Opinião

Elza Soares: o canto negro que tem a cara do Brasil
Para se compreender melhor a profunda dimensão do canto da Elza Soares parece-nos ser preciso discernimento da corporalidade africana. Onde a arte se estabelece como expressão, objetiva e subjetiva, no corpo do negro
Por Eunice Aparecida de Jesus Prudente e Celso Luiz Prudente - 02/02/2022


Mariano Pekin/ CLaUDIO

Para se compreender melhor a profunda dimensão do canto da Elza Soares parece-nos ser preciso discernimento da corporalidade africana. Onde a arte se estabelece como expressão, objetiva e subjetiva, no corpo do negro. Na cultura bantu, a música e a dança tem o mesmo sentido, formando uma ama¡lgama indissocia¡vel. Para os povos ega­pcio-bantu, que constituem a primeira civilização da história da humanidade, não era possí­vel chegar a  eternidade da subjetividade espiritual sem a objetividade corporal. Raza£o pela qual o maior castigo, na cultura ega­pcio-bantu, era jogar o corpo de um indiva­duo aos crocodilos, que lhe comiam atéos ossos, impossibilitando-o de alcana§ar o decantado lugar do tempo eterno.

Quando a amiga Elza cantou e singularmente interpretou “a carne negra éa mais barata…”, todos sentimos calafrios, principalmente as mulheres negras. Sim, nossos corpos são considerados, apenas em algumas funções seculares, para conceber bens de produção, ontem seres escravizados, na atualidade jovens assassinados nos bairros e nas vilas distantes, que não são saneados. E, sabemos, não são os pesquisadores acadaªmicos menos avisados que choram por nose sim alguns artistas, aqueles como Elza conscientes de sua função de informar, de sensibilizar.

Aprendemos muito com Elza!

Nesse significativonívelde circularidade sagrada da cosmovisão africana primogaªnita, éque nos vem a percepção da imperecibilidade da arte de Elza Soares. Considerando que seu canto éexpressão do corpo na mesma medida em que corpo émanifestação do seu canto. Essa diva negra canta com a alma, fazendo um vocal gutural, na garganta que écomponente fa­sico, em que distorce a voz, tornando-a multifacetada, como prova¡vel instrumento da dina¢mica do corpo, e com uma possí­vel ternura da alma, intensificando assim a polissemia existencial da multiplicidade negra.

A negritude musical dessa cantora dava-se em uma afirmação da imagem positiva da africanidade, que lhe fazia ainda mais ampla na hola­stica da contemporaneidade inclusiva de forma disruptiva com as ações preconceituosas do anacronismo excludente da euro-heteronormatividade, com a qual lutou como na sua interpretação da música Mulher do fim do mundo: “Eu quero cantar / Atéo fim, me deixem cantar atéo fim / Atéo fim, eu vou cantar / Eu vou cantar atéo fim” (2015).

Com um canto pra³prio da educação das relações anãtnico-raciais do negro com nuances de gestualidade brechtiana, essa artista chega ao paroxismo da sua performance musical como se viu no comenta¡rio do programa Quilombo Academia: a educação pela diversidade, que foi ao ar em 6 de janeiro de 2022, na Ra¡dio USP:

A música Mulher do fim do mundo tem a textura do samba como fio condutor. O arranjo introduz a sonoridade dos instrumentos de cordas, friccionadas, gerando suspense, que éampliado na inserção do cavaquinho, no qual são tocados sucessivos arpejos. Com secção ra­tmica na batida do samba, o arranjo chega ao paroxismo da originalidade. Elza Soares aponta o canto como luta de resistência, indicando que seu feminismo negro chegara¡ atéo fim desse mundo. Com a possí­vel dialanãtica do calor na alegria negra da carnavalização bakhtiniana, superando assim com canto negro a ganãlida dor da opressão do colonialismo euro-caucasiano.


Na originalidade da força querigma¡tica do orixa¡, ela denunciou que “a carne mais barata do mercado écarne negra…”, imbua­da de uma ogumidade enfrentou a postura vertical da hegemonia imaganãtica do euro-hanãtero-macho-autorita¡rio, tornando-se intanãrprete das minorias vulnera¡veis, tais como o negro, o a­ndio, a mulher, o empobrecido, o homoafetivo, LGBTI+ e outros grupos que reclamam a tentativa reducionista do patriarcalismo euro-caucasiano.

