Pesquisadores brasileiros descobrem nova doena§a; sintomas são parecidos aos da leishmaniose, mas mais graves
Resistente ao tratamento, já são ao menos 150 casos da doena§a, com duas mortes. O causador éum parasita ainda sem nome, totalmente diferente da leishma¢nia

Microscopia mostra o novo parasita. Ele ésemelhante ao gaªnero Leishmania, mas tem flagelo mais curto, com estrutura não tão alongada osFoto: Alynne Karen Mendona§a de Santana, pesquisadora da FMRP e coautora do artigo
Pesquisadores brasileiros descobriram uma doença cujos sintomas são semelhantes aos da leishmaniose, poranãm mais graves, e resistentes ao tratamento. Todos os 150 casos são de Aracaju (SE), com duas mortes. Ana¡lises gena´micas apontam que o responsável éum parasita de uma nova espanãcie, ainda sem nome, não pertencente ao gaªnero Leishmania, que éo protozoa¡rio causador da leishmaniose e transmitido por mosquitos flebotomaneos (mosquito-palha). Ainda não se sabe nada sobre o ciclo de vida ou vetor do novo parasita, embora haja probabilidade de que também seja transmitido por algum inseto. O que já se sabe éque ele se assemelha osmas não éigual osa Crithidia fasciculata, que infecta apenas insetos. A nova espanãcie, poranãm, écapaz de infectar humanos e camundongos, como mostraram testes em laboratório.

O professor Joa£o Santana, coordenador do Laborata³rio de Imunoparasitologia da FMRP e pesquisador principal do Cepid CRID
A descoberta éparte de uma história que começou hávários anos, em outro trabalho que investigava pacientes diagnosticados com leishmaniose no hospital da Universidade Federal de Sergipe (UFS), para tentar entender a resistência genanãtica a doena§a. Amostras de pacientes eram enviadas para análise na Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto (FMRP) da USP pelo professor Joa£o Santana Silva e sua equipe. Algumas delas não puderam ser analisadas com as ferramentas disponíveis para leishma¢nia, desafiando os pesquisadores a aprofundarem as investigações. “Cheguei a pensar que pudesse ter sido cometido algum erro aqui no laboratório, alguma mistura, ou que estivanãssemos trabalhando com primers [iniciadores de DNA, um dos recursos usados para fazer sua amplificação] de ma¡ qualidade, mas conferimos e refizemos tudo, e não era o caso. Mandamos para outro laboratório especializado no Rio de Janeiro, que também não conseguiu fechar o diagnósticoâ€, ressaltou.
Ao mesmo tempo, acostumado a lidar com a leishmaniose, com mais de 11 mil pacientes diagnosticados desde 1984, o médico Roque Pacheco de Almeida atendia alguns pacientes que considerava atapicos. Em outubro de 2010, ele recebeu um caso suspeito de leishmaniose visceral, forma mais severa da doena§a. O homem de 64 anos deu entrada no Hospital Universita¡rio da UFS já em estado grave, o que éincomum. Além disso, os sintomas eram da doença (perda de peso, febre, anemia e aumento do fígado e baa§o), mas ele não respondeu aos tratamentos convencionais, tendo tido quatro recidivas que resultaram em reinternações. “Na última delas, ele também passou a apresentar lesões cuta¢neas que são tipicas de outra forma da doena§a, a leishmaniose tegumentarâ€, lembra Almeida. O paciente acabou morrendo em 2011, em decorraªncia da doença e de complicações de uma cirurgia para retirada do baa§o. “Em mais de 30 anos trabalhando com leishmaniose, eu nunca havia visto nenhum caso parecidoâ€, conta o professor da UFS.
Quando finalmente foi feito sequenciamento do genoma do parasita dessa e de outras amostras, além de análises de bioinforma¡tica, tudo indicava que os pesquisadores estavam lidando com um novo parasita. De la¡ para ca¡ foram 150 casos ostodos confirmados pelos cientistas ose duas mortes.
As primeiras análises acabam de ser relatadas em artigo na revista cientafica Emerging Infectious Diseases. Quando o trabalho foi submetido para publicação, hácerca de um ano, ainda não havia certeza se seria uma nova espanãcie osapenas que não era leishma¢nia, explica Sandra Maruyama, primeira autora do artigo e atualmente pesquisadora da Universidade Federal de Sa£o Carlos (UFSCar). Com a continuidade da pesquisa, poranãm, os cientistas tem mais segurança em dizer que se trata de um parasita nunca antes identificado osapesar de ainda restarem muitas perguntas por responder.
