Opinião

Mulheres e meninas mergulhando na ciência e no oceano
a‰ crescente o discurso sobre a necessidade de inserir mais mulheres e meninas na ciaªncia, em especial a ciência ocea¢nica, mas pouco se esclarece o principal motivo para isso.
Por Camila Negrão Signori e Tássia Biazon - 03/12/2020


Doma­nio paºblico

Por que o canãu éazul? Qual a origem da vida? Onde o sangue éproduzido? Por que o oceano éimportante? Perguntas movem o conhecimento. Logo, o progresso da humanidade anã, em grande parte, pautado por daºvidas e descobertas. E mesmo que homens e mulheres tenham sede de conhecimento, a maioria das perguntas nem sempre foi formulada ou respondida por qualquer pessoa. Basta refletir quais ou quantas mulheres ganharam o imagina¡rio das pessoas como Albert Einstein e Galileu Galilei, grandes cientistas. Sa£o inaºmeras as mulheres descobridoras ofuscadas, como a paleonta³loga Mary Anning ou a geneticista Nettie Stevens. E mesmo Marie Curie, premiada duas vezes com o Praªmio Nobel, ainda continua desconhecida por muitos!

a‰ crescente o discurso sobre a necessidade de inserir mais mulheres e meninas na ciaªncia, em especial a ciência ocea¢nica, mas pouco se esclarece o principal motivo para isso. A diversidade de gaªnero aliada a  maior pluralidade de formação e experiências gera multiplicidade e criatividade na proposição de perguntas e na solução inovadora de problemas, resultando em maior produtividade dentro e fora da Universidade. Essa diversidade contribui para a inteligaªncia coletiva de um grupo de pesquisa e fornece novos contextos para a compreensão da releva¢ncia social da própria pesquisa. Em outras palavras, na fa³rmula do desenvolvimento, inovação e sucesso na ciaªncia, a diversidade de gaªnero éelemento fundamental.

Contra diferentes esterea³tipos e a fim de encontrar respostas para qualquer inca³gnita em torno do Planeta e do Universo, “Maries” tem ocupado diferentes Espaços ospara além do ambiente familiar. E se em um passado recente mulheres eram impedidas de estudar, votar ou mesmo trabalhar fora de casa, hoje elas podem explorar as estrelas, vislumbrar atravanãs de microsca³pios, compreender linhas de programação, atingir o espaço ou as maiores profundidades do oceano.

“Maries” são movidas por curiosidade, imaginação e inteligaªncia, além de muita persistaªncia, autoconfianção e amor. Mas também dependem do esta­mulo da igualdade de gaªnero e do fortalecimento das mulheres nas áreas cienta­ficas osnecessidades hoje impostas pela sociedade e por organizações internacionais e nacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Global Research Council e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

No Brasil, as mulheres cientistas correspondem a cerca de 40 a 50% (no contexto mundial, elas representam cerca de 30%, podendo variar com opaís e a área cienta­fica), com destaque para maior atuação em áreas como Biologia e Medicina. Essa aparente equidade de gaªnero na ciência brasileira mascara a realidade ainda desigual se considerarmos as diferentes áreas do conhecimento, o avanço na carreira e a ocupação das posições de liderana§a. Por exemplo, nas Ciências Exatas e da Terra e Engenharias, o desequila­brio éevidenciado ainda na graduação e se mantanãm no doutorado, onde a participação feminina oscila em média entre 20 e 30%. Na Academia Brasileira de Ciências (ABC), uma das mais antigas associações de cientistas no Paa­s, dos atuais 563 cientistas titulares, apenas 95 são mulheres.

No universo uspiano, as mulheres graduandas e pa³s-graduandas superam os homens (> 50%), mas quando passam a docentes ou atingem cargos de gestão(chefias, diretorias, coordenações) correspondem a 39% e 27% do total, respectivamente. Esses números decrescem drasticamente quando se trata do cargo mais alto da Universidade, no qual as mulheres representam 0,28% do total, já que apenas uma ocupou a Reitoria na história da USP.

E se engana quem acha que os desafios são apenas em áreas que envolvem números, como os cursos de computação. A Oceanografia exige um mergulho duplo pelas mulheres, pois envolve algumas peculiaridades como a atividade embarcada, na qual historicamente sempre houve a predomina¢ncia de homens. Para se ter uma ideia, somente a partir da década de 60 a participação feminina em expedições cienta­ficas para coleta de dados passou a ser liberada. Nessa mesma década, Marta Vannucci (professora aposentada da USP), uma das precursoras da Oceanografia no Paa­s e a primeira mulher a se tornar membro titular da ABC, ocuparia o cargo de diretoria no IO-USP. No futuro, Marta expa´s que conciliar a vida de esposa, ma£e e cientista era uma realidade difa­cil.

