Opinião

Decla­nio e queda de um mito
Os deuses e hera³is da mitologia grega quase sempre são arrogantes, cruanãis e um bocado tresloucados, mas nunca são desprovidos de inteligaªncia. Com a excea§a£o apenas de Ares, o deus da guerra.
Por urandir Renovato, - 26/03/2021


Esta¡tua de Hefesto do escultor Guillaume Cousto

Os deuses e hera³is da mitologia grega quase sempre são arrogantes, cruanãis e um bocado tresloucados, mas nunca são desprovidos de inteligaªncia. Com a exceção apenas de Ares, o deus da guerra.

Se o mito de fato éo nada que étudo, como queria Fernando Pessoa, Ares não compartilha dessa imagem, pois ele éo Nada absoluto. Mesquinho, vil e ignorante, éa própria personificação daquilo que um mito não anã, daquilo contra o que o mito resiste, a saber, o Caos. O mito, por excelaªncia, éa vita³ria da Ordem sobre o Caos, não da “ordem e progresso”, bem entendido, mas daquilo que no sentido cosmoga´nico representaria o equila­brio do universo e, por conseguinte, na medida em que o mito se projeta para dentro de cada um, do equila­brio humano. Ares, no entanto, éum ser desequilibrado. E destruidor. Apesar de viver bravateando seu ola­mpico hista³rico de atleta (fato, talvez, que fez Afrodite, a bonitinha da mitologia, cair nas suas graças ossão não sabemos se pelo hista³rico ou pela bravata), Ares éum deus covarde, no sentido etimola³gico de que a coragem provanãm do coração, o que ele não tem. Tambanãm não tem cérebro.

Esse ser “fanfarra£o, estaºpido e rida­culo”, conforme a descrição de Menelaos Stephanides, estãosempre acompanhado de seus filhos Deimos (o medo) e Fobos (o terror), os dois tão despreza­veis quanto ele. Quando não estãomatando gente ou perseguindo incautas ninfas (a s vezes, jovens mancebos), essa dupla gosta de posar para selfies fazendo o sinal de Ares com as ma£os, um ca­rculo e uma seta em diagonal apontando para cima oscomo um órgão genital masculino visto de lado com o paªnis ereto –, respectivamente o escudo e a lana§a de Ares, sa­mbolos, por assim dizer, da brutalidade machista. Com isso desde sempre atraa­ram a atenção de Hefesto, o fabricante de armas do mundo antigo. Ta£o grande era a demanda que, dizem, Hefesto pensou atéem abrir uma filial de sua oficina na Tra¡cia. (Dizem também que havia um outro motivo, que Hefesto estava apaixonado por Afrodite, mas essa éoutra história…) Ares com certeza representava um cliente entusiasmado e um investimento seguro com lucro fa¡cil.

Os deuses do Olimpo, poranãm, não o viam com tão bons olhos, por isso o evitavam, sendo encarado por todos da mesma forma que o Stanislaw Ponte Preta considerava seu primo Altamirando, o abomina¡vel parente. E isso nem tanto por sua crueldade e violência, já que os deuses gregos eram todos bem violentos quando queriam ser. O caso éque Ares era muito burro, e um adorador de armas com pouca ou nenhuma inteligaªncia sempre podia representar um perigo real e imediato, mesmo para os deuses do Olimpo. Por isso foi preciso eleger um deus da guerra alternativo, uma deusa, melhor dizendo. Atena éa anta­tese de Ares: inteligente, sensata, complacente. Sobretudo, paca­fica. a‰ a deusa da guerra e da sabedoria. Tambanãm éa protetora das ciências, da tecnologia e das artes. Foi ela que mostrou aos homens o benefa­cio do arado e que ajudou o tita£ Prometeu, aquele que roubou o fogo de Zeus e o entregou aos mortais, a criar a primeira mulher. Se um trabalhador qualquer, de qualquer estirpe, precisasse de ajuda, ou mesmo um hera³i em dificuldades, era a ela que devia recorrer.

