Quanto seria possível recordar neste momento da perda, aos 90 anos, de uma escritora que tão bem representa a aventura macunaamica do século XX para o século XXI.

Cortesia
Dia 8 de julho de 2021, Renata Pallottini nos deixou aos 90 anos: permanecera£o vivos o brilho de sua obra e a força de sua presença na roda dos afetos ou nos carculos acadaªmicos. Sua voz se sobressai no canto plural da constelação de poetas. Assim intitulei o texto que a apresentava, em 1985, no livro que escrevi sobre a literatura brasileira. A posse da terra, escritor brasileiro hoje, publicado em Lisboa pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, contou também com Renata e sua alegre liderana§a nos lana§amentos em Portugal e no Brasil. Poesia, dramaturgia, ensaio, ficção, teoria do teatro ou teledramaturgia se desbordavam na importante autora da brasilidade. Escolhi, com ela, um fragmento dessa sinfonia plural, Macunaama, em onze cantos, do livro Cantar Meu Povo (Massao Ohno, 1980). Transcrevo aqui o primeiro canto:
Ponho a cabea§a
no cabeceiro
e sonho um Brasil
maneiro
com tudo o que éseu a ma£o:
Amaza´nia Goia¡s
Rio Grande
Maranha£o
Solimaµes e metais
Corumba¡s e cafanãs
pintado em tons
de ouro e verde e anil
todo seu
o Brasil
risonho e pra³spero e capaz
de ter-se e se pagar
compor-se
e ser feliz
Brasil destabocado
Brasil da vara anil
abertos todos os portos
por Da£o Joa£o de Bragana§a
desde então jamais fechados
a qualquer dança…
Ponho a cabea§a
no cabeceiro
e sonho um Brasil-
pandeiro:
batido liso e cantante
gato gigante
macio livre e sutil:
pois éBrasil.
E para além va£o os ecos de Renata Pallottini atéo danãcimo primeiro canto. Bom seria se nos declamasse hoje com sua graça o atual Brasil ainda destabocado deitando sonhos no cabeceiro. Ela muito sabia de resistência cultural. A propa³sito da experiência dos anos de ditadura, duros de aceitar, me dizia transformando, nos anos 1980, a dor em superação osa gente se adoece, se não mantiver um estado de vigila¢ncia para a saúde mental. Assim viveu 90 anos. Como afirmava nesse momento, o trabalho nasce das brechas, sabia avaliar o fa´lego necessa¡rio. Mais temperana§a na ação serena e equilibrada: não tinha pressa quanto a sua polifa´nica criação. Reconhecia osassim a percebi nos 1980 osque a arte intervanãm muito lentamente na sociedade. Um poema vivo, para ela, se planta em dez pessoas que, por sua vez, levam a semente a outros tantos, pouco a pouco. Mas a semeadura de Renata explodiu em vários canteiros, do universita¡rio, a USP em particular (professora emanãrita), a s letras em poemas, contos, ensaios, pea§as de teatro, teledramaturgia. Os autores de sua geração osaqueles que da£o o título a meu livro, A posse da terra osnão cultivam o latifaºndio privado, estãoafetos uns aos outros, a s velhas e novas gerações, no sonho de um Brasil maneiro/ com tudo o que éseu a ma£o. E ela fazia questãode o sublinhar: não sou sozinha, pertena§o a uma constelação.
