Saúde

Entenda fatores por trás do surto de febre oropouche no Brasil
Ressurgimento da doença no último ano configurou a maior epidemia da história do País; fatores climáticos e socioambientais são influências relevantes
Por Gabriela Nangino - 21/08/2025


Pesquisadores ressaltam que novas cepas do vírus se expandiram para áreas onde a população não era imune – Foto: Wikimedia Commons


A febre oropouche (ORO) é uma doença emergente, cuja incidência no Brasil aumentou drasticamente nos últimos anos: em 2020 e 2021 foram 108 casos confirmados sorologicamente, a maioria na região amazônica; em 2024, esse número chegou a 10.940  – espalhados por vários Estados do País e incluindo duas mortes. O arbovírus é transmitido principalmente pelo inseto Culicoides paraensis, também conhecido como maruim. 

Um estudo conduzido por pesquisadores da USP e Instituto Butantan investigou os fatores que impulsionaram a expansão desta doença zoonótica (que pode ser transmitida entre animais e humanos). Os resultados revelaram que maiores temperaturas e quantidade de chuvas, juntamente com mudanças na cobertura e uso da terra e alterações no genoma do vírus foram elementos-chave para a sua distribuição. 

Camila Lorenz, primeira autora do artigo, é bióloga e pesquisadora pelo Instituto Butantan. Em parceria com Maria Anice Sallum e Francisco Chiaravalloti, professores no Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, o grupo conduziu técnicas de modelagem e análise espacial para identificar áreas de alto ou baixo risco de infecção. A Região Norte permanece com a maior concentração de clusters (agrupamentos de casos), seguida do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro. 

Segundo Camila Lorenz, a coleta de dados é essencial para compreender as condições ambientais e as especificidades regionais que favorecem a proliferação da doença - Gráfico retirado do artigo

Diferentemente de mosquitos como o Aedes aegypti, que se desenvolve em pontos de acúmulo de água em áreas urbanas, o C. paraensis também é um inseto que se alimenta de sangue, mas se reproduz na matéria orgânica. Devido a essa peculiaridade, ele circula preferencialmente em áreas de plantações de cacau e banana – as larvas se reproduzem em folhas acumuladas, por exemplo. “Quando [os maruins] se proliferam é porque aquele ambiente é muito adequado, então a população aumenta rapidamente e se torna uma praga”, comenta Maria Anice Sallum. 

Pesquisas anteriores já indicavam que o oropouche passou por alterações genéticas nos últimos anos. “A mudança no genoma do vírus pode propiciar que outros insetos, que não eram vetores, passem a ser. Isso, sem dúvida, pode aumentar sua disseminação e capacidade de dispersão”, frisa a professora. A principal hipótese é que mosquitos como o Culex quinquefasciatus (muriçoca) estejam envolvidos na transmissão, especialmente no ciclo urbano, mas faltam investigações mais robustas. 

A explosão de casos em 2024, mesmo entre os amazônicos, também indica que surgiram cepas recombinantes da doença. “Essa população já tem vários anos de contato com o vírus, pois a área é historicamente endêmica. Eles deveriam estar mais protegidos, mas isso não aconteceu”, afirma Francisco Chiaravalloti. A resposta dos anticorpos diminui significativamente contra variantes, e por isso populações imunes se tornam suscetíveis à reinfecção. 

Comparando fatores

A partir de informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do WorldClim – Global Climate Data e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os cientistas elaboraram um cartograma das áreas onde a doença se retraiu, permaneceu estável ou se expandiu. 


Estatísticas retrospectivas de varredura espacial ajudaram a identificar regiões com taxas de incidência maiores do que o esperado - Gráfico adaptado do artigo

Após a coleta de dados foi possível explorar associações entre os locais com maior índice de registro e diversas variáveis, como amplitude térmica, temperatura média anual, estabilidade da temperatura, precipitação e mudanças no uso da terra. “Temperaturas médias e precipitação foram os fatores com relação mais expressiva com os casos”, relata Camila Lorenz, pesquisadora pelo Instituto Butantan.

