Saúde

Novo modelo clínico propõe cinco etapas para a prevenção do suicídio
Com base na psicoterapia existencial e em pesquisas empíricas recentes, método foca em fazer o paciente redescobrir o sentido e o propósito
Por Jean Silva - 12/09/2025


Setembro Amarelo é uma campanha brasileira de prevenção ao suicídio, iniciada em 2015 – Foto: Freepik


Interessado, desde o início da pós-graduação, no tema-tabu do suicídio, o psicólogo Élison Santos propôs um novo modelo clínico de cinco etapas para a prevenção. Em seu doutorado em Psicologia Clínica, no Instituto de Psicologia (IP) da USP, Santos modelou uma estratégia integrada de princípios contemporâneos baseados em evidências, na psicoterapia existencial, logoterapia e pesquisas empíricas. Pela complexidade da ideação suicida, esses cinco passos foram elencados em detalhes em artigo publicado pela revista Journal Contemporary Psychotherapy.

Sem hierarquias entre as etapas, ele apresenta como primeiro passo a recepção diferenciada; em seguida, a conexão dos indivíduos com seus valores fundamentais e responsabilidades; depois, a expansão das perspectivas e possibilidades. Os últimos dois passos consistem em navegar por tensões existenciais, encorajando a ambivalência da vida, e auxiliar na redescoberta do propósito e agência.

Para o psicólogo, não há uma etapa mais importante que outra: “Precisa de muito cuidado para ajudar [um indivíduo em ideação suicida] de forma delicada e assertiva, para ele perceber que existe um sentido, ou ajudá-lo a encontrar um”, destaca.

“Apesar do sofrimento social e das forças que nos afetam negativamente, o ser humano é capaz de mudar sua atitude, mesmo diante de desafios” – Élison Santos


A busca humana por direção como uma força motivacional primária da psicologia existencial é o cerne dessa formulação. Conforme o autor, integrar conceitos e abordagens diferentes permite compreender não apenas as preocupações imediatas com a segurança, mas também o sofrimento existencial subjacente que contribui para os pensamentos suicidas. “O objetivo é propor um framework que possa ser utilizado por terapeutas de qualquer abordagem para lidar com a ideação suicida. Busca-se entender o fenômeno da ideação suicida e desenvolver um modelo para diferentes contextos”, afirma Santos.

Da conexão humana à redescoberta

Duas mãos de uma mesma pessoa em cima de uma mesa de madeira segurando uma outra mão de outra pessoa
Recepção diferenciada foca no acolhimento, validação e conexão humana como resposta a ideação suicida - Foto: Freepik

Na primeira etapa, de recepção diferenciada, o pesquisador ressalta a importância de fornecer conexão humana que reafirme a dignidade e o valor do paciente, devido ao profundo isolamento social, autopercepção como fardo e pertencimento frustrado – conforme alguns modelos teóricos do suicídio. A terapêutica é caracterizada pelo entendimento e validação para conter esses sentimentos, promovendo segurança, pertencimento e a sensação de ser verdadeiramente enxergado. “Esse é um passo comum para todas as terapias, a questão da acolhida”, indica o pesquisador.

Em seguida, entram os valores e responsabilidades. Para isso, o terapeuta precisa guiar a pessoa paciente a identificar ou se reconectar a valores pessoais, sentidos de vida e seu senso de responsabilidade. Conforme Santos, a ideação suicida pode ser entendida, em parte, como um desvio decorrente de uma desconexão com esse senso interno de propósito. “É abrir um pouco essa ideia. Por exemplo, ajudar a pessoa a perceber que ela se importa com as pessoas pode despertar o senso de responsabilidade”, continua. 

Então, no terceiro e no quarto passo, busca-se expandir perspectivas e possibilidades, e navegar por tensões existenciais encorajando a ambivalência da vida. Estes são passos posteriores, mas mantêm-se importantes. “Se a ideação suicida tem a ver com um beco sem saída, então eu preciso falar: ‘Olha, está vendo essa esquina, você entrou nesse beco sem saída, mas se der uns três passos atrás vai ver que existe um monte de outros caminhos aqui’ ”, explica sobre a expansão de horizontes do passo três. Já no passo quatro, ele ressalta a importância dessas pessoas “entenderem que a tensão que temos na vida faz parte dessa ambivalência comum a todos, e ajudar o paciente a se conectar com essas capacidades que temos de lidar com ela”.