Atualmente, na área da Oceanografia, o paºblico feminino representa 38% dos cientistas no mundo. Dentre os alunos de graduação no Paa­s, observa-se uma mudança gradual, em que um curso predominantemente masculino foi, aos poucos, atraindo mais mulheres, contando hoje com cerca de 60% dos ingressantes em Oceanografia na USP. Em 2020, Kathy Sullivan, uma ex-astronauta da Nasa foi a primeira pessoa a conhecer as duas grandes fronteiras: as profundezas do oceano e a imensida£o do Espaço, mostrando que as mulheres podem e devem explorar o que quiserem.

A fim de incentivar e alavancar a inserção de meninas e a retenção de mulheres na ciaªncia, háinaºmeras iniciativas e projetos que foram implementados nos últimos anos no Brasil, como, por exemplo: Astrominas (IAG-USP), Maréde Ciência (Unifesp), Meninas com Ciência (UFRJ) Parent in Science (UFRGS), Liga de Iniciação de Mulheres na Ciência (IEMA), Liga das Mulheres pelo Oceano, Bate-Papo com Netuno, além de muitos outros com grande adesão, empatia e sucesso. Uma dessas iniciativas, o Mergulho na Ciência USP (IO-USP), éum trabalho de formiguinha que traz meninas do ensino fundamental para vivenciar a experiência de estar em uma universidade e conhecer dezenas de temas das áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matema¡tica (da sigla em inglês, STEM). Este projeto, coordenado pela professora Camila Negra£o Signori, teve o reconhecimento do Programa HeforShe da ONU, ao ser inserido no Impact Report de 2019 como uma das ações de sucesso para combater a desigualdade de gaªnero.

Aliando-se a s iniciativas das universidades, ações igualmente importantes surgem na esfera de sociedades, organizações e agaªncias de fomento a  pesquisa. Além de mesas-redondas e palestras, em 2020 houve dois eventos focados nas mulheres cientistas brasileiras, o 1o Simpa³sio Brasileiro Mulheres em STEM, organizado pelo Instituto Tecnola³gico de Aerona¡utica (ITA), e o 1o Encontro da Pa³s-Graduação da USP: Elas fazem ciência

Premiações dedicadas exclusivamente a s mulheres, como o Praªmio para Mulheres Brasileiras em Quí­mica (da Sociedade Brasileira de Quí­mica, Fapesp e empresas) e o Praªmio Caroline Bori Ciência e Mulher (da SBPC), além do ta­mido aumento de mulheres vencedoras do Praªmio Nobel, com apenas 6% do total de premiados, são iniciativas relevantes para destacar, inspirar e reconhecer a atuação das cientistas.

A criação de editais de fomento a  pesquisa e de portarias que regem a Universidade, respectivamente, visando ao desenvolvimento de projetos com liderana§a feminina e a  melhoria das condições de trabalho da mulher pesquisadora e professora são outras importantes estratanãgias que vão sendo aos poucos implementadas. Além disso, foi estabelecida uma data oficial (11 de fevereiro) que celebre as mulheres e meninas na ciaªncia, nacional e internacionalmente, assim como a criação da ONU Mulheres na esfera global em 2010 e do Escrita³rio USP Mulheres em 2016, com o objetivo de propor e apoiar iniciativas e projetos voltados a  igualdade de gaªnero.

No a¢mbito cultural, as iniciativas que contemplam a inserção de exemplos femininos na ciaªncia, como a publicação de livros por grandes editoras, a realização de pea§as de teatro que mostram a trajeta³ria de mulheres cientistas (Cia. Delas de Teatro) e a criação de personagens cientistas no contexto do Donas da Rua (da famosa Turma da Ma´nica), alcana§am uma outra dimensão, ao mexer com o imagina¡rio de criana§as e fama­lias brasileiras e extrapolar totalmente os muros das universidades.

Sobretudo, a inserção bem-sucedida das mulheres e meninas na ciência éalicera§ada pelo apoio e respeito de homens (e mulheres!) em qualquer ambiente, como escolar, universita¡rio e familiar. Afinal, a ciência e todo o universo fascinante que a permeia, como os mistanãrios do oceano, podem e devem ser desvendados por quem desejar, acreditar e se dedicar.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Camila Signori
Professora do Instituto Oceanogra¡fico (IO) da USP e coordenadora do Mergulho na Ciência USP,

Ta¡ssia Biazon
Pesquisadora da Ca¡tedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano

 

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