Opinião

Pequenas histórias de va­rus, cientistas e ciaªncia
Sempre ébom revisitar e redescobrir a ciaªncia, como agora, atravanãs da curiosidade despertada pela pandemia que enfrentamos em 2020.
Por Peter Schulz - 19/11/2020


Cortesia

A minha formação como pesquisador foi em boa medida em uma área de pesquisa que emergira uns 20 anos antes e naquela segunda metade da década de 1980 já se consolidava. Uma coisa fascinante na tema¡tica (que se chama heteroestruturas de semicondutores, mas isso não vem ao caso) era a possibilidade de construir em laboratório o que atéentão eram apenas exemplos e exerca­cios simplificados nos manuais de Meca¢nica Qua¢ntica. Nessa anãpoca de formação, ouvi uma palestra de um gentleman da área, Emilio Manãndez, que concluiu sua exposição citando um dos grandes fa­sicos do século passado, Eugene Wigner (1902-1995): “Cada geração precisa redescobrir a Meca¢nica Qua¢ntica”. O aforismo sempre me fascinou e relembro-o amiaºde nesses mais de 30 anos, desde que o ouvi pela primeira vez. a‰ importante fazer a ressalva de que as tais coisas qua¢nticas de hoje, do sal a s curas, não estãoinclua­das nas redescobertas imaginadas por Wigner. Com o tempo comecei a intuir de que, além da Meca¢nica Qua¢ntica, a redescoberta valeria para outras áreas das Ciências, incluindo suas Filosofia e Sociologia. Talvez seja importante não são para as gerações, aludidas na frase lembrada por Emilio Manãndez, que coletivamente se debrua§am sobre o conhecimento, mas também como exerca­cio individual. Sempre ébom revisitar e redescobrir a ciaªncia, como agora, atravanãs da curiosidade despertada pela pandemia que enfrentamos em 2020.

Assim, detendo-me em histórias relembradas pela imprensa e costurando com buscas (checadas) pela Wikipanãdia, pode-se formular a pergunta: quando éque pesquisar va­rus virou uma disciplina ou área acadaªmica?

Pois voltemos ao século XIX, anãpoca em que a Teoria Microbiana da Doena§as, de Louis Pasteur, surgiu e se consolidou. Charles Chamberland desenvolveu um filtro (de porcelana), com poros entre 0,1 e 1 ma­cron de dia¢metro, que filtravam praticamente todas as bactanãrias. Isso foi em 1884. A invenção muitas vezes leva o nome de Pasteur também, pois Chamberland trabalhava com ele. Uma das doenças em moda na anãpoca era em plantas, causada pelo que hoje conhecemos como va­rus mosaico do tabaco. Em 1892 o bia³logo russo Dmitri Ivanovsky usou o filtro de Chamberland para filtrar extratos de folhas infectadas e descobriu que filtrado continuava infectado. Seria uma toxina? Em 1898 o holandaªs Martinus Beijerinck repetiu o experimento, e convenceu-se de que estara­amos diante de um novo pata³geno, que se multiplicava em células. Mas qual sua natureza? Ele acreditava que se tratava de um la­quido e não de partículas Mas a primeira pista de que existiriampartículas menores do que as bactanãrias estava lana§ada. A ciência avana§a aos poucos.

Na virada do século XIX para o passado, os cientistas dispunham apenas de um filtro e os “agentes (ou va­rus) filtra¡veis” eram identificados assim: se o la­quido filtrado pelo dispositivo criado por Chamberland ainda fosse ativo, então o causador da doença seria um "agente filtra¡vel" e não uma bactanãria. A ideia de que o agente filtra¡vel fosse constitua­do porpartículas foi ganhando força, mas cadaª a imagem e estrutura dessa parta­cula para confirmar a hipa³tese? A nomenclatura passou de "va­rus filtra¡vel" para "va­rus ultramicrosca³pico". A ultramicroscopia da anãpoca (não era o microsca³pio eletra´nico ainda) era uma técnica especial, que identificava com sucesso as chamadaspartículas coloidais (de mesmo tamanho dos va­rus, a s vezes), não teve sucesso em detectar o va­rus e o artigo de Charles Simon de 1927, já no seu ta­tulo, propaµe que esses agentes não detectados voltassem a se chamar va­rus filtra¡veis. Já o artigo de Earl McKinley em 1932 volta a chamar o elusivo agente de “va­rus ultramicrosca³pico” e abre o artigo com uma definição tentativa, alia¡s o tí­tulo já anuncia a proposta de um “conceito para va­rus ultramicrosca³pico e sua classificação”.

 “Na³s recentemente tentamos definir um va­rus filtra¡vel como um agente particulado, provavelmente dotado de vida, com um tamanho e com uma carga elanãtrica que permitissem que passasse atravanãs dos poros de um filtro ordina¡rio, como regra ultramicrosca³pico (embora talvez existam exceções), relacionado muitas vezes a  formação de corpos intracelulares”.

No entanto, como seriam esses va­rus? Como validar o conceito? A resposta ainda tardou alguns anos e veio no artigo de B. von Borries e os irmãos Ernst (1906-1988) e Helmut (1908-1973) Ruska. O irmão mais velho foi um dos inventores do Microsca³pio Eletra´nico, em 1931, e viveu o suficiente para dividir o praªmio Nobel de Fa­sica de 1986 pelo feito. O irmão mais novo, meio esquecido, foi o pioneiro na aplicação do instrumento a  Biologia. E, assim, em 1938, publicam o primeiro artigo com imagens de um va­rus, definitivamente uma parta­cula e não um la­quido. Nessa anãpoca, o que hoje conhecemos por microsca³pio eletra´nico era então chamado de “a¼ber microsca³pio”, que vai além do “ultra”.

