Saúde

Técnica tem potencial para recuperar pulmão lesionado para uso em transplante
Experimentos em animais mostram que aplicação de proteína reduz os danos causados por problemas na circulação sanguínea, preservando a oxigenação e a saúde do pulmão
Por Júlio Bernardes - 23/08/2025


Pulmões de doadores não usados devido a lesões preexistentes representam 80% dos órgãos doados e são um obstáculo significativo para os pacientes que necessitam de um transplante – Foto: Skifosssssovsky – Wikipedia


Uma nova técnica de preparação de pulmões para transplante, testada por pesquisadores brasileiros e canadenses, pode aumentar significativamente o número de órgãos disponíveis para cirurgia, que hoje representam apenas 20% do total de doações devido a lesões preexistentes. O método faz a reparação de órgãos lesionados, lavados e preservados na temperatura de 10°C, por meio da aplicação de uma proteína, o peptídeo Angiotensina-(1-7).

Experimentos com animais mostraram que a técnica reduz os danos causados por falta de circulação sanguínea (isquemia) e aumento acentuado do fluxo de sangue (reperfusão), preservando a saúde do enxerto e melhorando a oxigenação do pulmão transplantado. As conclusões do trabalho estão em artigo publicado na revista científica Journal of Heart and Lung Transplantation.

De acordo com o autor do trabalho, Paolo Oliveira Melo, que pesquisou o tema em sua tese de doutorado na Faculdade de Medicina (FM) da USP, a inclusão de novas categorias para o transplante, inclusive de pacientes com falência pulmonar persistente associada à covid-19, favoreceu um crescimento vertiginoso das listas de espera. “Até março de 2025, por exemplo, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) registrou 348 pessoas com necessidade de receberem um pulmão”, relata ao Jornal da USP. “Apesar da alta demanda e na contramão do que acontece com outros órgãos, neste mesmo período foram realizados apenas 37 transplantes de pulmão no Brasil, em quatro Estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará.”

O baixo número de pulmões considerados viáveis para o processo de doação ainda representa uma barreira significativa para os pacientes que precisam de um transplante para salvar suas vidas”, ressalta o pesquisador. “Para superar essa carência de órgãos, são necessárias formas criativas de resgatar os 80% de pulmões de doadores não utilizados que são considerados marginais devido a lesões preexistentes.”

Oliveira Melo explica que durante a captação pulmonar para o transplante, a lavagem do órgão com uma solução de preservação a 4°C é uma etapa essencial para garantir sua viabilidade. “Ela remove o sangue residual, prevenindo a formação de microtrombos [entupimento dos vasos sanguíneos] e reduzindo a resposta inflamatória”, relata. “Também promove hipotermia protetora, diminuindo o metabolismo celular e preservando a integridade tecidual.”

“Além disso, a lavagem distribui uniformemente a solução de preservação, facilita a remoção de compostos tóxicos acumulados e permite uma melhor avaliação macroscópica do órgão”, acrescenta o pesquisador. “Esses cuidados são fundamentais para minimizar a lesão de isquemia-reperfusão e otimizar os desfechos do transplante.”

Para técnica ser usada em pacientes, será preciso realizar estudos em modelos animais de maior porte, mais próximos da fisiologia humana, permitindo avaliação mais precisa da eficácia e segurança na recuperação e qualidade dos órgãos doados - Foto: Eboelen - Wikipedia

Reparação

A pesquisa avaliou se a reparação pulmonar a 10°C, facilitada por agentes terapêuticos, também poderia ser possível durante a lavagem do pulmão, feita com uma solução eletrolítica extracelular para remover detritos, na captação do órgão. “Nesse contexto, nós optamos por enriquecer a solução de preservação com Angiotensina-(1-7), um peptídeo amplamente sugerido como agente de proteção do parênquima pulmonar”, diz Oliveira Melo, “durante o período em que os pulmões são armazenados em condição hipotérmica estática (10°C), antes do transplante”.

“Inicialmente desenvolvemos um modelo experimental de lesão pulmonar em ratos, para simular as condições de pulmões no momento da captação do órgão para o transplante”, descreve o pesquisador. “Em seguida, testamos as diferentes estratégias de preservação comentadas anteriormente.”

Os pesquisadores verificaram que os pulmões “lavados” com solução enriquecida com Angiotensina-(1-7) e condicionados à 10°C por 12 horas apresentaram função significativamente melhor após o transplante, em comparação com os pulmões que receberam apenas a solução de preservação padrão. “Esses achados indicam que o peptídeo pode potencializar os efeitos benéficos da preservação hipotérmica, promovendo uma recuperação mais eficiente do enxerto”, observa Oliveira Melo.

“Também identificamos menor expressão de marcadores inflamatórios e de dano oxidativo nos tecidos dos pulmões condicionados com a Angiotensina-(1-7), sugerindo uma ação protetora mesmo na presença de estresse celular”, salienta o pesquisador. “Finalmente, observamos alterações em genes relacionados à integridade e reparo mitocondrial, o que indica que essa abordagem pode ativar mecanismos de controle de qualidade celular importantes no contexto do transplante.”

Segundo Oliveira Melo, para a técnica ser aplicada clinicamente, ainda são necessários passos importantes. “Primeiro é fundamental realizar estudos em modelos animais de maior porte, que se aproximem mais da fisiologia humana e permitam uma avaliação mais precisa de sua segurança e eficácia”, diz. “Estudos futuros devem avaliar se essa abordagem pode potencializar ainda mais a recuperação e qualidade dos enxertos. Somente após esses testes pré-clínicos e a validação da eficácia em protocolos mais próximos da realidade clínica será possível considerar o uso da técnica em pacientes.”

O estudo foi conduzido por meio de uma colaboração internacional entre os grupos de pesquisa do professor Paulo Manuel Pêgo Fernandes, da FMUSP, e Marcelo Cypel da University Health Network (UHN), afiliada à Universidade de Toronto (Canadá). O trabalho teve como autor principal Paolo Oliveira Melo, como parte de seu doutorado pela FMUSP. Atualmente o pesquisador realiza seu pós-doutorado no grupo do professor Cypel em Toronto, dando continuidade às investigações na mesma linha de pesquisa.

 

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