Ares, por outro lado, desprezava as ciências, as artes e as mulheres com a mesma arrebatada paixa£o com que impunha sua barba¡rie ao povo e a  natureza. Era um deus inescrupuloso e sem nenhum senso de justia§a, o que pode parecer contradita³rio já que o supremo tribunal grego levava o seu nome, mas o Area³pago (as Colinas de Ares), em Atenas, onde sua rival era soberana, fora criado exatamente para que ali pudessem ser julgados os seus crimes. E estes eram muitos, de A a Z. Infelizmente, sendo filho de Zeus e de Hera, tinha as costas quentes, e não podiam simplesmente elimina¡-lo, como alia¡s ele costumava fazer com seus inimigos. Atena, mais que todos os outros deuses, sabia muito bem disso, pois desde a Guerra de Troia estava cansada de desviar as flechas que Ares lana§ava a torto e a direito apenas pelo execra¡vel prazer de verter sangue.

O jeito, ponderou o divino conselho reunido no Area³pago, seria mantaª-lo a distância, nalgum lugar remoto e perifanãrico, onde, estranhamente, houvesse quem o adorasse. A Tra¡cia, sua terra natal, parecia um bom lugar. “Se nessepaís, ao contra¡rio do resto do mundo, gostam dele”, arguiu a ajuizada guerreira, “que fique por la¡ então”. Assim foi feito e, por muito tempo, Ares e os filhos dominaram aquela regia£o com a estupidez e o a­mpeto destrutivo que lhes eram peculiares.

Mas como tudo tem um limite, atépara os mitos, houve um momento em que as coisas na Tra¡cia não iam nada bem. O povo sucumbia vitimado por doena§as, fome e desemprego, e a cada dia aumentava o descontentamento geral. Seu rei e deus protetor, no entanto, não estava nem aa­, quando muito lastimava a perda de um de seus odiosos aca³litos militares, pois a morte, ele bem sabia, levava a todos, indistintamente, menos a ele e a sua fama­lia, claro, posto que eram imortais. Enquanto o mundo que habitavam virava pa³, aproximando-se a terra ao reino subterra¢neo, sua linda esposa não saa­a dos shoppings, atrás de túnicas de Atenas, sanda¡lias de Corinto e braceletes de Argos, o centro da moda grega, e seus tenebrosos herdeiros adquiriam mansaµes com vista para o Helesponto, e assistiam ao BBB21.

Naquela tarde, quando Afrodite punia um escravo por ter deixado cair uma a¢nfora cara­ssima, e os dois pimpaµes se empanturravam de nanãctar e ambrosia na sala de TV, Ares chegou em casa mais furioso do que nunca. Nãobastasse Atena novamente taª-lo impedido de estripar uma ancia£ que deixara de lhe prestar uma correta homenagem, alguns tracianos andavam conspirando contra a fée os bons costumes, motivados pela leitura de uns certos pergaminhos subversivos; sendo encabea§ada, essa corja, por um tal de Dema³crito de Abdera.

Deimos, diante da figura colanãrica do pai, imediatamente desligou a TV. Sa³ podia ser coisa de comunista, garantiu, deixando escorrer um pouco de nanãctar pelo cha£o. Fobos, que tinha frequentado aquela regia£o de Abdera, um lugarejo mequetrefe na periferia da Tra¡cia, enrabichado na anãpoca por uma centaura de linda cauda esverdeada, estranhou o comenta¡rio do irmão, pois, atéonde sabia, Dema³crito era atomista. “Atomista, comunista, nazista… étudo a mesma coisa”, disse Deimos. Fobos ficou em daºvida: “Então eles também odeiam judeus?”.