                Em 1938 havia então quase todos os critanãrios para que o estudo dos va­rus fosse reconhecido como uma disciplina cienta­fica: grupos de pesquisa, objeto de estudo, conceitos e técnicas pra³prios e, provavelmente tema de alguma cadeira nos departamentos das universidades. Mas segundo o artigo de Armin Krishnan, “O que são disciplinas acadaªmicas?”[I], faltaria a institucionalização: congressos e revistas especializadas dedicadas ao assunto. Congressos eu não sei, mas a primeira revista dedicada exclusivamente aos va­rus veio na rabeira das imagens dos irmãos Ruska. Era a "Archiv fur die gesamte Virusforschung" (Arquivo para a pesquisa geral sobre va­rus, em uma tradução livre), que em 1975 passou a ser a "Archives of Virology"[II]. O primeiro número, de fevereiro de 1939, fecha com um artigo do trio de autores do artigo do ano anterior, von Borries e os irmãos Ruska; “O significado da ‘a¼bermicroscopia’ para a pesquisa de va­rus”. Em 1939, portanto, segundo critanãrios posteriores, o “estudo de va­rus” passa a ser virologia.

Entre os primeiros va­rus fotografados a s vanãsperas da Segunda Guerra Mundial estava o da Vara­ola. Quase 30 anos depois, foi a vez do primeiro dos sete que compõem o grupo dos coronavirus, que recebem esse nome pela aparaªncia de coroa, observada nos “a¼bermicrosca³pios” da década de 1960. E assim, quando se viu pelo microsca³pio eletra´nico o sanãtimo va­rus desse grupo, o Sars-Cov-2, que paralisa o planeta humano em 2020, a história de June Almeida (1930-2007), a primeira a ver aquele va­rus coroa, espalhou-se também pelo mundo. June era filha de familia humilde e não pode seguir sua formação além do ensino manãdio aos 16 anos. Mas adora ciências e conseguiu um emprego de técnica de laboratório. A curiosidade e intuição levaram-na a aprender mais informalmente, lendo e conversando entre as prática s rotineiras de laboratório. Passou a ser coautora de artigos cienta­ficos. No ini­cio alguns torciam o nariz osinclusão sempre enfrenta resistência, mas a ciência são agradece, quando ela acontece -, mas acabou recebendo seu doutorado, sem ensino superior, sem exame de seleção, sem projeto de agaªncias de financiamento, sem cumprir cranãditos. Em 2020, sua técnica de microscopia foi a utilizada em Wuhan para flagrar a estrutura do va­rus responsável pela Covid-19. Curiosamente, seu primeiro artigo sobre esse tipo de va­rus foi rejeitado, com o veredito do parecerista: “são apenas imagens ruins de influenza”[III]

June Almeida nos anos 1950, bem antes de sua descoberta que hoje a tornou conhecida
em todo o mundo.

a‰ justamente o va­rus da influenza, da devastadora pandemia de 1918-1920, a chamada Gripe Espanhola, tão relembrada 100 anos depois, que levou a uma das mais longas jornadas de busca, espera e motivação na ciência Outra história que ganhou o mundo por causa da atual pandemia, resumida aqui.

Nãose sabe como a pandemia chegou a  pequena comunidade de Brewig Mission no Alaska. Mas em apenas uma semana de novembro de 1918, 72 dos 80 habitantes estavam mortos e enterrados no solo permanente gelado. Algum tempo depois, pandemia passou, mas o que a causou? 


Fotos das escavações no Alaska em busca do va­rus, 1951 e 1998

Em 1951 o jovem doutorando sueco Johan Hultin soube da triste história que se passou no Alaska e pediu permissão para desenterrar os corpos. Se o solo épermanente gelado, quem sabe assim ele conseguiria uma amostra do va­rus. Coletou amostras e a longa viagem de volta com essa amostra foi uma aventura em si. Nãoconseguiu isolar o va­rus com as técnicas de então. Já aposentado, em 1997, leu um artigo na Science, que relatava o sequenciamento de parte do va­rus, a partir de uma amostra preservada de outro infectado. Hultin escreveu para Jeffery Taubenberg (coautor do artigo na Science), contando sua história. Instigado, Hultin pagou do bolso nova excursão ao Alaska em 1998. Dessa vez, as amostras retiradas de um corpo gelado possibilitaram desvendar completamente o H1N1. E com isso ter vacinas contra seus descendentes. A foto em preto e branco éde Hultin em 1951 e a colorida édele também, em 1998[IV]

A frase de Eugene Wigner parece ser mais necessa¡ria agora do que em sua anãpoca; precisamos sempre redescobrir a ciaªncia, como ela funciona, suas maºltiplas facetas de formação, seus valores e as histórias de cientistas que se tornam grandes, mas a s vezes escondidos, atéque são finalmente descobertos, como aquelas vitimas da pequena aldeia do Alaska.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Peter Schulz
Ex- professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em peria³dicos especializados em Fa­sica e Cienciometria, dedica-se a  divulgação cienta­fica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia osinovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Ta£o longe, tão perto osas telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira osFAAP, Sa£o Paulo (2010).

 

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