“Os dados que estãono artigo abriram uma sanãrie de questões que, concomitantemente a submissão, fomos estudando. Hoje temos resultados, ainda não publicados, que nos fazem acreditar que seja sim um novo parasita, de uma nova espanãcie, e que seja sim uma nova doena§a, facilmente confundida com a leishmanioseâ€, disse Sandra Maruyama.
De acordo com Roque Almeida, da USF, um novo parasita explicaria o porquaª do aumento da letalidade de supostos casos de leishmaniose visceral no Brasil. E épreocupante, pois pode significar “que estamos diagnosticando casos de leishmaniose visceral, e cuidando dos pacientes com os tratamentos para leishmaniose visceral, quando, na verdade, se trata de uma nova doena§a, mais grave, e para a qual ainda não existe tratamento especafico.â€
Os cientistas esperam descrever a nova espanãcie e nomear a nova doença nos pra³ximos meses. Mais estudos precisam ser feitos para determinar o ciclo de vida do parasita, seus hospedeiros e formas de transmissão. Tudo isso para investir tanto no controle da infecção quanto em tratamentos efetivos para ela.
Gena´mica: a ciência por trás da descoberta
Para chegar a esses resultados, os cientistas primeiro sequenciaram e depois compararam o genoma do parasita das amostras dos pacientes de Sergipe com o genoma que se tem de referaªncia para espanãcies de leishma¢nia e de tripanossomatadeos. “Quando tentamos identificar o parasita pelos manãtodos tradicionais, comparando-o a s espanãcies conhecidas, vimos que ele não se parecia com nenhuma delasâ€, diz Joa£o Santana, que também integra a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Centro de Pesquisa em Doena§as Inflamata³rias (CRID), um Cepid-Fapesp.
“Ao sequenciar o genoma do novo parasita, soubemos que, de fato, não era leishma¢nia. Comea§amos a desconfiar que se tratava de uma espanãcie ainda não descrita pela ciência Ele se revelou semelhante, mas não igual, a um outro parasita chamado Crithidia fasciculata“, explica Sandra Maruyama.
Os gêneros Crithidia e Leishmania pertencem a mesma famalia, da qual também faz parte o Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Atéo momento, acredita-se que a Crithidia fasciculata infecte são insetos, não mamaferos. Já a nova espanãcie investigada por Sandra Maruyama e colegas pode infectar camundongos, além de humanos oscomo eles comprovaram ao cultivar em laboratório parasitas coletados nos tecidos daquele primeiro paciente. “Expusemos os camundongos aos parasitas isolados do paciente, tanto por via intravenosa quanto cuta¢nea [na pele], e descobrimos que ambos infectavam o fígado dos animaisâ€, conta ela. Os parasitas coletados da pele do paciente também causaram lesões na pele dos camundongos.
Apa³s ter o genoma da nova espanãcie já sequenciado, foi feita outra análise de bioinforma¡tica. Assim foi possível fazer o diagnóstico molecular da infecção dos pacientes por esse parasita. “Isso não seria possível com as ferramentas que existem para diagnóstico molecular de leishma¢nia. Então tivemos necessidade de desenvolver a metodologia para o novo parasita. Nãocriamos nenhuma técnica nova, mas elaboramos um procedimento novoâ€, disse.
“Em posse dos dados gena´micos do novo parasita, que são os que estãono artigo publicado, foram feitos mais testes com PCR (Reação em Cadeia da Polimerase, da sigla em inglês)â€. A PCR éuma reação enzima¡tica muito aplicada em biologia molecular para amplificar em laboratório fragmentos de DNA. Basicamente, éusada para fazer várias ca³pias do pedaço de DNA que se estãointeressado em estudar. Primers, ou iniciadores, são usados dentro da reação enzima¡tica para dar especificidade a uma regia£o gena´mica. “Realizamos uma análise bioinforma¡tica (simulação computacional). Elegemos alguns trechos candidatos que pudessem ser específicos deste novo parasita, desenhamos alguns primers osmarcadores moleculares ospara regiaµes gena´micas que fossem próprias deste parasita, e que não aparecessem no genoma de leishma¢nias, e testamos por PCR.â€
“Tambanãm fizemos triagens com a PCR, usando os primers específicos que desenhamos, em uma gama de outras amostras clanicas que o professor Roque compartilhou conosco. Extraamos o DNA dos isolados clínicos e este DNA serviu como um molde para fazer a reação de PCR com essas regiaµes especaficas da nova espanãcieâ€, detalhou a pesquisadora. “Daa conseguimos dizer qual parasita estava naquela amostra coletada do paciente. a‰ o que chamamos de tipagem molecular, isto anã, identificar uma espanãcie por manãtodos molecularesâ€.
