Opinião

Ciência: um crescente mal-estar e a necessidade dasmudanças
a‰ hora de discutirmos mais detidamente intramuros acadaªmicos o que estamos fazendo por aqui, com os medos, ilusaµes e dela­rios. As ideias e aa§aµes surgem em vários lugares! Precisamos de novas cenouras e novos rumos.
Por Peter Schulz - 20/12/2021



O mal-estar, para deixar claro de ina­cio, éem relação ao desmesurado universo da produção cienta­fica, bem como a s prática s medir esta produção por meio do número de artigos publicados e de citações osque, ao serem adotadas, desmesuram ainda mais esse universo. Já escrevi vários textos neste espaço relacionados, direta ou indiretamente, a este tema. Mesmo instigado por novas fontes e acontecimentos, também sinto um mal-estar em retomar o assunto, afinal, já não falei sobre isso? Poranãm, pensando melhor e com essa advertaªncia de possí­vel autopla¡gio, a partir do que eu tenho observado, considero necessa¡rio retomar dois textos anteriores: o primeiro que também traz a palavra mal-estar no ta­tulo[I] e o segundo sobre algumas reações a esse mal-estar e a percepção de quemudanças são necessa¡rias[II]. O que mudou nos poucos anos entre esses textos e o que escrevo agora éque hátanto sinais demudanças como de preservação da situação (ou seja, reações contra asmudanças). Então, no balana§o, talvez valha mesmo a pena retomar a questão.

O ada¡gio “publique ou perea§a”, vulgo “publish or perish” éamplamente conhecido no mundo acadêmico e, aos poucos, fora dele. A expressão éantiga: já em 1951, Marshall MacLuhan teria escrito a Ezra Pound que “publicar ou perecer éo lema da espelunca”, sendo que o poeta chamara anteriormente as universidades de espeluncas. Ou seja, o lema élongevo, sobrevivendo e ganhando importa¢ncia com o passar do tempo no mundo da pesquisa cienta­fica. Como exemplo, recolho das buscas um artigo de 1986, de uma médica, Marcia Angel: “Publish or perish: a proposal”[III]. O resumo do artigo, sintetiza a percepção da autora há35 anos:

“Devido ao fato de que promoções e financiamento de médicos na medicina acadaªmica estãoestreitamente ligados ao número de publicações, pesquisadores sentem-se impelidos a publicar tão frequentemente quanto possí­vel. Essa pressão leva a um número de prática s desafortunadas na publicação médica, incluindo realizar estudos triviais porque estes rendem resultados rápidos, o desnecessa¡rio relato do mesmo estudo em diferentes apresentações, relatar o estudo mais de uma vez e listar como autores pessoas com envolvimento marginal no trabalho. E pode ser também motivação para fraude. Uma maneira efetiva de reduzir essas ofensas e afirmar a supremacia do essencial sobre o volume [...] écolocar um teto no número de publicações a serem consideras para fins de promoção ou financiamento. Cada publicação [considerada mais relevante] receberia assim mais atenção...”.

a‰ exatamente a mesma discussão de hoje, passadas essas três décadas e meia! No meio tempo surgiram os rankings globais de universidades (começo do século XXI) que, como um va­rus e suas variantes, infectaram o mundo acadaªmico. Nãoépreciso dizer que os rankings são fortemente ligados aos indicadores. Assim, apesar dos diagnósticos bem anteriores a  propagação desses novos va­rus, atéagora poucas medidas de distanciamento a  ilusão e ao dela­rio foram tomadas. Essa frase remete a um artigo recente do jornalista Carlos Orsi: “Medo e dela­rio na comunicação da ciaªncia”[IV]. O jornalista éatento e arguto observador do mundo da ciência e, 35 anos depois da médica norte-americana, dispara algo similar sobre uma plausa­vel grande parcela dos trabalhos e o cena¡rio em que se inserem:

“Sa£o trabalhos que existem porque épreciso cumprir alguma meta burocra¡tica de publicações para conquistar este ou aquele a­ndice neste ou naquele ranking, não porque havia uma questãolega­tima a ser respondida, um aspecto relevante da natureza a ser explorado, uma hipa³tese via¡vel a ser testada; e que são conduzidos no limite inferior da qualidade metodola³gica, a s vezes representando pouco mais do que pobres arremedos”.

E causticamente, sem o compromisso da médica com alguma solução, afinal, cabe a  academia mesmo cuidar disso, finaliza: “esperamos que os cientistas se resolvam com suas ilusaµes (aparecer nas listas de mais influentes, por exemplo) e as universidades despertem de seus dela­rios de grandeza (querer subir nos rankings para emparelhar com Oxford, outro exemplo).

Mas isso tudo pode parecer apenas ressentimento de alguns muitos, afinal o tal “publique ou perea§a” tem la¡ seus manãritos e, de fato, em um estudo de caso (economia nas universidades holandesas), Henrik van Dalen aponta para uma comunidade acadaªmica dividida[V]: “professores titulares enxergam, mais do que outros membros do corpo docente, lados positivos do princa­pio “publish or perish” e virtualmente nenhuma desvantagem”. Esse artigo acadêmico de 2021 mostra que nos últimos anos, publicar ou perecer, deixou os Espaços de ensaio e opinia£o para virar objeto de pesquisa cienta­fica. a‰ que se constata ao buscar a expressão em base bibliogra¡fica internacional (Web of Science): poucas vezes mencionada em artigos no século passado, o número de artigos, cartas e editoriais em peria³dicos cienta­ficos em diferentes áreas sobre este tema vão crescendo notavelmente nos últimos anos. Voltando a  percepção dos professores titulares na Holanda, o recado dado aos pesquisadores mais jovens neste ano (2021) éclaro no sa­tio de assessoria a  publicação voltada e esse paºblico (Proof-Reading-Service.com): “Como publicar 50 papers por ano”[VI]. Ao ler o texto, notei que as dicas já são seguidas como um mantra por alguns colegas, segundo confissaµes ou profissaµes de fanã. A isso somam-se as fa¡bricas de artigos, por meio das quais seu nome pode ser inclua­do como autor em um artigo pronto, frente a uma “ma³dica” contribuição. Sobre isso, também háum texto na revista Questãode Ciência[VII].