A incubação do vírus é influenciada pela isotermalidade, ou seja, a estabilidade da temperatura ao longo do tempo. “O período de incubação extrínseca [desenvolvimento do vírus no organismo do vetor] é o tempo que o inseto leva para picar uma pessoa, se infectar, e aquele vírus chegar até sua glândula salivar”, explica. O patógeno tem preferência por temperaturas mais quentes: no verão, ele se desenvolve em menos tempo, e o inseto se torna um transmissor mais rapidamente. As mudanças climáticas e ondas de calor preocupam a pesquisadora, “pois se aumenta a sequência de dias constantemente quentes a replicação do vírus no organismo do vetor é ininterrupta”.

Além disso, entre 2020 e 2023, dados demonstraram a expansão de pastagens e plantações de soja em regiões consideradas de alto risco. “Em uma floresta densa, com uma comunidade diversa de insetos, não ocorreria a mesma explosão populacional que ocorre numa plantação monoespecífica”, realça a cientista. O controle do vetor também é dificultado, pois o uso de inseticidas em larga escala em plantações traz riscos para a saúde dos trabalhadores e consumidores do produto. 

Segundo a pesquisadora, as mudanças climáticas, o desmatamento e as mudanças no uso da terra estão interligados, porque expandem a distribuição do vetor e facilitam o contato do vírus com outros vetores. A chegada do vírus no litoral brasileiro – região muito mais densamente povoada do que a Amazônia – aumentou drasticamente o número de casos.

Vulnerabilidade socioeconômica

A análise revelou que os municípios em clusters de alto risco são frequentemente caracterizados por maiores taxas de pobreza e acesso limitado à assistência médica e saneamento básico. “Áreas de alto risco têm um PIB menor, são mais vulneráveis e têm menos unidades de atenção à saúde”, explica Maria Anice Sallum. Na Região Amazônica, 60% das pessoas só têm acesso a uma UBS a mais de 10 km das suas residências. “Algumas populações ribeirinhas não têm acesso nenhum ou precisam de barcos, então, quando apresentam sintomas, não têm como fazer teste”, acrescenta.

A lacuna na testagem impede o registro dos casos, podendo causar uma subnotificação importante. Além disso, os habitantes têm dificuldade de receber o tratamento e acompanhamento médico necessários, tornando-se mais suscetíveis a quadros graves. 

Segundo Francisco Chiaravalloti, a questão socioeconômica também tem relação com a degradação ambiental. Áreas que sofrem com o desmatamento e a degradação da floresta são mais pobres e mais sujeitas à expansão urbana desordenada, sem a devida infraestrutura, o que pode intensificar a expansão dos hábitats do vetor. 

“Áreas de alto risco têm um PIB menor, são mais vulneráveis e têm menos unidades de atenção à saúde”, explica Maria Anice Sallum. Na Região Amazônica, 60% das pessoas só têm acesso a uma UBS a mais de 10 km das suas residências. “Algumas populações ribeirinhas não têm acesso nenhum ou precisam de barcos, então, quando apresentam sintomas, não têm como fazer teste”


Frente ao avanço das mudanças climáticas, o estudo serve como base para estabelecer políticas públicas adequadas a diferentes locais do País, a fim de prevenir o surgimento de novos focos do patógeno e retardar a evolução de futuras epidemias. “Conhecer as áreas de maior risco é fundamental para otimizar estratégias de controle do inseto”, afirma Camila Lorenz. “Essa integração da academia com a realidade é interessante porque a gente pode não só direcionar ações na saúde, mas exigir políticas públicas de melhoria nas condições de vida da população”, conclui.


Mais informações: e-mail franciscochiara@usp.br, com Francisco Chiaravalloti; e-mail masallum@usp.br, com Maria Anice Sallum, e e-mail camilalorenz@usp.br, com Camila Lorenz

 

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