Opinião

O curra­culo nosso de cada dia nos dai hoje
a€s vanãsperas do último fim de semana de julho a famosa Plataforma Lattes do CNPq caiu, ficando fora do ar (e das fibras a³ticas) por quase duas semanas e, assim, perdemos todos os nossos curra­culos.
Por Peter Schulz - 24/08/2021


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Mergulhados que estamos hálguns anos em um pa¢ntano de cortes e ataques a  ciência e a s universidades, o final de julho e ini­cio de agosto de 2021 causou particular apreensão coletiva e simulta¢nea.  a€s vanãsperas do último fim de semana de julho a famosa Plataforma Lattes do CNPq caiu, ficando fora do ar (e das fibras a³ticas) por quase duas semanas e, assim, perdemos todos os nossos curra­culos. Muitas manifestações nas redes sociais ultrapassaram os umbrais do desespero, afinal muitos (ou quase todos) nessepaís, que militam pelo conhecimento nas universidades e institutos de pesquisa, tem apenas o tal Lattes como curra­culo. Pelo menos éo meu caso e, em vez de me desesperar, comecei a imaginar como seria a vida sem curra­culo. Antes, poranãm, desse exerca­cio de ficção cienta­fica, um pouco da história dessa instituição chamada curra­culo Lattes, que surgiu no final de 1999.

Antes disso, os curra­culos eram datilografados (e depois digitados, fazendo uso dos editores de texto precursores do onipresente Word em quase todas as áreas do conhecimento ou do Latex, em alguns setores de resistência a  Microsoft). Os modelos para jovens estudantes e pesquisadores eram os curra­culos de seus professores, assim havia pluralidade, variações caso a caso. Com o advento do Lattes, os curra­culos sofreram um lento processo de isomorfismo organizacional, ou seja, todos passaram a ser semelhantes, o modelo estava dado, o mesmo “template” colocado para todos. O isomorfismo organizacional se alcana§a atravanãs de três mecanismos, todos presentes na história desse curra­culo. O primeiro mecanismo éa coerção, todos anãramos (e somos) obrigados a ter o nosso. Um outro mecanismo éo normativo e, de fato, o curra­culo Lattes passou a ser a norma no ambiente acadêmico brasileiro e, por fim, foi importado por outrospaíses, o terceiro mecanismo, o mimetismo.

A importa¢ncia dessa instituição chamada curra­culo Lattes e a sua atual encruzilhada devido aos cortes financeiros, necessa¡rios para o seu conta­nuo desenvolvimento nessa anãpoca de “plataformização da ciaªncia”, édescrita por Tulio Chiarini e Victo Silva em artigo recente, posterior ao “apaga£o” dos nossos dados[I]. Além disso, a plataforma Lattes, nessa tendaªncia de plataformização, passou a sofrer a concorraªncia de outros instrumentos internacionais como o ResearchGate, a ORCID ou o mesmo o Google Acadaªmico. Ou seja, Chiarini e Silva descrevem as brechas ao nosso “aprisionamento tecnola³gico” a um modelo, cuja indisponibilidade por quase duas semanas causou tanta apreensão.

Particularmente, eu aprecio o Lattes a partir de uma perspectiva: a mineração de seus dados deu (e da¡) origem a importantes trabalhos de estudos quantitativos sobre a ciência no Brasil. Vejam, por exemplo a história do ScriptLattes de Jesaºs Mena-Chalco[II]. No entanto, como eu mencionei acima, minha preocupação écom outro aprisionamento: ao curra­culo em si, que eu jamais reconstruiria se o “meu Lattes” fosse perdido para sempre.

“Mais e mais pessoas criam arquivos pessoais e profissionais, a fim de que tudo possa ser lembrado e nada esquecido. Esse conceito não parece incluir a opção de realizar um novo começo. Quando as áreas em branco do ‘template’ se tornam visa­veis, e quando a autoestima dos acadaªmicos éligada a isso, as estratanãgias são direcionadas a preencher as lacunas. Isso nos coloca, potencialmente, em uma direção [...] em que as insuficiências nos curra­culos governam a prática e cultura acadaªmicas.”