a‰ ilustrativo lembrar que nos saberes das circularidades sagradas da cosmovisão negra primal encontra-se o mais antigo testemunho de respeito a biodiversidade, sendo oportuno destacar que para os ioruba¡s todas as manifestações bioexistaªncias são manifestações da orixalidade. Essa lógica concorre para a desarticulação das tentativas dos comportamentos preconceituosos. Temos a percepção que muitas pessoas, estranhas aos nomos das supostas convencionalidades eurocidentais, que buscam cultivar prática s religiosas, acabam encontrando acolhimento nas religiaµes de matriz africana, notadamente, no candomblanã. Tendo em vista que todos os comportamentos são reflexos dos orixa¡s. Elza tinha esses conhecimentos, acolhia e aconselhava todos, questões de fama­lia, quem não as tem? Ha¡ direitos, pois a amiga os discutia. Questaµes políticas que exigem informações e espa­rito cra­tico, além de detaª-los, discutia inclusive com pola­ticos que dela se aproximavam. Afinal, quem émalandro entre nós? Afinal, os jovens negros encarcerados são maus? E nosolhando as celas, somos os bons? Na verdade, todas as vezes que ouvimos Elza saa­mos pensativos.

A Elza Soares localizou-se nessa visão, que lhe fez intanãrprete nas lutas das minorias vulnera¡veis na sua arte de causa, engajada, cantando com alegria e coragem, demonstrando que “A felicidade do negro éuma felicidade guerreira!”. Sua essaªncia musical negra foi referaªncia na luta de resistência cultural da escola de samba, que foi um lugar de composição caracterizada pela originalidade do sincopado da afrodescendaªncia que foi negada, formando o lumpemproletariado miscigaªnico carioca como escrevem Prudente e Costa, no artigo Escolas de samba: comunicação e pedagogia a resistência do quilombismo:

Entre os bambas, havia também os valentes, que faziam do gingado da capoeira sua defesa pessoal, impondo inequa­voco respeito nesse meio de empobrecidos marginalizados. Esses grupos batucavam, demonstrando uma capacidade ra­tmica especial, com batida de padrãosincopado e sugestiva de padrãodissonante para composição de versos tirados no ritmo do partido alto, o que lhes era bastante pra³prio e ocupava lugar de destaque no cotidiano desses desocupados. Esses compositores foram também verdadeiros cronistas desse segmento anãtnico-racial marginalizado.


Esse comportamento da Elza Soares permitiu-lhe confortavelmente dialogar com outras tendaªncias musicais e arta­sticas, como sambalana§o, rock, jazz, música eletra´nica, pintura, cinema e outros. A construção desse liame foi feita com originalidade, considerando-se que essas tintas musicais são também criações diaspa³ricas, dos negros nas Amanãricas. Observamos que a interpretação da Elza permeia outras culturas em um processo dina¢mico da realidade no cotidiano. Isso mostra a complexidade da sua contemporaneidade musical que lhe fez sempre atual. Contemporaneidade observada na preocupação reflexiva de Michel Foucault, no livro Estanãtica: literatura e pintura, música e cinema:

Frequentemente se diz que a música contemporânea“derivou”: (…) Ora, o que me parece surpreendente, pelo contra¡rio, éa multiplicidade dos laa§os e das relações entre a música e o conjunto dos outros elementos da cultura. Isso aparece de várias maneiras. Por um lado, a música foi muito maissensívela s transformações tecnologiicas, muito mais estreitamente ligada a elas do que a maioria de outras artes (exceto sem daºvida o cinema).


Essa abordagem aponta para uma Elza Soares que com seu lugar de fala fez uma guerrilha de canto poanãtico, cuja sua inspiração na lição marxista de artista militante interpretou o ensinamento de Marx que a burguesia “cria para si um mundo a  sua própria imagem.” Elza tinha a consciência que a apropriação de artes e ideias ésem daºvida a questãopola­tica maissensívele muitas vezes dialogamos nestes cenários. De tal sorte, que o negro era tratado nos séculos da escravização como semovente, éagora a cor em relações miscigaªnicas na pintura musical, da inquietude de Elza Soares, cuja irreveraªncia uta³pica sugere uma sociedade com a cara de todos os brasileiros. Note-se que sem usar termos dos pensadores: colonialidade, epistemica­dio, Elza artista brasileira, amante da negritude, discutia formas para o enfrentamento e a libertação. Raza£o pela qual Elza Soares vivera¡ eternamente no onirismo uta³pico da luta por um Brasil verdadeiramente democra¡tico.


Eunice Aparecida de Jesus Prudente
Professora da Faculdade de Direito da USP

Celso Luiz Prudente
Professor da Universidade Federal do Mato Grosso


As opiniaµes expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não refletindo necessariamente a posição institucional do maisconhecer.com

 

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