Opinião

Agricultura versus Indústria: um falso dilema
A salvaa§a£o da lavoura não estãona lavoura, mas que a lavoura mostrou que o aºnico caminho via¡vel para o desenvolvimento éo da inovaa§a£o, eficiência produtiva e competividade.
Por Antônio Marcio Buainain, Pedro Abel Vieira e Roberta Grundling - 04/11/2020


Colheita de soja | Divulgação

Importa dizer, cada vez mais, o a³bvio: para salvar a lavoura épreciso, primeiro, planta¡-la, seguindo todos os passos do “manual de operações”, das melhores prática s agropecua¡rias, que levam em conta a necessidade de compatibilizar as sustentabilidade econa´mico-financeira com as cada vez mais exigentes e necessa¡rias regras ambientais e sociais; depois épreciso cuidar para evitar as pragas e doena§as, torcer para que chova o suficiente e nos momentos certos, que o calor ou o frio não seja excessivo; e finalmente, que no momento da venda os prea§os remunerem os riscos e o esfora§o dos produtores. Essa atividade no Brasil envolve milhões de pessoas, movimenta a indaºstria, o comanãrcio local, os portos, transportes, bancos, profissionais liberais. Mas ainda assim seu papel não parece ser plenamente reconhecido pela sociedade, que a despeito do borda£o “o agro épop, o agro étudo”, veiculado em hora¡rios nobres da TV, continua vendo o setor como atrasado e subestimando sua importa¢ncia para o desenvolvimento dopaís.

No artigo A Salvação da Lavoura não éa Lavoura, publicado em O Estado de Sa£o Paulo (12/10/2020), o ex-diretor do Banco Central, Lua­s Eduardo Assis, relativiza a importa¢ncia da agricultura para a economia brasileira. Afirma ser uma “ingaªnua quimera (...) acreditar que o Brasil possa crescer puxado pelo agronega³cio” e sugere a diversificação da base produtiva. Baseado em dados empa­ricos que indicam a queda secular da participação da agricultura no PIB, de 17,7% em 1960 para 4% em 2018, o artigo retoma um velho e persistente debate que opaµe agricultura e indústria no processo de desenvolvimento, herana§a de visão que apontava a agricultura atrasada como obsta¡culo ao crescimento econa´mico. Essa oposição foi superada por evidaªncias de que durante décadas a agricultura, mesmo atrasada, foi funcional e transferiu capital e renda para bancar a industrialização, e mais recentemente pela extraordina¡ria transformação e modernização da agricultura, que vem se destacando pelo dinamismo e contribuição para a economia e sociedade brasileira.

O artigo constra³i um espantalho, desnecessa¡rio, para recomendar a necessidade de diversificação produtiva do Brasil. Nãoencontramos ninguanãm sustentando a visão de que o agronega³cio, sozinho, possa garantir o crescimento dopaís. Mas o espantalho parece ser útil e alguns chegam ao limite de indicar que o sucesso da agricultura seria responsável pela atrofia da indaºstria, diagnosticada como va­tima de uma enfermidade holandesa provocada pelos da³lares gerados pelas exportações prima¡rias.

A queda secular da participação da agricultura no PIB émesmo fena´meno global, associado ao desenvolvimento. “Caiu porque os outros setores cresceram mais que a agropecua¡ria”, diz o autor. No caso do Brasil, entre 2000 e 2017 o Valor Adicionado da Agricultura foi o que mais cresceu, cerca de 5,5%, enquanto Servia§os e Industria aumentaram 4,5 e 4,3%, respetivamente. Nãoédemais reafirmar que esse crescimento se deve, fundamentalmente, aos ganhos de produtividade e não a  incorporação de terra e ma£o de obra, como ocorria historicamente. Ao contra¡rio, a agricultura cresceu poupando terra. Estudos do economista JoséGarcia Gasques e equipe confirmam que entre 1975 a 2016 a produtividade total dos fatores (PTF) aumentou em taxa anual superior a 3,08%, sendo o maior avanço na década de 2000 (3,20% a.a.). Esse resultado reflete os investimentos em pesquisa, o uso de novos sistemas de produção, a exemplo do plantio direto, de sistemas de integração, da agricultura de baixo carbono e da articulação com outros setores.