Nunca negou desafios a criação plural. Um deles, a linguagem televisiva, não a descartou como secunda¡ria perante a poesia, o teatro e a ensaastica. Ha¡ diferenças, não hierarquias de valor estanãtico. Participou da elaboração do roteiro de Malu Mulher (sanãrie exibida na Rede Globo de 1979 a 1980). Quem poderia prever que essa ficção sobre a condição feminina faria sucesso no a¢mbito internacional (muito me surpreendeu noticiar no jornal O Estado de S. Paulo, em que fui editora de Artes de 1976 a 1984, o sucesso de Malu Mulher na Suanãcia). A poeta vinha de longe como militante das ciências humanas e o protagonismo da mulher era um capatulo em que navegava de braçadas. Formada em Direito, fez Filosofia, Dramaturgia e Cratica, especializou-se no exterior em vários cursos de Hista³ria da Arte, Literatura Espanhola, Estanãtica Teatral. Seu aprofundamento sobre as Grandes Tendaªncias do Teatro Moderno, em Paris, lhe deu subsadios para publicar, em 1983, Introdução a Dramaturgia. E de toda a bagagem tea³rica na arte extraiu uma posição simples que me confessou: na prática das diferentes expressaµes que assumiu, tudo éva¡lido para melhor se comunicar com o povo, sua terra. Por isso mesmo encarou também a televisão, de adaptações de literatura para a novela Os Irma£os Karamasov, de Dostoievski, a Vila Sanãsamo, que considerava uma surpreendente experiência de pesquisa nos anos 1970. Aceitou o convite e a criação lhe deu a especial alegria de ter tido a oportunidade de para aa transpor o tom poanãtico que vivia dentro dela.
Nem mesmo a tradução considerava como tarefa de segunda ordem na oficina de criação litera¡ria. Então se tratando de textos drama¡ticos, que teriam montagem assegurada, a sedução era imediata. Lembrou, na nossa conversa de 1984-85, que traduzir A Vida éSonho, de Caldera³n de la Barca, foi um desses prazeres iniguala¡veis. Trabalhar com textos como Hair ou Simon (sobre Bolavar), espeta¡culos garantidos, não eram um tiro no escuro. Mas Renata não fazia concessaµes, são pegava o texto de que gostasse. Natural que se conjugassem nela a história da arte e a ensaastica: não cultivava gostos gratuitos, mas, curiosa e sensavel, ia em busca de algum ponto luminoso da constelação internacional das artes. Na própria biografia e na biografia coletiva, a memória lhe indicava um mapa ao mesmo tenso e denso. Nascida nos anos 1930, captou os fortes sinais da geração de 45 e já nos 1950 teceu seus versos em Acalanto (1952). Assinava desde então uma marca inconfundavel; veio a seguir o segundo livro, O Cais da Serenidade, em que já se refletem certas ousadias. O Mona³logo Vivo (1956) rompe definitivamente com qualquer proposta convencional. O embate das rupturas e do sofrido aprendizado se acentuaria com os acontecimentos hista³ricos de 1964, uma paulada no devir brasileiro, me disse ela a s vanãsperas de novo e esperana§oso devir, o da reconstrução democra¡tica dos anos 1980. Impunha-se então para a geração que vivera a ditadura militar, o balana§o de perigosas fronteiras da criação solida¡ria, engajada. Um período de gritos/chaves poanãticos contra fechaduras trancadas.
A poesia, dizia Renata Pallottini, permanecera como va¡lvula de escape da solida£o nas horas em que cessara a roda-viva social. Em casa, quando o silaªncio se instalava, voltava-se para dentro, ouvia as vozes mais antimas, reunia, nos apontamentos de papel, qualquer papel que achasse por ali e depois, tratar de falar com os outros, pelo poema que diz coisas secretas. Nãopoupou, nesse mergulho, uma autoanálise. Talvez fosse a antiga menina em busca de aprovação dos outros: no fundo, queria ser amada atravanãs de coisas bonitas. Disse-lhe eu perante esta deslumbrante sinceridade: desse esfora§o de comunicação pretendia extrair uma resposta de amor. Que arma mais eficaz que não a poesia?
Quanto seria possível recordar neste momento da perda, aos 90 anos, de uma escritora que tão bem representa a aventura macunaamica do século XX para o século XXI. De fato, uma tarefa cumprida e por cumprir de bia³grafos, ensaastas, historiadores da arte brasileira. De minha parte, querida Renata, uma breve e datada memória em sua homenagem. E lembro o canto seis de seu poema:
Macunaama, audaz Tumucumaque,
menino inventador, hera³i de araque,
la¡ vai ele, criador de boi-bumba¡;
voltando para a terra antes que acabe,
para o seu galho em antes que desabe,
para as florestas
cada vez mais menos,
para as montanhas, já
montes de Vaªnus,
para os campos,
agora mais pequenos…
Macunaama encolhe igual sanfona
Na charanga brasalico-amazona.
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Cremilda Medina
Professora da Escola de Comunicações e Artes da USP