Opinião

STF, antipola­tica e os riscos da onda antidemocra¡tico-reaciona¡ria: para onde caminha a Corte Suprema?
No governo da antipola­tica, seus protagonistas preferira£o oscomo vão preferindo osa via da imposia§a£o do poder, da falta de transparaªncia e da ausaªncia do devido processo legal.
Por Gustavo Justino de Oliveira - 06/11/2020


Doma­nio paºblico

A autonomia e a independaªncia do Poder Judicia¡rio são conquistas civilizata³rias recentes, sobretudo quando comparadas a  vida pregressa dos Poderes Legislativo e Executivo (sanãcs. 18 e 19). Historicamente, os sistemas de Justia§a no mundo va£o ganhando força a  medida que o Estado de Direito Democra¡tico, o constitucionalismo e uma Carta de Direitos Fundamentais va£o se (auto)fortalecendo na ordem jura­dica de umpaís.

Este ca­rculo virtuoso se intensifica quando se éalmejada a plena efetivação do direito de acesso a  Justia§a oseste, em si, um direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988. a‰ um Poder Judicia¡rio auta´nomo e independente que confere concretude e materialidade a um sistema de justia§a encorpado o suficiente para jamais deixar de apreciar ameaça a qualquer direito.

Ocorre que a função jurisdicional exercida pelo Poder Judicia¡rio não esgota as funções desempenhadas pelos tribunais. O Judicia¡rio do século XXI exerce inaºmeras outras funções tão relevantes quanto a  de solução de conflitos, aa­ inclua­das (a) função de pola­tica judicia¡ria osa qual atribui norte e sustentação ao sistema de justia§a como um todo, e que no Brasil éliderada sobretudo pelo STF e pelo Conselho Nacional de Justia§a (CNJ) ose (b) outra função obrigata³ria, mas dotada de essencial simbologia: sempre fazer valer as garantias materiais e processuais a todos que recorrem ao Judicia¡rio. Simba³lica, pois como bem sustenta Boaventura de Sousa Santos, a inacessibilidade, a morosidade, o custo ou a impunidade, no limite, afetam a própria credibilidade simba³lica da tutela judicial.

Existem também fena´menos contempora¢neos como o ativismo judicia¡rio e a judicialização da pola­tica, que acabam por conferir ao Judicia¡rio perfis que lhes aproximam dos perfis funcionais mais caractera­sticos do Executivo e do Legislativo. Tudo isso énovo, e no dia a dia das Cortes esses processos va£o sendo afinados e calibrados a  luz das demandas sociais, as quais acabam por determinar a atuação do Judicia¡rio em terrenos que ainda não lhe são totalmente conhecidos, ensejando por vezes uma hiperexposição e altas expectativas nem sempre muito salutares junto a  sociedade. De outro lado, o pra³prio Judicia¡rio por vezes se politiza demasiadamente.

Em tempos difa­ceis e de quase anomia em que vivemos oscom acentuadas polarizações políticas perpetradas por um presidencialismo de confronto, predoma­nio de extremismos antidemocra¡ticos, ditadura das redes sociais e fake news, entre tantas outras atrocidades osnão seria de se espantar que éexatamente a credibilidade do Judicia¡rio que acabaria por se tornar alvo preferencial de fortes ataques de atores pola­ticos que acabam por exercer a “antipola­tica” (AVRITZER, Leonardo. Pola­tica e antipola­tica: a crise do governo Bolsonaro. Sa£o Paulo: Todavia, 2020).

No governo da antipola­tica, seus protagonistas preferira£o oscomo vão preferindo osa via da imposição do poder, da falta de transparaªncia e da ausaªncia do devido processo legal.

Essas ações formam artilharia pesada contra o regime democra¡tico, as liberdades públicas e as garantias fundamentais, desdemocratizando o exerca­cio lega­timo do poder, em prova¡vel rumo a uma autocracia.
Nãose enganem os incautos: este plexo de condutas e atrocidades antidemocra¡ticas nada tem de conservador. Trata-se de uma Agenda Reaciona¡ria que vai espraiando seus tenta¡culos, tentando erodir e corroer a muralha institucional que, ao final, éa única que pode conter arrombos arbitra¡rios desta natureza: o STF.

Nãopor outro motivo, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt identificam cooptação, ocupação e enfraquecimento das Supremas Cortes como um receitua¡rio para a implantação de regimes totalita¡rios e ditatoriais no mundo contempora¢neo (2018: 77-87).

Portanto, eis as perguntas que merecem ser formuladas nesse cena¡rio: o STF encontra-se suficientemente blindado pela ordem constitucional para não sucumbir aos ataques que lhe são desferidos pela antipola­tica? Como a Corte pode se prevenir dos riscos gerados por essa onda antidemocra¡tica que tomou de assalto o Brasil? O Supremo corre o risco de se tornar em si instituição mais conservadora e reaciona¡ria?

Instada a decidir sobre vários temas que formam a face antidemocra¡tica e reaciona¡ria da agenda governamental, nos últimos dois anos, a Corte tomou medidas de defesa da ordem constitucional, formando incipiente, e ainda preca¡ria, Jurisprudaªncia de Democracia Defensiva, compreendida como aquela que visa a salvaguardar e impedir que ações violentas ou baseadas em discursos de a³dio osperpetrados por grupos extremistas de quaisquer matizes ideola³gicos ospossam ameaa§ar ou vulnerabilizar a ordem constitucional e democra¡tica de umpaís.

A meu ver, encaixa-se perfeitamente neste conceito o inquanãrito instaurado pelo STF para apuração de fake news e ataques frontais a  instituição e seus ministros, tendo sido sua constitucionalidade devidamente reconhecida em decisão do Plena¡rio da Corte, em 18 de junho de 2020.

Poranãm, as investidas contra a credibilidade institucional do STF não tem origem unicamente do lado externo. Partem, por vezes, do seu a¢mbito interno. Exemplificando: obrigada a decidir originariamente sobre processos que envolvem corrupção praticada por autoridades, agentes paºblicos e empresa¡rios de todos os partidos e matizes pola­ticos –intensificada a partir do Mensala£o e da Lava Jato osa Suprema Corte acabou por se desnudar demasiadamente perante a sociedade. Muitas vezes, com decisaµes erra¡ticas ou altamente casua­sticas, sobretudo porque vários ministros entendem que podem decidir de modo monocra¡tico e isolado. Afrontaram decisaµes tomadas pelo Plena¡rio e Turmas, dando origem a uma jurisprudaªncia destoante de seus pra³prios precedentes e julgados colegiados. Tais posturas enfraquecem e desautorizam a instituição, chamuscando a sua credibilidade.

Portanto, soa mandata³rio ao STF desenvolver ta¡ticas de lega­tima defesa democra¡tica da ordem constitucional, evitando posturas internas autofa¡gicas, que podem servir de estopim e de munição para ações autocra¡ticas desestabilizadoras, as quais podem desencadear tentativas de rupturas da sua institucionalidade, que nenhum bem fara¡ ao Estado de Direito Democra¡tico e a  sociedade brasileira.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Gustavo Justino de Oliveira
Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP

 

.
.

Leia mais a seguir