Opinião

Nem todo mundo precisa de um psica³logo
O espaço de uma cla­nica profissional especializada, cercada pela segurança de um consulta³rio planejado e estruturado, não isentara¡ ninguanãm de ver o mundo, pelo contra¡rio, deve ampliar esse olhar.
Por Danillo Lisboa - 22/02/2021


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Tem se tornado um jarga£o da atualidade a ideia de que todo mundo precisa de um psica³logo. Entre amigos, colegas e familiares, a necessidade de um acompanhamento psicola³gico tem sido posta a  mesa das mais diferentes formas, geralmente, justificadas a partir de outros jargaµes, como: “Todo mundo tem um trauma a tratar”, “ninguanãm é100%”, “todo mundo tem, nem que seja alguma coisinha, para falar para o psica³logo”. Mas serámesmo verdade que todo mundo precisa de um profissional da Psicologia? a‰ claro que não. Ainda assim, por que estamos nos habituando com tanta tranquilidade a afirmar que “todo mundo precisa de um psica³logo”?

Com a ampliação do número de profissionais da Psicologia no Brasil, o uso corrente dessa ideia pode ter contribua­do para aumentar a procura de pessoas pela cla­nica psicológica, especialmente, com a redução de preconceitos entre aqueles que acreditavam que psica³logo seria um profissional especa­fico para pessoas enlouquecidas. Poranãm, o efeito colateral desse senso comum de que “todo mundo precisa de um psica³logo” tem revelado alguns prejua­zos para a própria Psicologia, sobretudo, pelo racioca­nio evidente de que: se todo mundo precisa, ninguanãm precisa.

Vejamos, se, ao invanãs do profissional psica³logo, afirma¡ssemos: “Todo mundo precisa de um advogado”, quais efeitos isso teria? Seria um completo absurdo, isso porque, se todo mundo precisasse de um advogado, o que estaria em falha não seriam os direitos individuais, mas o pra³prio sistema de garantias de direitos. Uma outra situação se aplica ao caso da Medicina, se, de repente, afirma¡ssemos: “Todo mundo precisa de um médico”, estara­amos revelando muito mais a ausaªncia de saneamento ba¡sico, os problemas bacteriola³gicos, de saúde pública, virais, epidemiola³gicos, nutricionais, entre outros, do que de fato enaltecendo as contribuições da Medicina. No caso da Psicologia, o que parece éque, ao sustentar o jarga£o “todo mundo precisa de um psica³logo”, alguns profissionais se enveredam pelo canto da sereia generalizante que puxa cada vez mais a profissão para o fundo do oceano.

A Psicologia, enquanto ciência da subjetividade, precisa pa´r em evidência as razões que sustentam os discursos engendrados no tecido sociocultural, a fim de tornar claro que na afirmação rotineira de que “todo mundo precisa de um psica³logo” hámuito mais conteaºdo dito do que gostara­amos de ouvir. Nas entrelinhas desse jarga£o, estamos também dizendo que todo mundo estãoadoecido psiquicamente e que, na atualidade, ninguanãm tem condições de ter saúde mental. A denaºncia éimportanta­ssima para compreendermos o nosso tempo, e éuma ilusão o psica³logo achar que ele detanãm a resposta que “todo mundo precisa” para resolver os males dessa era obcecada pelo desempenho e pela autoexploração. Aqui reside o canto da sereia que muitos profissionais tem preferido escutar.

Em parte, a ideia ingaªnua contida no jarga£o “todo mundo precisa de um psica³logo” encontra sustentação na cultura contemporâneado autoempreendedorismo, que convoca profissionais a criarem nichos de mercado a qualquer custo, e, também, no modelo biomédico presente no campo da saúde. Esse modelo, historicamente, tem privilegiado uma compreensão dos fena´menos de saúde-doença dentro de uma lógica individualizante, intrapsa­quica, neuronal e biológica, isentando fatores sociais, pola­ticos e culturais de questionamento, o que distancia a análise e correlações entre fena´menos sociais e necessidades cla­nicas.

Por isso, neste contexto, o mal-estar, por mais coletivo que seja, passa a ser visto como individual e cada um que procure um psica³logo de confianção para se “tratar”. a‰ a lógica da cla­nica intrapsa­quica e individualizante em sua capacidade pura de desconectar a necessidade existente do contexto em que ela surge, como se fosse possí­vel uma doença surgir fora do contexto que a produz. Ao desconsiderar o contexto, o risco de culpabilizar o indiva­duo por manifestar na pele os problemas de uma anãpoca pode ser ampliado.

