesenvolver uma vacina.

O exemplo do va­rus da influenza (gripe), um dos principais va­rus respirata³rios, éilustrativo. As pessoas se infectam com um tipo de va­rus especa­fico e não se infectam mais com o mesmo va­rus. No entanto, o va­rus da influenza pode sofrer mutação extensa na sua estrutura molecular (anta­genos), fena´meno denominado “deriva antigaªnica” (do inglês antigenic drift) ou sofrer pequenas mutações que acarretam pequena mudança na composição antigaªnica do va­rus (antigenic shift).

Essasmudanças tornam o va­rus muito ou um pouco diferente do original e o sistema imune deixa de reconhecaª-lo. Daa­ a necessidade de vacinar a população a cada ano, pois sempre surgem va­rus mutantes da influenza para os quais não existe memória imunola³gica. Esse também éo motivo que explica por que as pessoas podem ter gripe (influenza) várias vezes. A pandemia da gripe espanhola em 1918, que causou a morte de aproximadamente 50 milhões de pessoas, foi causada por uma deriva antigaªnica (mudança significativa) do va­rus da influenza.

Como uma vacina funciona?

De modo geral uma vacina simula uma infecção causando o ma­nimo de dano possí­vel, obedecendo ao princa­pio médico de não causar dano maior que o da infecção original (primum non nocere) e, para tanto, se usa agentes infecciosos atenuados, inativados ou fragmentados (diferentes moléculas que compõem o va­rus).

No caso da vacina da influenza, são utilizados dois tipos de vacinas: uma inativada (va­rus morto) e outra atenuada (va­rus vivo). A vacina inativada usa o va­rus fixado em formol ou partes ou subunidades do va­rus incorporadas em adjuvantes oupartículas semelhantes ao va­rus. Já a atenuada usa virions, que são va­rus que infectam mas não são capazes de se replicar.

Algumas vacinas, como a da febre amarela, são foram eficazes quando se usou va­rus vivo atenuado, o que levou muito tempo e foi difa­cil de se conseguir. Max Theiler, trabalhando na Rockefeller, desenvolveu finalmente a vacina (17D) contra a febre amarela em 1937. Va¡rias vacinas além da febre amarela usam va­rus atenuados, como a vacina oral da poliomielite e as vacinas contra sarampo, caxumba, rubanãola, entre outras.

Vacinas para covid-19

Os va­rus da familia Coronaviridae infectam humanos e a maioria deles causa uma infecção respirata³ria discreta. Poranãm, alguns va­rus recentes desta familia causaram uma Sa­ndrome Respirata³ria Aguda Severa (Sars) como éo caso do Sars-CoV-1, Mers-CoV (causador da Sa­ndrome Respirata³ria do Oriente Manãdio) e do Sars-CoV-2, este último responsável pela pandemia atual denominada de covid-19.

Uma caracterí­stica marcante da covid-19 éque o va­rus tem uma capacidade excepcional de transmissão, atingindo praticamente todo o planeta. A boa nota­cia éque a maioria das pessoas se recupera da infecção, indicando que construir uma vacina éfacta­vel. Realmente háem curso várias formulações vacinais em teste, sendo algumas em fase final.

No Brasil, pelo menos duas vacinas estãoem fase final: a vacina chinesa (Sinovac Biotech), que utiliza va­rus inativado incorporado em adjuvante (alum), e a vacina do Reino Unido, da Universidade de Oxford, que utiliza um adenova­rus de chimpanzéque não consegue se multiplicar em humanos e que foi modificado para expressar a protea­na S (spike-espa­cula), responsável pela entrada do va­rus nas células.

No futuro épossí­vel que se utilize uma combinação de vacinas e diferentes vias de administração, intramuscular e intranasal, em forma de spray, para potencializar o seu efeito protetor.

Vacine-se

Como mencionado, o programa de vacinação em massa no Brasil erradicou a vara­ola em 1973 e a poliomielite em 1989. a‰ desnecessa¡rio dizer que a vacinação reduz a mortalidade e evita internações hospitalares que são onerosas ao Paa­s como um todo. Mesmo assim, a cobertura vacinal no Brasil vem caindo, como a de poliomielite, e doenças que já hava­amos eliminado comea§am a aparecer, como o surto de sarampo em 2018. Para piorar, o movimento antivacinas ganha terreno em váriospaíses, inclusive no Brasil.

Nãoépossí­vel entender um movimento desse tipo a  luz dos benefa­cios das vacinas na prevenção de infecções na primeira infa¢ncia e provavelmente nas novas pandemias que temos e ainda teremos pela frente.

A covid-19 ilustra bem esse problema pois se trata de uma zoonose cujo va­rus Sars CoV-2, que éendaªmico em morcegos, para infectar os humanos teve que se modificar (mutação) e se adaptar aos humanos, e não o contra¡rio. Ou seja, são os microrganismos/va­rus que se adaptam aos hospedeiros, pois são eles que se multiplicam rapidamente e sofrem mutações permanentemente que permitem pular de espanãcies ou infectar várias vezes a mesma espanãcie. A adaptação dos animais émais difa­cil porque depende de seleção natural, o que demora para se estabelecer uma vez que necessita ser passada de pais para filhos.

A vacinação éum direito, mas também uma obrigação. Vacinar-se não éuma opção individual, pois não se vacinar, além de afetar o indiva­duo, afeta a sociedade como um todo. Além do mais, afirmar que são se vacina quem quer éinduzir o cidada£o a cometer um crime previsto no artigo 268 do Código Penal, referido como “infringir determinação do poder paºblico destinada a impedir a propagação de doença contagiosa”. Por se tratar de uma pandemia, a vacinação ganha contornos internacionais, ficando impossí­vel viver ou se movimentar neste planeta sem se vacinar.

Na realidade, os va­rus coevoluem com outras espanãcies e muitas vezes contribuem para a adaptação das espanãcies na natureza, como no caso da formação da placenta, e outras vezes infectam por acaso, como no caso da covid-19. No entanto, a nossa sociedade, da forma como estãoestruturada, não pode prescindir das vacinas, que cada vez mais utilizam conhecimentos cienta­ficos de ponta no seu aprimoramento.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Momtchilo Russo
Professor titular do Departamento de Imunologia do ICB-USP e do Departamento de Molanãstias Infecciosas da FMUSP

 

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