Opinião

Quando o cobertor écurto, transparaªncia e qualidade de avaliação são inegocia¡veis
Para muitos, a chamada 25/2020 não passou de um expediente usado pelo CNPq para reduzir seu gasto com bolsas, sem que isso jamais tenha sido admitido. O a´nus de provar que tais acusaa§aµes são infundadas cabe ao CNPq neste momento.
Por Frederico José Gueiros Filho e Alicia Kowaltowski - 13/01/2021


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O Brasil vem sofrendo verdadeira mutilação de seu ora§amento para ciência e tecnologia desde 2016, colocando em risco a sobrevivaªncia de um sistema que, mesmo a duras penas, tornou-se respeitado internacionalmente. Isso não éalarmismo ou hipanãrbole: o dispaªndio federal em C&T em 2020 deve ser equivalente a 35% do valor investido em 2015, quando a trajeta³ria de queda livre começou. a‰ nota³rio que em 2020 o ora§amento do CNPq para fomento a  pesquisa foi de apenas 82 milhões, um valor irrisãorio e que resultou na paralização de projetospaís afora. As perspectivas para o ano que vem são ainda piores osa proposta ora§amenta¡ria do governo federal para o MCTI representa corte de 30% em relação ao já catastra³fico ora§amento de 2020. Nossa bandeira número um deve ser pela recomposição desses ora§amentos, mesmo em momentos de crise. No entanto, enquanto isso não acontece, temos a responsabilidade de exigir que os poucos recursos existentes sejam distribua­dos da maneira mais justa, transparente e efetiva possí­vel.

Fragilizado tanto pela diminuição sucessiva de recursos como pela ameaça de fusão com a Capes, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cienta­fico e Tecnola³gico (CNPq) anunciou no final de 2019 que mudaria seu mecanismo de concessão de bolsas de pós-graduação. Em vez de distribuir cotas de bolsas aos programas de pós-graduação, que atéentão selecionavam por manãrito os pa³s-graduandos que as receberiam, passaria a usar (nas próprias palavras do CNPq) “um modelo de alocação majorita¡ria por meio de chamadas públicas, com foco direcionado para modalidades e tema¡ticas em áreas priorita¡rias e estratanãgicas para o MCTIC [Ministanãrio da Ciência, Tecnologia e Inovações], vinculando as bolsas a projetos de pesquisa”.

Tal mudança poderia ser sauda¡vel osha¡ anos que as cotas concedidas aos programas estavam “congeladas”, impedindo o acesso de novos programas a bolsas e correções necessa¡rias em um sistema em constante evolução. A ideia de se privilegiar a qualidade de projetos de pesquisa também poderia ser positiva, se embasada por um processo de avaliação sanãrio e dotado de credibilidade. No entanto, por ocorrer justo no momento de aguda crise ora§amenta¡ria e liderada por um governo que, mesmo antes da pandemia, já se mostrara não apenas negacionista mas franco antagonista da comunidade cienta­fica nacional, a mudança nos procedimentos do CNPq gerou apreensão e desconfiana§a. Vale lembrar que em abril havia sido publicada chamada para projetos de iniciação cienta­fica do CNPq inicialmente excluindo ciências ba¡sicas e humanidades.

Em julho foi lana§ado a chamada CNPq 25/2020 detalhando o novo procedimento. A mudança radical de regras, somada ao desafio de formular um projeto institucional de pesquisa, algo nunca antes avaliado e que nem mesmo o CNPq parecia ter clareza de como se fazer, fez a apreensão da comunidade transbordar. Para cranãdito do CNPq, houve tentativa genua­na de dia¡logo, tanto para esclarecer as muitas daºvidas sobre o novo procedimento, como para incorporar sugestaµes dos programas de pós-graduação para aprimorar o que ainda fosse possí­vel no edital. Durante as diversas lives e reuniaµes virtuais que se seguiram, o CNPq também fez questãode garantir aos estressados programas que o novo processo não representaria uma mudança radical no número de bolsas concedidas a cada Programa, pois o item 5.4 do edital previa percentuais ma­nimos de retorno das bolsas devolvidas para os projetos aprovados (60-80%, dependendo do tamanho do Programa).