A cientista, que tem apoio da Fapesp para realizar sua pesquisa, planeja em breve realizar a descrição da nova espanãcie, para poder finalmente nomear a doena§a.
Pra³ximos passos
A Crithidia, espanãcie com que o parasita estudado mais se assemelha, infecta insetos, principalmente culicadeos (como o culex, o pernilongo domanãstico) e anofelinos (como o anopheles, o mosquito-prego), que se alimentam de sangue. “Mas quando estes insetos picam o homem ou qualquer mamafero, a Crithidia não consegue sobreviver, pelo que atéhoje se mostrou. Então a grande daºvida que o trabalho gera anã: quem seráque éo vetor desse novo parasita?â€, diz Sandra Maruyama. Afinal, a leishma¢nia tem como vetor uma outra familia de insetos, que são os flebotomaneos (como o mosquito-palha), muito diferentes dos insetos que a Crithidia parasita. “O primeiro indacio que este parasita consegue sobreviver no homem éque conseguimos isola¡-lo de pacientes, e o segundo éque ele infecta camundongos, como mostramos experimentalmente, nos órgãos osbaa§o e fagado-, e na pele, como aconteceu com os pacientes osapesar dos sintomas em camundongos não se manifestarem como em humanos.â€
Perguntada se épossível que ele estivesse circulando entre outros animais e aquele tenha sido o primeiro caso detectado de infecção humana, a pesquisadora diz que sim. “Na³s temos que investigar isso agora, fazer parcerias com grupos que tenham amostras de reservata³rios silvestres, como algumas espanãcies de ca£es silvestres e de raposas. Temos esse manãtodo de diagnóstico molecular para identificar o novo parasita, diferenciando de leishma¢nia. O que precisamos agora écoletar amostras, ou trabalhar com grupos que tenham já estas amostras de sangue, como existem vários no Brasil†diz, ressaltando que énecessa¡rio fazer um rastreamento e comea§ar a investigar atéonde se estende a presença deste parasita. “A princapio detectamos o parasita nestas amostras de Sergipe, mas não sabemos o quanto isso estãodistribuado. E, ao mesmo tempo, temos que fazer parcerias com grupos que estudem insetos vetores de doena§as, principalmente da leishma¢nia, e estes insetos hemata³fagos que a Crithidia parasita, já que ele étão parecido com ela.â€
Outra maneira de fazer isso, acrescenta, éexperimentalmente, que éum dos planos do seu grupo para o ano que vem: “testar se os insetos de laboratório podem ser infectados por este parasita e tem a capacidade transmiti-lo, ao se alimentar de seu sangue, para um hospedeiro vertebrado, e este mamafero desenvolver a doena§aâ€. Trata-se de algo bem complexo, mas para o que existem técnicas experimentais. Além disso, énecessa¡rio que o procedimento seja feito em laboratórios com certificações especaficas de biossegurança. “Na³s não temos, então precisamos de colaboração com centros que já estejam autorizados, como um departamento do NIH [National Institutes of Health, nos EUA] , para onde pretendemos enviar uma pesquisadora no ano que vemâ€, planeja a cientista.
“Quanto aos pacientes, temos testado estas dezenas de amostras que recebemos em Sergipe, mas o ideal seria analisar muito mais casos que sejam inconclusivos. Precisamos de números para descartar totalmente que se trate de coinfecções (infecções por mais de um parasita ao mesmo tempo), e também receber amostras de várias outras regiaµes, atépara não ter vianãs nas análisesâ€, explica, deixando claro o rigor cientafico com que deve ser tratada uma nova descoberta. “Por ora, além de refinar a análise gena´mica desta espanãcie, estamos tentando infectar in vitro das células destas amostras positivas, o que serámais uma prova que o parasita realmente tem uma fase de vida no hospedeiro vertebrado e que pode vir a causar uma doença no homem.â€