Opinião

A fala prolixa
Nãoduvido; poranãm, chamo atenção para o risco de o orador superestimar a própria substância e conceber colegas e ouvintes como pessoas-acessãorio, quero dizer, como meros apaªndices do seu discurso tão relevante, original e imperda­vel.
Por Jean Pierre Chauvin, - 03/10/2021



Reprodução/Internet

"O mal das encrencas éque elas comea§am bem devagarinho."

(Milla´r Fernandes, A Ba­blia do Caos)

Um fena´meno, dos mais curiosos, que caracteriza a rotina acadaªmica éa aparente dificuldade em alguns de nosnos empenharmos na contenção verbal. Em algum momento, estaremos sujeitos a ela, seja no papel de conferencistas ou de anfitriaµes; estudantes ou professores; convidados ou ouvintes. Atécerto ponto, éesperado que o fena´meno acontea§a. Por isso mesmo, talvez seja útil descrever a fala prolixa para fins de autoexame e, eventualmente, algum aperfeia§oamento.

A prolixidade pode soar hesitante, redundante e circular. Seus adeptos costumam anunciar incertas sentena§as com epa­tetos (“O grande escritor carioca Lima Barreto…”) ou intercala¡-las com explicações desnecessa¡rias (“Voltaire, que era um habituéda aristocracia francesa, no final do século XVIII…”). Outra marca recorrente desse estilo discursivo são as fa³rmulas de abertura, quando visam a justificar a própria falta de concisão. Podem reparar: com frequência, quem anuncia “serei breve” não o anã. Quase o mesmo acontece com aqueles que repetem “como meu tempo écurto, não aprofundarei essa questão” a cada cinco minutos.

Evidentemente, hámuitas formas de ser e soar prolixo. Por exemplo, referindo-nos a  nossa trajeta³ria intelectual sem necessidade (“quando ‘fiz’ o mestrado, havia percebido que…; hoje, penso diferente”) ou, pior, recomendando os textos de nossa lavra ao comentar tópicos os mais genanãricos (“na tese de doutorado, esse foi um dos aspectos que observei”), ou específicos (“no ano passado, publiquei um artigo na revista x precisamente sobre isso”).

Outras ta³picas costumam ser empregadas na seção final da fala. Quando isso acontece, tudo o que não foi economizado durante a parte inicial do discurso entra em ritmo superacelerado, tendo em vista cumprir o tempo estipulado pelo anfitrião. Nessas ocasiaµes, podemos reconhecer vários expedientes, tais como: “Eu pretendia analisar outras partes do manual com vocaªs; mas, devido a  falta de tempo, poderemos falar mais durante as perguntas que fizerem”; ou: “Puxa, já acabou o tempo? Preciso correr”; e ainda: “Para concluir, são gostaria de dizer que…”.

Quais seriam as causas da falta de objetividade e precisão?

O fena´meno pode estar relacionado a  própria dificuldade de enunciação, devido a  influaªncia de alguns fatores externos (sobrecarga emocional, excesso de trabalho, falta de tempo ao preparar a exposição etc.). Em outros casos, a impossibilidade de nos contermos verbalmente pode residir no teor da fala (menor interesse do orador pelo assunto; falta de conhecimento sobre o tema; maior abrangaªncia que o esperado etc.). Mas a questãotambém pode estar associada ao comportamento, mais ou menos entusiasmado, dos ouvintes. Quem já se apresentou diante de coletivos, seja presencial, seja remotamente, decerto tera¡ se deparado com situações em que o silaªncio do audita³rio desorientou a própria performance.

Provavelmente háfatores tão ou mais impondera¡veis. Mas penso especialmente naqueles casos em que a fala prolixa écalculada, programa¡tica, intencional. Ou seja, quando o sujeito que detanãm a palavra por mais tempo confunde sabedoria com tempo de fala e projeta sua autoridade a respeito do tema monopolizando o discurso. a‰ possí­vel que, num caso ou noutro, o indiva­duo aja desse modo para contornar o incômodo silaªncio dos ouvintes; mas ele também pode supor que a sua fala étão relevante que prescinda do dia¡logo, da intervenção, menos ainda da contestação por quem estãola¡ (em tese) para testemunhar a sua genialidade.

Seja pela necessidade terapaªutica de falar; seja pela dificuldade em se conter; seja devido ao propa³sito de se fazer ouvir e perceber, não serádemasiado lembrar que a prolixidade pode ser interpretada como um sintoma de desorganização e performance ina¡bil, mas também como incapacidade de escuta e egoa­smo. A tí­tulo de ilustração, podera­amos sugerir que a fala-além -do-tempo transcorre analogamente a  impontualidade em atender a determinados compromissos (inclusive os pessoais).

Assim como quem se atrasa para uma reunia£o, banca ou evento acadêmico costuma ter justificativas verossa­meis a apresentar, o sujeito prolixo inicia, desenvolve e conclui o discurso recheando-o com após trofes, interjeições, apostos e outros expedientes que, em geral, são contribuem para prorroga¡-lo ainda mais. Salvo raras exceções (suponhamos estar diante de uma audiaªncia absolutamente sedenta de saberes), extrapolar limites previamente acordados com o anfitrião e seu audita³rio pode ser interpretado como falta de decoro, justamente da parte de quem fora convidado para dar melhor exemplo…

Algum leitor podera¡ torcer o nariz, obstando que cronometrar a fala alheia seria uma tentativa de cercear a expressão e impedir que o pensamento se expanda para além das margens formais que o contem. Afinal, todos nostemos algo de relevante a dizer. Nãoduvido; poranãm, chamo atenção para o risco de o orador superestimar a própria substância e conceber colegas e ouvintes como pessoas-acessãorio, quero dizer, como meros apaªndices do seu discurso tão relevante, original e imperda­vel.


Jean Pierre Chauvin
Professor associado da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

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