“Se a ideação suicida tem a ver com um beco sem saída, então eu preciso falar: ‘Olha, tá vendo essa esquina, você entrou nesse beco sem saída, mas se der uns três passos atrás vai ver que tem um monte de outros caminhos aqui’” 


Por último, na etapa final, de redescoberta do propósito e agência, a proposta é orientar essas pessoas a reconhecerem sua dor, de sentimentos de derrota e aprisionamento, ou falta de conquistas percebidas, direcionando-as a observá-los como percepções distorcidas da realidade. Para isso, os terapeutas auxiliam o paciente a acessar forças internas e a relembrar valores e objetivos mantidos antes da crise. A implementação bem-sucedida exige que os psicólogos clínicos desenvolvam competências em trabalho existencial centrado no direcionamento, com sensibilidade à diversidade de sistemas de crenças que possam ser apresentados.

Homem pintando em um estúdio de arte. Ele usa fones de ouvido grandes, um boné preto, um lenço estampado no pescoço e um moletom bordô. O homem tem barba cheia e segura um pincel, aplicando tinta em uma folha ou tela apoiada sobre a mesa. Na mesa há vários materiais de pintura: potes de vidro com água colorida, pincéis, uma paleta com tintas aquarela e outros utensílios de arte. O ambiente ao fundo tem uma parede amarela com relevos decorativos e plantas.

Criatividade, vivência e atitude são fundamentais na vida para lidar com situações extremas - Foto: Freepik

Futuro da pesquisa

Essa modelagem preocupada mutuamente com a segurança e o sofrimento existencial precisa ainda ser consolidada por mais pesquisas. São necessários testes empíricos por meio de ensaios clínicos randomizados em larga escala para estabelecer sua eficácia e qualquer intervenção deve ser adaptada às necessidades individuais.  Ainda assim, as contribuições da teoria de Análise Existencial de Viktor Frankl e a logoterapia dessa, que destaca a “vontade de sentido” como a motivação fundamental,  permitiram ao estudo destacar a capacidade humana de superar situações extremas, mesmo diante de limitações sociais e sofrimento. 

Uma de suas frases poderosas, conforme Santos, é: “Como psiquiatra, neurologista e sobrevivente do campo de concentração, sei das limitações humanas e sociais, mas também sei da capacidade humana de superar as piores situações”. “Ele fala do extremo, no entanto, destaca os valores de criatividade, vivência e atitude como fundamentais na vida, mesmo em situações extremas”, explica o psicólogo. Frankl foi influenciado por Martin Heidegger, filósofo existencial que firma a ideia de que a consciência e a autotranscendência — capacidade de ir além de si próprio — são manifestações humanas em busca desse direcionamento motivacional. 

Nesse trabalho, o psicólogo integra também a fenomenologia desenvolvida por Edmund Husserl, pois o trabalho busca guiar os terapeutas no processo dos indivíduos rumo à compreensão da existência. A psicologia existencial destaca a importância do sentido na vida, enquanto a fenomenologia se preocupa em compreender como os fenômenos se manifestam na consciência humana. “Ambas as abordagens são úteis para entender o fenômeno do suicídio e descobrir maneiras de ajudar os pacientes a [re]encontrar seu propósito”, compartilha Andrés Antúnez, coautor do estudo e professor associado do IP. “Quando pessoas não encontram sentido, podem sofrer profundamente e até pensar em acabar com a própria vida”, continua. 

“Para uma consciência desses pensamentos de modo a aumentar a esperança que está completamente desaparecida,  fazer terapia pode fazer com que ela seja [re]despertada ou renovada” – Andrés Antúnez


Em meio a um cenário global de extremismos, desigualdades e ansiedade climática, sentimentos que assolam os jovens com medo das mudanças climáticas, o suicídio ganha outras faces como sintoma dos problemas da sociedade. Ainda assim, apesar de o professor reconhecer que as psicoterapias podem não ter um alcance social massivo, elas podem ser capazes de “ajudar uma pessoa, o que pode curar simbolicamente a sociedade”, afirma. “Às vezes, basta alguém mostrar interesse e preocupação para mudar o destino de uma pessoa. A área da saúde mental é complexa, e a combinação de estudos humanizadores e evidências científicas [na psicologia] pode ser produtiva”, conclui o professor.

 

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