Portanto, foi com grande surpresa e justificada indignação que a comunidade recebeu os resultados da chamada 25/2020. Embora uma análise mais detalhada de seu impacto ainda precise ser feita, uma avaliação preliminar já mostra tratar-se de uma traganãdia. Cerca de 70% dos programas de pós-graduação que concorreram ao edital tiveram seus projetos negados, e portanto não recebera£o bolsas do CNPq em 2021! Essa taxa estratosfanãrica de reprovação basicamente tornou irrelevante a previsão de percentuais ma­nimos de retorno de bolsas. Onde ficou a transição gradual prometida pelo CNPq? Mesmo nos programas com pedidos aprovados, hácortes significativos das bolsas atribua­das. Por exemplo, o programa de pós-graduação em que os autores desse artigo atuam, que sempre foi considerado de excelaªncia e uma liderana§a nacional na área de Bioquímica e Biologia Molecular, teve apenas uma de três bolsas de doutoramento aprovada para renovação em 2021.

Ta£o ou mais grave que o enorme corte de bolsas que resultara¡ deste edital éo fato de não conseguirmos descobrir os critanãrios pelos quais as decisaµes foram tomadas. Cada proposta recebeu apenas duas notas (“avaliação do PPG como ambiente de excelaªncia em pesquisa” e “avaliação do projeto de pesquisa apresentado”) e nada mais. Nãohánálise que justificasse porque um projeto foi considerado bom e outro ruim. Quem de nosousaria reprovar um aluno sem explicar claramente porque seu desempenho foi insuficiente? Aonde foram parar os pareceres circunstanciados que são o alicerce de qualquer sistema respeita¡vel de revisão pelos pares? Mesmo aqueles programas como o nosso que tiveram seus projetos aprovados receberam apenas o burocra¡tico para¡grafo: “A proposta teve seu manãrito reconhecido, tendo sido aprovada com pontuação suficiente para contemplação. No entanto, houve corte no número de bolsas pleiteadas tendo em vista a alta demanda qualificada e necessidade de uma mais ampla distribuição do recurso.”

Lamentavelmente, a opacidade do julgamento da chamada 25/2020 não para por aa­. Afalta das avaliações circunstanciadas soma-se o mistério sobre o processo de avaliação. Enquanto pedidos de projetos e bolsas não vinculados a programas de pós-graduação são avaliados por assessores ad hoc e pelos Comitaªs de Assessoramento do CNPq, tendo portanto ampla participação da comunidade no processo decisãorio, os projetos da chamada 25/2020 não passaram por esses comitaªs. Permanece a daºvida de quais especialistas em ciência e pós-graduação foram os avaliadores e responsa¡veis por decisaµes que podem ter sanãrio impacto sobre a maioria dos programas de pós-graduação brasileiros. Tudo isso ocorre em um ano em que o MCTI já direcionou milhões de reais de seus escassos recursos para projetos de combate a  covid como, por exemplo, o ensaio cla­nico da nitazoxanida, sem que saibamos quem avaliou, ou mesmo se houve avaliação desses projetos.

Estamos todos no mesmo barco e entendemos como deve ser difa­cil estar no tima£o de uma agaªncia como o CNPq em meio a  tempestade que atravessamos. Sabemos que decisaµes duras sera£o necessa¡rias e que perdas sera£o inevita¡veis. No entanto, especialmente nesses momentos, não podemos abrir ma£o de total transparaªncia, tanto de procedimentos como de propósitos. Decisaµes que implicam em perdas tera£o muito maior chance de serem aceitas se bem justificadas. Na ausaªncia de boas justificativas, além de indignação vemos sinais preocupantes de perda de confianção na instituição. Um exemplo são os boatos que tem circulado desde o resultado da chamada. Ouve-se que em pelo menos uma área tema¡tica a avaliação e ranqueamento das propostas foi entregue pronta por técnicos do CNPq aos cientistas supostamente encarregados de avalia¡-las. Fala-se também em cortes preferenciais em áreas identificadas como inimigas ideola³gicas do governo, não são nas humanas mas também entre programas de Saúde Paºblica e Epidemiologia. Para muitos, a chamada 25/2020 não passou de um expediente usado pelo CNPq para reduzir seu gasto com bolsas, sem que isso jamais tenha sido admitido. O a´nus de provar que tais acusações são infundadas cabe ao CNPq neste momento.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com


Frederico JoséGueiros Filho e Alicia Kowaltowski
Professores do Instituto de Quí­mica da USP

 

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