Novamente, a minha história de pesquisador, que sempre valorizou a publicação de artigos em peria³dicos de seletiva pola­tica editorial, etc., etc., (sempre obedecendo ao princa­pio atribua­do a Canãsar Lattes: “émuito bom publicar um artigo, desde que se tenha algo a dizer primeiro”), pede que vieses (no caso contra o produtivismo burro para atender a s manãtricas, ainda que muitos dos seus praticantes acreditem que tudo isso épelo bem da ciaªncia) sejam considerados com cuidado. Assim, nada melhor do que um estudo quantitativo cuidadoso para guiar um pouco a discussão. Um extenso levantamento bibliogra¡fico de artigos e citações de várias décadas e uma acurada análise, realizados por Johan Chu e James Evans[VIII], publicado em outubro de 2021, sugere uma crescente desigualdade nas citações de artigos: cada vez mais são sempre os mesmos citados ao passo que possa­veis contribuições importantes passam despercebidas no “diluvio de artigos” (o corola¡rio éque cresce diluvianamente o número de artigos sem releva¢ncia, cumpridores de metas e que também não são citados). Apresento pequenos excertos do texto sobre o cena¡rio delineado (os aspectos metodola³gicos, dados e resultados podem ser apreciados no link logo acima):

“O dilaºvio de novos artigos pode privar revisores e leitores da abertura cognitiva necessa¡ria para reconhecer e entender novas ideias [...] A atual natureza do empreendimento cienta­fico, calcada na manãtrica de ‘mais émelhor’ pode retardar, ironicamente, o progresso nos campos cienta­ficos maiores”.

E atenção para uma das conclusaµes!

“Sistemas de promoção e reconhecimento que evitem medidas quantitativas e valorizem um número menor de contribuições, mais robustas e inovadoras, poderiam reduzir o dilaºvio de artigos competindo por atenção em seu campo”. Chegamos em 2021 a uma proposta já enunciada em 1986, caso alguém se lembre da citação no começo desse texto.

Se “publicar ou perecer” estãovirando um campo quantitativo de pesquisa, as reações a s maneiras automatizadas de avaliação comea§am a ser qualitativamente revistas mundo afora. Traªs cientometristas conhecidos e influentes escreveram uma carta, também publicada agora em 2021: “Um apelo por uma mudança radical na avaliação de pesquisa na Espanha”[IX]. O cena¡rio espanhol descrito émuito parecido com o brasileiro: o fetiche em relação ao uso das manãtricas e suas consequaªncias negativas, enumerando movimentos iniciados na década passada, cujos princa­pios deveriam ser considerados nasmudanças radicais pedidas. E novos movimentos emudanças, ainda que não tão radicais, são implementadas. Enumero apenas três delas. A iniciativa émais antiga, mas segue: éo movimento pela “des-execelaªncia”, iniciado por um grupo de pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas[X]. O site todo éem francaªs, mas o slogan éautoexplicativo, ainda que misturando francaªs e inglês: “esquea§a seu fator de impacto (que éuma dessas manãtricas, a mais fajuta delas, na verdade, ainda que amplamente utilizada), aqui temos a des-excelaªncia”.

De novo aquele muro entre um possí­vel ressentimento(?) e um diagnóstico preciso? Pois a carta do movimento éum diagnóstico acurado. E, como anunciei,mudanças acontecem. Em meados de 2021, saiu o anaºncio de que a Universidade de Utrecht na Holanda deixara¡ de lado, pelo menos parcialmente, as manãtricas[XI]. O autor do projeto da mudança de avaliação declarou para a revista Nature: “fatores de impacto - bem como manãtricas relacionadas, como o a­ndice H - contribuem para a ‘produtificação’ da ciaªncia, que valoriza volume em vez de boa pesquisa [...] Isso se tornou um modelo muito doentio, que vai além do que érealmente relevante na ciaªncia”.

Nas últimas semanas, uma pequena nota no jornal francaªs, Le Monde[XII], trouxe comenta¡rios sobre estasmudanças em váriospaíses, inclusive na Frana§a, com avaliações se distanciando das manãtricas: ‘se não éuma revolução, éuma mudança cultural, de paradigma’. Por que a mudança? Segundo comenta¡rio de Chanãrifa Boukacem, professora da Universidade Claude Bernard-I em Lyon, “passamos a pensar em ‘publicação’ e não mais em ‘pesquisa’. Nãotentamos mais produzir conhecimento, mas nos perguntamos que tipo de artigo seria interessante fazer”. Fica no ar a pergunta: interessante para que ou para quem? Resposta possí­vel: um fim em si mesmo.

a‰ hora de discutirmos mais detidamente intramuros acadaªmicos o que estamos fazendo por aqui, com os medos, ilusaµes e dela­rios. As ideias e ações surgem em vários lugares! Precisamos de novas cenouras e novos rumos.


Peter Schulz
Professor do Instituto de Fa­sica "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente éprofessor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em peria³dicos especializados em Fa­sica e Cienciometria, dedica-se a  divulgação cienta­fica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia osinovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Ta£o longe, tão perto osas telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira osFAAP, Sa£o Paulo (2010).

As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

 

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