Opinião

Com a evolução não se brinca
A mudança na composia§a£o genanãtica de uma espanãcie ao longo do tempo éuma forma de definir a evolua§a£o. Assim como outros seres vivos, o va­rus evolui.
Por Diogo Meyer, - 23/03/2021


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O material genanãtico do coronava­rus que hoje circula pelo mundo causando a covid tem várias diferenças em relação a quele que começou a se espalhar no final de 2019. Essa transformação resulta de mutações, que são erros que ocorrem quando o material genanãtico écopiado. Algumas das mutações que surgiram se tornaram comuns. As linhagens do coronava­rus, como a P.1, que se torna cada vez mais comum no Brasil, são definidas pela combinação de mutações que acumularam. A mudança na composição genanãtica de uma espanãcie ao longo do tempo éuma forma de definir a evolução. Assim como outros seres vivos, o va­rus evolui.

Ha¡ dois principais processos que explicam por que uma mutação no va­rus pode se tornar comum, com o passar do tempo. Um deles éo acaso. Se uma mutação não altera de modo importante o funcionamento do va­rus, ela pode tornar-se comum ou sumir por mero acaso, num processo chamado de deriva genanãtica. Por outro lado, hámutações que se tornam comuns pois trazem alguma vantagem. a‰ o caso da mutação D614G, presente numa linhagem do coronava­rus chamada B.1, e que altera um aminoa¡cido da protea­na que o va­rus usa para entrar em células humanas, tornando-o mais infeccioso. Nesse caso, estamos diante de uma mudança que resulta da ação da seleção natural.

Va­rus em geral, e com o coronava­rus não édiferente, sofrem seleção natural constantemente. A seleção explica o aumento de frequência de mutações que os tornam capazes de resistir a drogas antivirais, de resistir a anticorpos gerados pela imunidade natural e a  imunidade induzida pela vacina, ou de apresentar maior potencial de infecção. Os va­rus evoluem, e a evolução por seleção natural torna-os capazes de burlar nossas defesas. Ainda não sabemos quais das novas variantes foram selecionadas, mas háinda­cios de que algumas delas aumentem a transmissão e algumas reduzam a eficácia dos anticorpos geradas pela exposição a s formas mais antigas do va­rus.

Antivirais e vacinas exercem uma pressão seletiva sobre os va­rus, favorecendo a disseminação de formas resistentes. Pode então parecer que hálgo indesejável no uso de antivirais e vacinas, pois eles são agentes de mudança evolutiva indesejável. Mas analisando com atenção como antivirais e vacinas podem mitigar epidemias, e pensando sobre a forma ideal de usa¡-los, vemos que o risco de selecionarmos formas resistentes éalgo que pode ser minimizado, como explico agora.

As mutações acontecem quando o material genanãtico do va­rus écopiado. O va­rus não écapaz de ativamente “escolher” uma mutação que lhe seja vantajosa; dentre as milhares que ocorrem, ocasionalmente havera¡ aquelas que lhe conferem uma vantagem. O surgimento de uma mutação vantajosa anã, portanto, como “ganhar na loteria”, um evento muito improva¡vel. Poranãm, considere o que acontece quando o va­rus se disseminou extensamente numa população, havendo muitas pessoas infectadas e altas taxas de transmissão. Nesse caso, havera¡ um número grande de va­rus tendo seu material genanãtico copiado: são milhares de bilhetes lotanãricos sendo vendidos, o que aumenta a chance de que entre eles surgira¡ uma variante que confere vantagem ao va­rus.

Repare então que entramos num ciclo perigoso: a maior proliferação do va­rus implica o surgimento de mais mutações, o que por sua vez aumenta as chances de que entre elas havera¡ uma variante que torna o va­rus mais infeccioso, ou mais resistente a tratamentos (digamos, por antivirais) ou a  prevenção (por exemplo, usando vacinas). Controlar a disseminação do va­rus ospor isolamento fa­sico, pela vacinação extensa e rápida— ira¡ reduzir o número de ca³pias de va­rus circulando, encurralando o va­rus, no sentido de diminuir seus números a ponto de tornar mais improva¡vel que sejam originadas, por mutação, formas resistentes. Aluz desse racioca­nio, não ésurpreendente que algumas das variantes que mais nos preocupam tenham se originado empaíses com grandes números de pessoas infectadas (Espanha, Reino Unido, áfrica do Sul, Brasil).

O ambiente ao qual o va­rus estãosubmetido émoldado por ações humanas. Quando criamos condições para o va­rus proliferar (pela ausaªncia de medidas de distanciamento, pela falta de tratamento médico, pela baixa vacinação), estamos favorecendo o surgimento de novas linhagens. Pior ainda, se essas linhagens surgem num ambiente em que háuma fração pequena da população vacinada, a exposição dessas variantes a s vacinas cria uma condição em que pode haver seleção favorecendo a disseminação de linhagens resistentes. Dessa forma, um processo de vacinação lento tem o potencial de favorecer o surgimento de linhagens resistentes: a baixa vacinação não diminui a população viral, permitindo que surjam mutantes, e expaµe as novas mutantes a  seleção pelos indivíduos vacinados. Uma vacinação rápida e em massa diminuiria os riscos de surgimento de formas resistentes.

Outro cena¡rio preocupante éo da infecção de pessoas imunocomprometidas com o coronava­rus. Nelas, o va­rus persiste por muito tempo, e na ausaªncia de defesas eficazes sua proliferação pode ser extensa, gerando muitas novas variantes. Um estudo recente mostrou que, num homem com uma história de imunossupressão, o va­rus gerou linhagens resistentes aos anticorpos com os quais ele vinha sendo tratado. Nesse caso, a evolução do va­rus ocorreu dentro de uma pessoa. Proteger pessoas imunocomprometidas seria, portanto, uma forma de proteger não são a sua saúde delas, mas também uma forma de reduzir as chances de surgirem linhagens com adaptações a drogas ou vacinas.

Va­rus evoluem. Para enfrenta¡-los, precisamos evitar que encontrem condições favoráveis para que surjam linhagens novas e perigosas, e que elas proliferem. Em termos práticos, sabemos o que fazer: tomar atitudes para diminuir a quantidade de va­rus circulando, realizar a vacinação de modo a¡gil e em massa, e monitorar o surgimento de novas linhagens, para sabermos como o va­rus estãoevoluindo. Essas são nossas estratanãgias. O va­rus, de seu lado, conta com a evolução. E com a evolução não se brinca.

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Diogo Meyer
Professor do Instituto de Biociências da USP

 

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