Qualquer que seja o futuro do Brasil, sua fra¡gil democracia parece estar sob grave ameaa§a, certamente sem precedentes desde que foi restabelecida em 1985, após 21 anos de ditadura militar.

Para comea§ar pela marca mais chocante, vergonhosa e desonrosa, opaís atingiu, em 19 de junho de 2021, meio milha£o de mortes por Covid-19. Nãoéapenas um número, éum esca¢ndalo total para umpaís que teve, durante décadas, um dos melhores e mais organizados programas de imunização do mundo, o Programa Nacional de Imunização (PNI). O PNI oferecia, desde sua criação em 1973, vacinas gratuitas ministradas para toda população, e que tem sido fundamentais na prevenção de diversas doena§as. Esse programa faz parte do Sistema ašnico de Saúde (SUS) e tem sido responsável pela erradicação ou pelo controle de diversas doena§as.
Recapitulando os acontecimentos, quando a Covid-19 iniciou seu ciclo mortal no inicio de 2020, o PNI estava em vigor e pronto para distribuir uma vacina, assim que ela estivesse disponavel no mercado. No entanto, o Ministanãrio da Saúde, sob a diretriz de Bolsonaro e inspiração do deputado (e, supostamente, médico) Osmar Terra, partiu do pressuposto de que a doença era como “uma gripezinha†e de que em poucas semanas toda a população de 215 milhões de pessoas entraria em contato com o varus e adquiriria naturalmente a chamada “imunidade de rebanho†(uma panãssima escolha de palavras!).
A determinação de Bolsonaro foi motivada pela crena§a, defendida pelo ministro da fazenda, o ex-posto Ypiranga Paulo Guedes, de que a economia nacional não poderia ser interrompida por quaisquer medidas do tipo lockdown e distanciamento social, e também sob o argumento de que as vacinas custariam muito dinheiro. Em vez disso, e sob a influaªncia de pessoas inescrupulosas, incluindo seus filhos “zerosâ€, alguns de seus ministros e assessores, e atéde “médicosâ€, estes mais inescrupulosos ainda, apostou no chamado “coquetel anti-Covidâ€, que incluaa drogas que já tinham sido testadas e, comprovadamente, não apresentaram resultados positivos contra a Covid.
Sa³ depois que Joa£o Da³ria, um de seus potenciais adversa¡rios polaticos nas eleições presidenciais do ano que vem, deu inicio a um movimento para produzir a vacina do laboratório chines Sinovac, a Coronavac, pelo Instituto Butantan, o presidente reagiu. No entanto, sua primeira resposta foi dizer que não permitiria que a "porcaria da vacina chinesa" fosse ministrada pelo PNI.
A essa altura, Da³ria estava usando o Coronavac como carro-chefe para sua própria promoção polatica. A enorme aceitação pública por, finalmente, ter acesso a uma vacina, fora§ou Bolsonaro a mudar de ta¡tica novamente, usando a tradicional produtora de vacinas ligada ao governo federal, a Fundação Fiocruz, que passou a produzir a vacina Astrazeneca. Ele também permitiu, relutantemente, que a Coronavac fosse ministrado em todo opaís sob o PNI, uma vez que ela já estava disponavel, enquanto a Fiocruz ainda estava em processo de produção.
No entanto, o volume combinado de produção das vacinas pelos dois institutos não seria suficiente para fornecer o número necessa¡rio de doses para impedir a disseminação da doena§a. Essa quantidade éde aproximadamente 320 milhões de doses, necessa¡rias para imunizar cerca de 70% da população dopaís.
Nesse anterim, outras vacinas produzidas pela Pfizer, Janssen e outras empresas farmacaªuticas foram completamente ignoradas pelo governo Bolsonaro. A Pfizer foi um caso escandaloso: entre mara§o de 2020 e janeiro de 2021, a presidaªncia e o ministanãrio da saúde simplesmente ignoraram 81 mensagens de e-mail enviadas pela farmacaªutica ao governo brasileiro, se oferecendo para negociar um grande volume de sua vacina. Somente em mara§o de 2021, quando o número de mortos chegou a 280 mil, houve uma resposta. A alegação do presidente por atrasar o contrato da Pfizer por quase um ano foi que eles estavam pedindo "muito dinheiro".
Um dos desenvolvimentos recentes mais significativos foi a instalação da CPI que a oposição no Senado conseguiu aprovar, com o mandato de investigar as condutas impróprias do governo durante a pandemia. A CPI começou hálgumas semanas e vem atraindo grande atenção em todo opaís, tendo audiaªncias na TV e nas redes sociais equivalente aos episãodios finais das novelas televisivas.
Depoimentos de atuais e de ex-funciona¡rios do governo, bem como de cientistas, médicos, do CEO da Pfizer e de polaticos e pessoas do carculo antimo do presidente, estãorevelando uma grande quantidade de evidaªncias e fatos que, atéentão, estavam envoltos em um manto de obscuridade. Eles apontam, sem qualquer daºvida, para o governo Bolsonaro e para o pra³prio, como responsa¡veis por muitas das centenas de milhares de mortes pela Covid-19, em um caso ultrajante que promete desencadear consequaªncias não são nacionais, mas também internacionais, desembocando no Tribunal Penal Internacional, em Haia, Holanda.
