Opinião

Plataformas digitais e transformações no mundo do trabalho
De acordo com o IPEA, embora não haja números precisos sobre a quantidade de pessoas que trabalham por aplicativos, atribui-se a essas novas modalidades de trabalho o aumento de 700 mil postos de trabalho entre 2015 e 2019
Por Ana Paula Camelo e Olívia Pasqualeto - 16/03/2021


Reprodução

A hista³rica e complexa relação entre trabalho, tecnologia e sociedade, conformada por coisas, pessoas e instituições, não élinear, tampouco isenta de controvanãrsias. Essa relação foi e éconstantemente transformada, gerando impactos reca­procos (MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE, 2018; SCHULTE; HOWARD, 2019) e muitas vezes pouco compreendidos. Esses processos de transformação, por sua vez, variam geogra¡fica, cultural e politicamente, criando diferentes cenários para análise de imagina¡rios de futuros possa­veis, e muitas incertezas sobre o que de fato podera¡ ser definido como futuro do trabalho (ATLASSIAN, s/d).

Nãoéa  toa que essa repercussão da tecnologia no mundo laboral também se evidencia nos dias de hoje, sobretudo com o rápido desenvolvimento e ampla utilização de recursos pra³prios da chamada quarta revolução industrial, a exemplo da inteligaªncia artificial, big data, Internet das coisas, dentre outros, provocando inúmeros debates.

a‰ nesse contexto que, a partir dos anos 2000 (BERG et al., 2018, p.1), desponta o trabalho em plataformas digitais, forma de trabalho que se tornou fonte de renda para milhares de pessoas no Brasil e no mundo.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econa´mica Aplicada (IPEA), embora não haja números precisos sobre a quantidade de pessoas que trabalham por aplicativos, atribui-se a essas novas modalidades de trabalho o aumento de 700 mil postos de trabalho entre 2015 e 2019 nas atividades de entrega e transporte de passageiros, sendo um dos segmentos de trabalhadores que mais cresce no Brasil (IPEA, 2020). 

Ainda que estejamos acostumados a associar esse tipo de trabalho a motoristas e entregadores cadastrados em aplicativos populares como Uber, Rappi, iFood, etc., o trabalho em plataformas tem se espraiado cada vez mais, envolvendo atividades para além do delivery e do transporte individual de passageiros, a exemplo da prestação de servia§os de saúde, de design, jura­dicos e educacionais.

Quando falamos de trabalho em plataformas, estamos fazendo referaªncia aos conceitos de "crowdwork" e ao “trabalho sob demanda via aplicativos”. Janine Berg et al. (2018) e Valerio De Stefano (2016) são muito dida¡ticos ao definir trabalho em plataformas como aqueles baseados na Internet, comumente chamados de crowdwork (e.g. trabalhos de programação de computador, análise de dados e design gra¡fico, dentre outras “microtarefas” que podem ser executadas de qualquer lugar do mundo, desde que os profissionais estejam conectados a  Internet) e de trabalho sob demanda em plataformas (e.g. empregos relacionados a s atividades tradicionais de trabalho e que demandam a presença física dos trabalhadores, como transporte e limpeza oferecidos e atribua­dos por meio de aplicativos ma³veis).

Assim como são distintos os perfis das pessoas que trabalham nessas plataformas, distintas são as ocupações e tarefas a serem desempenhadas e éimportante considerarmos também uma variedade de setores econa´micos afetados e de plataformas que ganham destaque neste contexto. Estas, por sua vez, podem assumir diferentes formatos e modelos de nega³cio: háquelas em que o serviço étotalmente realizado em ambiente virtual, háquelas em que o serviço égeograficamente localizado, háquelas em que o serviço éatribua­do a uma pessoa especa­fica, háquelas em que a oferta de servia§os éfeita de forma indeterminada a uma multida£o de pessoas.