Por isso, épreciso seriamente se perguntar: por que, hoje, todo mundo precisaria de um psica³logo? As contas não fecham. Ou a nossa sociedade estãoproduzindo pessoas adoecidas psiquicamente ou estamos banalizando a potaªncia de contribuição que a Psicologia poderia dar para o desenvolvimento de pessoas mais conscientes de si, de suas histórias e de suas possibilidades de transformação. E essas hipa³teses podem atuar conjuntamente. No passado, no contexto educacional, a Pedagogia foi banalizada e usurpada por setores que buscaram minar suas importantes contribuições para a emancipação de pessoas. Agora, a Psicologia parece viver um processo muito semelhante de destituição de suas potaªncias a partir da lógica de que “todo mundo precisa de psica³logo”, fena´meno que revela uma imposição determinista capaz de fazer ruir a própria subjetividade que a profissão almeja alcana§ar.

a‰ preciso que os profissionais da Psicologia resistam ao canto da sereia de generalizar comportamentos passa­veis de intervenção psicológica, como fazem os adeptos das fa³rmulas ma¡gicas e receitas para tudo, e sustentem a subjetividade como eixo direcionador de suas intervenções, garantindo que cada pessoa alcance um reconhecimento pessoal do porquaª procurar um psica³logo. Sem formular minimamente essa questão, nenhum processo terapaªutico se inicia. Sem isso, émuito prova¡vel que a cla­nica da Psicologia caminhe para se tornar mais uma modinha do momento: “Porque todo mundo precisa”.

a‰ claro que diferentes pessoas podem se beneficiar do acompanhamento psicola³gico com um profissional e isso pode vir a ser uma ajuda muito importante para a compreensão de si mesmo e para o movimento construtivo e reconstrutivo de questões subjetivas, feito que coloca a psicoterapia como um instrumento fundamental para o amadurecimento humano e uma grande contribuição para o desenvolvimento da saúde. Poranãm, se a lógica da atualidade éque todo mundo precisa de uma psicoterapia, estamos muito mais pra³ximos da revelação do modo de funcionamento social do nosso tempo, cuja aªnfase recai sobre o indiva­duo, do que propriamente do papel potencial da psicoterapia para o desenvolvimento humano.

Se, diante da evidência de que o mundo não vai bem e de que as pessoas estãoadoecendo psiquicamente, a cultura contemporâneatem adotado a estratanãgia de enfiar nos consulta³rios psicola³gicos, ou no de outras especialidades, os adoecidos que este tempo produz, justificando que “todo mundo precisa”, não estamos agindo na raiz do problema, apenas individualizando questões atravanãs dos compartimentos dos consulta³rios. Se éesse o anseio da atualidade na busca pela cla­nica psicológica, épreciso que os pra³prios profissionais da Psicologia, na honestidade da cla­nica, frustrem-no, contribuindo para que as questões individuais passem a ser comunita¡rias. Como afirmou o psica³logo Gilberto Safra (USP), muito do que as crescentes demandas cla­nicas da atualidade tem revelado éa urgente necessidade de reerguer um mundo comum onde o rosto humano possa ser reconhecido.

O espaço de uma cla­nica profissional especializada, cercada pela segurança de um consulta³rio planejado e estruturado, não isentara¡ ninguanãm de ver o mundo, pelo contra¡rio, deve ampliar esse olhar. O mal-estar contempora¢neo, mais do que nunca, vai além da individualidade historicamente privilegiada na compreensão dos fena´menos psicola³gicos e de saúde, e nos revela aspectos comunita¡rios fundamentais para que o ser humano possa ter saúde. O mal-estar contempora¢neo não podera¡ ser enfrentado transformando a cla­nica da Psicologia em lugar desmedido para todo mundo, pois éo mundo que precisa voltar a ofertar a hospitalidade necessa¡ria para que o ser se torne humano.

Ao invanãs de afirmar que “todo mundo precisa” de um determinado tipo de profissional/especialidade, podera­amos encaminhar nossos esforços para afirmar que todo mundo precisa de saúde e saúde mental para viver, utilizando conceitos mais amplos que nos coloquem em relação com o mundo comum em que vivemos, reivindicando que a Psicologia e os demais campos do conhecimento reconhea§am que, na oferta de cuidado e saúde, o mundo comum ésempre maior do que a cla­nica de qualquer especialidade.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Danillo Lisboa
Psica³logo, doutorando e pesquisador do Laborata³rio de Processos de Subjetivação em Saúde da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeira£o Preto (FFCLRP) da USP

 

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