Cientistas como Pedro Halal, da UFPel, calcularam que, com base no número manãdio de mortes da Covid no mundo, e comparando-o com as estatasticas brasileiras, poderiam ter sido poupadas as vidas de cerca de 400 mil brasileiros e brasileiras, caso o governo tivesse agido em tempo ha¡bil. Em vez disso, o governo instruiu, por exemplo, o Embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, a negociar e comprar grandes quantidades de hidroxicloroquina do governo dos EUA (ainda sob a administração de Donald Trump) para serem distribuadas no Brasil pelo SUS.
Em uma das capitais mais afetadas, Manaus, o então ministro da Saúde, General Pazuello, enviou uma das principais autoridades do ministanãrio, a médica Mayra Pinheiro (que passou a ser mais conhecida pela alcunha de “Capita£ Cloroquinaâ€) para promover o uso da cloroquina. Enquanto isso, centenas de manauaras e amaza´nidas morriam nas UTIs locais por asfixia, devido a falta de oxigaªnio. O presidente da CPI, e ex-governador do Amazonas, Osmar Aziz, disse com todas as letras que Manaus e seus cidada£os foram alvo de uma experiência macabra por parte do governo federal, que resultou em milhares de mortes, numa clara analogia com os experimentos do infame Dr. Joseph Mengele no campo de concentração de Auschwitz na Alemanha nazista.
A indignação generalizada começou a produzir reações públicas em todo opaís. Em 29 de maio, houve protestos em muitas grandes cidades, com a grande imprensa tradicional ainda tentando minimizar o clamor das ruas, não divulgando sua extensão e importa¢ncia. No entanto, no dia 19 de junho, os protestos, que passaram a ser conhecidos como “19Jâ€, foram bem maiores e abrangeram mais de 400 cidades, em quase todos os estados. Isso não poderia ter sido ignorado pela grande imprensa brasileira, uma vez que alcana§ou as manchetes em todo o mundo. Protestos semelhantes aconteceram em muitas capitais da Europa, Amanãrica do Norte e asia.
O cena¡rio polatico de 2022 estãocomea§ando a se delinear e Bolsonaro não estãogostando do que vaª. Em primeiro lugar, seu principal adversa¡rio hista³rico, o ex-presidente Lula, não apenas recuperou seus direitos polaticos, desmoralizando seus acusadores e julgadores, mas iniciou um dia¡logo nacional com muitas das principais liderana§as, abrangendo uma ampla gama do espectro polatico. Algo que parecia pouco prova¡vel atépoucas semanas atrás, aconteceu: o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista a Rede Globo, declarou que, em caso de um segundo turno entre Bolsonaro e Lula, votaria pela democracia, votando em Lula. Esse movimento foi surpreendente, já que todo o imbra³glio polatico em que o Brasil se meteu a partir de 2016 teve origem justamente na contestação feita pelo PSDB, por meio de Aanãcio Neves, mas contando com o apoio de suas principais liderana§as, do resultado do processo democra¡tico de 2014, já que as urnas haviam claramente mostrado a reeleição de Dilma Roussef, do PT.
A combinação desses recentes acontecimentos estãoproduzindo um sentimento aparentemente novo para Bolsonaro, acostumado a impor seus desejos e políticas como o ditador que, no fundo de sua alma (se éque se pode dizer que ele a tem), deseja ser. Esse novo sentimento éo medo. A mente já perturbada do presidente da¡ sinais claros de desequilabrio progressivo, com ameaa§as crescentes ao Supremo Tribunal Federal, ao Senado, aos seus oponentes, e chamando as Fora§as Armadas de “meu exanãrcitoâ€, mesclando sua pessoa com o Estado que supostamente representa.
Além disso, Bolsonaro conta também com o apoio das polacias militares dos estados que, em tese, estariam sob o controle e comando dos governadores. O que acontece, de fato, éque no Brasil de hoje, nenhum dos governadores estaduais pode afirmar que estãono controle de suas polacias, em cujas fileiras háinúmeros admiradores e seguidores do “mitoâ€.
Ha¡ um caminho sendo delineado, e que infelizmente podera¡ levar ao desastre, em vista das eleições presidenciais e parlamentares do pra³ximo ano. Va¡rios analistas da cena polatica, entre eles o professor de ciências sociais e meu colega da Unicamp, Marcos Nobre, estãoprevendo dois cenários prova¡veis. O primeiro éa vita³ria de Bolsonaro sobre Lula, seguida por uma ruptura democra¡tica e o inicio de um regime autorita¡rio, a exemplo do que já vem ocorrendo na Hungria, Filipinas e Pola´nia. A segunda éque Lula vencera¡ Bolsonaro, mas este tentaria em seguida um golpe de Estado, com o apoio dos militares e das polacias estaduais, algo já abertamente mencionado por pessoas de seu carculo familiar.
Qualquer que seja o futuro do Brasil, sua fra¡gil democracia parece estar sob grave ameaa§a, certamente sem precedentes desde que foi restabelecida em 1985, após 21 anos de ditadura militar.
E, na vergonhosa marca de meio milha£o de brasileiros vitimados pela Covid-19, o presidente não foi digno e nem capaz de expressar uma única palavra de condolaªncia ou conforto aos familiares e amigos das vitimas ...
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Alvaro Penteado Cra³sta
Professor titular do Instituto de Geociências e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências do Estado de Sa£o Paulo e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Foi Coordenador Geral (Vice-Reitor) da Unicamp no período 2013-2017. a‰ atualmente Editor Associado da Economic Geology (SEG), do Brazilian Journal of Geology