Como um fena´meno crescente e uma realidade para milhares de pessoas, essa nova modalidade de trabalho émarcada por incertezas e discussaµes que desafiam e aproximam diferentes áreas do conhecimento em torno de questões comuns: sociais (e.g. educação e qualificação profissional, condições de trabalho), econa´micas (e.g. renda ba¡sica, subsa­dios), tecnologiicas (e.g. acesso a  Internet, governana§a algora­tmica, etc.) e jura­dicas (e.g. definições dos atores envolvidos, caracterização da relação entre prestadores e plataforma), dentre tantas outras que existem na interface dessasDimensões (e.g. seguridade e desigualdade social; discriminação).

Explorando essa interface, algumas questões se destacam: trabalhadores em plataformas digitais são auta´nomos, empregados ou se encaixam em uma terceira categoria? Possuem direitos trabalhistas? Possuem cobertura previdencia¡ria? Quais são as obrigações das plataformas digitais? Uma única proposta de regulação seria via¡vel considerando os diferentes modelos de nega³cio das plataformas? Como garantir transparaªncia nas relações e, ao mesmo tempo, proteger o segredo do nega³cio? Qual deve ser o papel do Estado? Como estimular o dia¡logo entre os atores envolvidos? Essas e muitas outras indagações ainda circundam o tema, desafiando respostas precisas.  

No Brasil, o tema suscita muitas controvanãrsias, sobretudo no que diz respeito a  natureza da relação jura­dica entre prestadores e plataformas: hárelação de emprego (acompanhada de todos os direitos trabalhistas previstos na CLT) ou não? Ainda não háuma legislação especifica sobre o tema e muitas dos lita­gios acabam sendo dirigidos ao Poder Judicia¡rio para que sejam decididas as controvanãrsias em determinado caso concreto. A jurisprudaªncia brasileira já proferiu decisaµes em sentidos diversos, mas destacam-se os posicionamentos das cortes superiores: o Superior Tribunal de Justia§a[1] e o Tribunal Superior do Trabalho[2] já sinalizaram para a inexistaªncia de va­nculo empregata­cio entre prestador e aplicativo.

Para além do debate doutrina¡rio e jurisprudencial, háinúmeros projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que objetivam disciplinar essas novas relações: háprojetos mais pontuais, sobre o uso de máscaras por entregadores durante a pandemia, por exemplo; e háprojetos mais amplos, que se propaµem a figurar como marco regulata³rio sobre o tema[3]. Contudo, atéo momento, nenhum desses projetos foi aprovado.

Ao analisar como o tema étratado em outrospaíses, também épossí­vel observar intensas discussaµes entre os estudiosos e a opção por enderea§amentos diversos. A tí­tulo exemplificativo, cita-se a Proposition 22 oslegislação aprovada em novembro de 2020 no estado da Califa³rnia, nos Estados Unidos, em que se definiu que motoristas e entregadores de aplicativos são independentes (e não empregados) ose recente decisão judicial proferida em fevereiro de 2021 no Reino Unido osem que motoristas ligados a  Uber foram considerados trabalhadores (workers), fazendo jus a direitos trabalhistas, como sala¡rio ma­nimo e proteção contra discriminação, além de discutir sobre uma caracterização jura­dica intermedia¡ria entre empregados e contratantes independentes. Ainda no contexto europeu, em mara§o de 2021, a Espanha decidiu reconhecer legalmente esses prestadores como trabalhadores, a partir de dia¡logo entre governo e representantes dos entregadores e das plataformas.

Ha¡, assim, muitos debates e um amplo horizonte de possibilidades e desafios ligados a essas novas formas de trabalho a serem considerados e investigados. Questaµes complexas se intercruzam cada vez mais e demandam dos atores desse ecossistema osprestadores, plataformas, consumidores, estado osações conectadas e dia¡logo social.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Ana Paula Camelo
Gestora e lider de projetos no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP. Doutora em Pola­tica Cienta­fica e Tecnola³gica, pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (2011-2015) 

Ola­via de Quintana Figueiredo Pasqualeto
Doutora e Mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de Sa£o Paulo (FD/USP). 

 

.
.

Leia mais a seguir