A agricultura de hoje estãoprofundamente inserida em cadeias de valor que incluem os setores da indústria e de servia§os, e a afirmação de Lua­s Eduardo de que “os efeitos de encadeamento sobre a tessitura da atividade econa´mica são menores que os provocados por outros segmentos” são tem sentido no contexto da falsa polarização entre os setores. Nãoéo caso e por isso, ainda que o transbordamento seja menor, não hápor que não o aproveitar o potencial da agricultura para alavancar a indústria e os servia§os.

Considerem os seguintes dados. A indústria de refino de petra³leo representou 6,4% da produção industrial (PIA) de 2018, e apenas a indústria de biocombusta­veis representou 2,1%. Incluindo algumas das indaºstrias que tem o agro como base, a exemplo de carnes (7,0%), celulose e papel (3,4%), a³leos vegetais (2,5%), la¡cteos (2,0%), processamento de gra£os, produtos de panificação e massas (2,5%), açúcar e café(1,5%) e bebidas alcoa³licas (1,3%), a participação das indaºstrias diretamente vinculadas ao agro sobe para 22,3%,  superior a  participação de segmentos importantes como a indústria extrativa e de beneficiamento de petra³leo. Além da vantagem da desconcentração espacial das indaºstrias de base agra­cola, enquanto a PIA da indústria de extração cresceu 29% entre 2014 a 2018, o crescimento manãdio das indaºstrias de base agra­cola citadas foi de 33% no mesmo período.

Mas os transbordamentos va£o muito além dos segmentos que utilizam matérias-primas agropecua¡rias. a‰ necessa¡rio incluir o antes da porteira, como a indústria de fertilizantes, e a indústria de ma¡quinas e equipamentos para a agricultura e pecua¡ria, a construção civil e os servia§os financeiros, de transporte, armazenamento e distribuição, os servia§os técnicos, treinamento/capacitação e pesquisa. Importante ressaltar que a vinculação com o agro tem sido também indutora de inovações em toda a cadeia, condição para atender a  demanda cada vez mais exigente da produção agropecua¡ria.

O papel indutor do agronega³cio na economia brasileira não énenhuma quimera. A despeito de representar menos de 5% do PIB, segundo o CEPEA/USP, o setor como um todo responde por mais de 20% dos empregos, que, acrescido ao pessoal ocupado na agricultura familiar, chega a cerca de 25 milhões de pessoas. Ainda, o setor gerou US$ 97 bilhaµes em exportações em 2019 (44% do total), éo responsável pelo saldo positivo da balana§a comercial e vem sustentando nega³cios em todos os setores da economia, em todo o territa³rio nacional, sendo particularmente importante nas áreas de ocupação recente.

Os efeitos de transbordamento podem atéser limitados, mas são suficientemente fortes para que a agricultura e o agronega³cio sejam de fato tratados como eixos priorita¡rios e estratanãgicos para promover o desenvolvimento sustenta¡vel do Brasil e a diversificação da base produtiva proposta por Assis. a‰ hora de superar os paradigmas do passado e entender que a agricultura hoje éuma rede complexa de atividades e nega³cios que pode e deve ser usada para puxar a economia brasileira.

Importa dizer que a salvação da lavoura não estãona lavoura, mas que a lavoura mostrou que o aºnico caminho via¡vel para o desenvolvimento éo da inovação, eficiência produtiva e competividade. E estãoindicando que échegada a hora de se investir em uma ‘nova’ safra de inovação, pois sem plantar e cuidar bem da lavoura não se tem produção e não nem salvação.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Anta´nio Marcio Buainain
Professor do Instituto de Economia da Unicamp

Pedro Abel Vieira
Pesquisador da Embrapa

Roberta Grundling
Analista da Embrapa

 

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