O curra­culo tem vários precursores hista³ricos, talvez o mais famoso seja o “ranãsume” de Leonardo da Vinci, que ilustra essa coluna: foi escrito em 1482, descrevendo suas habilidades ao duque de Mila£o, a quem pleiteava trabalho. No entanto, disseminou-se como documento necessa¡rio para conseguir um emprego no ini­cio do século passado: curra­culos eram enviados em resposta aos anaºncios de emprego, que começam a ser publicados nos jornais. Mas éno mundo acadêmico que esse “documento confessional”, segundo o socia³logo Andrew Metcalfe, conquistou um lugar especial. Em seu artigo de 1992[III] , uma passagem na introdução éespecialmente saborosa.

“Os curra­culos são um assunto apropriado para a atenção acadaªmica, pois a academia moderna émorbidamente obcecada por eles, e éprova¡vel que se torne mais obcecada com a institucionalização de esquemas de avaliação baseados em performance na universidade moderna [...] Na privacidade de suas telas de computador, acadaªmicos sombriamente consideram seus pra³prios curra­culos. Devem enfatizar seus feitos de ensino tanto quanto os de pesquisa? Um artigo longo vale tanto quanto vários curtos? Quantos produtos (artigos, etc) podem ser espremidos de um aºnico projeto? Vale a pena escrever resenhas se elas não se qualificam para o curra­culo? Existem lacunas que necessitam de uma justificativa especial?

A despeito dessa ma³rbida obsessão, o curra­culo não recebeu muita atenção sociola³gica...”

Pelo menos uma dessas perguntas o curra­culo Lattes respondeu, pois novos campos foram sendo acrescidos e la¡ cabem as resenhas mencionadas pelo socia³logo australiano, que assevera que o “curra­culo tornou-se um dos grandes textos confessionais de nossa anãpoca”.

Nesse sentido sociola³gico parece que a atenção ainda era pouca 25 anos depois, ao menos segundo Eva Forsberg em sua palestra “Curriculum Vitae oso curso da vida”[IV]. A palestrante se pergunta também sobre a falta de interesse no tema.

“Dada a centralidade do curra­culo no mundo do emprego, esperara­amos pesquisa extensiva sobre o assunto. Mas não éesse o caso. Conhecimento cienta­fico do cara¡ter dos curra­culos, suas funções e consequaªncias para indiva­duos, organizações e nega³cios érelativamente limitado.”

Eva Forsberg levanta algumas outras lebres. Ela parafraseia o trecho de Metcalfe que destaquei acima (sem cita¡-lo, infelizmente), mas acrescenta algo sobre a função dos curra­culos, que se parece a  dos rankings de universidades, são que para indiva­duos: “curra­culos transformam qualidades em quantidades mensura¡veis, que são usadas em situações de competição”. Ela observa tambémmudanças de comportamento, decorrente dessa obsessão pela quantificação:

“Mais e mais pessoas criam arquivos pessoais e profissionais, a fim de que tudo possa ser lembrado e nada esquecido. Esse conceito não parece incluir a opção de realizar um novo começo. Quando as áreas em branco do ‘template’ se tornam visa­veis, e quando a autoestima dos acadaªmicos éligada a isso, as estratanãgias são direcionadas a preencher as lacunas. Isso nos coloca, potencialmente, em uma direção [...] em que as insuficiências nos curra­culos governam a prática e cultura acadaªmicas.”

A cultura do curra­culo cria uma trajeta³ria, um curso de vida, previsível, voltada a corrigir o passado e não olhar para o futuro. Os doze dias sem o “meu Lattes”, trouxeram um certo frescor, confesso, uma desconstrução da para¡frase do cogito cartesiano: tenho Lattes, logo existo.


Peter Schulz
Professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em peria³dicos especializados em Fa­sica e Cienciometria, dedica-se a  divulgação cienta­fica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia osinovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Ta£o longe, tão perto osas telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira osFAAP, Sa£o Paulo (2010).

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

 

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