Ares não queria saber daquela conversa efeminada, então bateu a empunhadura de sua lana§a no cha£o e vociferou que ter a³dio ébom, o ruim éa leitura! “Essa história de colocar a razãoacima da crena§a nos deuses éum perigo”, prosseguiu, ainda mais furioso. “Aqui não tem esse nega³cio não, aqui éfécega e faca amolada!”. Um pouco gaguejante, Deimos sugeriu que o vagabundo fosse entregue a quele torturador amigo da fama­lia. “Sem chance”, bradou Ares, “esqueceu que o coronel foi condenado ao Ta¡rtaro eterno? E ainda que pudesse tira¡-lo de la¡, apesar de eu não estar querendo mexer com o tio Hades, émelhor pegar leve. Pelo menos agora. Minha popularidade anda meio em baixa. Vou ligar pro Hermes”. “O Trismegisto?”, Fobos quis saber. “Claro que não, imbecil! Imagina se vou querer um ega­pcio dando pitaco nos meus doma­nios. Sem contar que esse sujeito não diz coisa com coisa…” “Verdade, ele bem hermanãtico”, anuiu Fobos. Ares, então, soltou um grito ensurdecedor e espetou a ponta de sua imensa lana§a na garganta do filho: “Deu para falar difa­cil agora, moleque? Por acaso virou assinante da Folha?”. Os dois irmãos ficaram paralisados, respectiva e redundantemente, de medo e terror. Mais pa¡lidos que uma esta¡tua esculpida por Fa­dias. Claro que o pai se referia a Hermes, o mensageiro dos deuses, pensou Deimos, e, para acalma¡-lo, lembrou-lhe o sucesso dos twitters disparados por Hermes na campanha do Mar Egeu. “Ele vai resolver o problema rapidinho, o senhor vai ver”, disse por fim.

Hermes, de asas nos panãs, de fato era tão ligeiro quanto solerte. Era meio-irma£o de Ares pelo lado paterno. Tambanãm foi ele que ensinou a mentira aos homens, o que o tornava uma espanãcie de deus protetor das fake news; e, embora não tendo o mesmo espa­rito truculento de Ares, não perdia uma boa esparrela por nada deste mundo, nem do outro. Logo concebeu um plano perfeito. Com a ajuda de Hipnos, o deus do sono, que lhe devia alguns favores, engendraram um feitia§o infala­vel aos inadvertidos leitores tracianos. A coisa era muito simples: contraa­do o feitia§o o indiva­duo seria incapaz de manter as pa¡lpebras levantadas após abrir um livro, caindo no sono imediatamente. Ares, que nunca pegara um livro nas ma£os e são assistia a filmes dublados, apesar de achar o estratagema bem a¡gua-com-açúcar para seus padraµes sanguinolentos, aprovou-o sem maiores delongas.

Dizem que o plano funcionou durante um bom tempo, no qual o povo, destitua­do da possibilidade de ler, de obter conhecimento e de se informar de modo correto, voltou a apoiar bovinamente os desmandos daquela familia estulta. A arte e as ciências foram esquecidas e as bibliotecas, fechadas. Atéque a sa¡bia deusa, que a tudo observava, resolveu intervir. Aliando-se ao nobre Perseu, de quem ganhara a cabea§a da Ga³rgona estampada em seu escudo, criou o primeiro acordo de cooperação maºtua com uma nação não helena­stica.

E foi da Panãrsia que chegaram os primeiros gra£os de um fruto que, após infundido em águaquente, tinha o poder de neutralizar o feitia§o de Hermes. Uma grande campanha de imunização, batizada de “Acorda, Tra¡cia”, espalhou-se por toda a regia£o, chegando atéos confins da Magna Granãcia, onde, em Siracusa, conta-se que Arquimedes, após tomar uma dose da infusão, teria gritado: “eureka!”. Com essa expressão, talvez estivesse querendo dizer o eminente cientista (autor da obra O problema bovino) que, somente após a visão ser despida do vanãu embaciado da mentira forjada por um lider disfuncional, os homens enxergariam a verdade e compreenderiam que apenas a razãoosesta, sim osestava acima de tudo. Ou, trocando em miaºdos, que sem conhecimento os pobres mortais permaneceriam sempre cegos e sujeitos a s patacoadas de qualquer demente no poder.

Segundo matéria assinada pelo primeiro repa³rter da história, Hera³doto (não o Barbeiro), mais difa­cil do que convencer as pessoas da real eficácia do anta­doto estava sendo driblar os infames ardis com os quais Ares e seus asseclas tentavam boicotar a campanha. Quanto trabalho, a³ Zeus, para escapar da boa§alidade do mito!

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

Jurandir Renovato
Jornalista e editor da “Revista USP”

 

.
.

Leia mais a seguir