Sucesso em prova de conceito de vacina de DNA que estimula células T contra a covid
Realizado entre USP, Institut Pasteur de São Paulo e ImunoTera, estudo mostra, em modelo experimental, que é possível induzir resposta de células T de forma planejada, com potencial para vacinas mais universais

Enquanto os anticorpos impedem a entrada de vírus nas células, as células T eliminam células já infectadas – Foto: Ricardo Botelho/Ministério da Saúde via Flickr
Um artigo publicado na revista científica Viruses apresenta resultados inéditos de uma vacina de DNA contra a covid-19, desenvolvida especificamente para induzir células T – componentes fundamentais do sistema imunológico responsáveis por identificar e eliminar células infectadas. O estudo foi realizado em uma parceria entre o Institut Pasteur de São Paulo (IPSP), o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e a empresa de biotecnologia ImunoTera. No IPSP, a pesquisa foi liderada por Rúbens Alves, imunologista e virologista que coordena o grupo de Vigilância Genômica e Inovação em Vacinas.
Segundo Alves, o diferencial do trabalho é a prova de conceito de uma vacina capaz de gerar respostas de células T de forma planejada. “Durante a pandemia, as vacinas contra a covid-19 induziram anticorpos e, por consequência, também células T – mas isso ocorreu como um efeito secundário. Nós mostramos que é possível desenhar uma vacina para gerar especificamente essa resposta, o que abre portas para enfrentar vírus de forma mais abrangente e até mesmo cânceres induzidos por vírus”, explica.
A ideia surgiu logo após a divulgação da primeira sequência do sars-cov-2. Inspirado na experiência adquirida durante seu estágio no La Jolla Institute for Immunology, nos Estados Unidos, Alves e colaboradores decidiram que, em vez de mirar apenas na “casca” do vírus (como a proteína spike), era estratégico mirar também no seu “motor”: regiões internas mais conservadas, que tendem a mudar menos com o tempo.
Essas regiões foram selecionadas com base nas moléculas de HLA (Antígeno Leucocitário Humano) mais comuns na população brasileira, aumentando as chances de a vacina “conversar” bem com o sistema imune local. O HLA é um complexo de genes que codifica proteínas da superfície celular responsáveis pela regulação do sistema imunológico.
Nos experimentos, os pesquisadores desenvolveram uma vacina de DNA que reuniu essas regiões internas conservadas do sars-cov-2 e as fundiram geneticamente à glicoproteína D (gD) do vírus herpes simples (HSV-1), usada como adjuvante para potencializar a ativação imunológica. Aplicado em camundongos por meio de eletroporação, o imunizante induziu células T altamente funcionais, capazes de produzir interferon-gama (IFN-?) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-?).
Quando desafiados com o vírus, os animais vacinados apresentaram menor perda de peso, melhor score clínico e carga viral reduzida em pulmões e cérebro, em comparação aos do grupo controle. O efeito observado garantiu proteção parcial de curto prazo, com 60% de sobrevivência em desafio tardio (cinco semanas após a imunização). Em testes adicionais, a retirada experimental das células T levou à perda desse efeito, confirmando que esse braço da resposta imune foi o principal responsável pela proteção registrada.
Impactos para futuras vacinas
Os achados reforçam a importância de se considerar a imunidade celular no desenvolvimento de vacinas de nova geração. Enquanto os anticorpos atuam como “guardas” que impedem a entrada de vírus nas células, as células T funcionam como um “órgão de fiscalização”, eliminando células já infectadas. Essa estratégia de direcionar vacinas para células T pode ter impacto em diversos cenários além da covid-19.
Em patógenos intracelulares, como certos vírus e bactérias que se replicam dentro das células, os anticorpos externos não conseguem atuar de forma eficaz – e é justamente nesse ponto que as células T são decisivas. No caso do câncer associado a vírus, como o HPV, a importância é ainda maior: como esses vírus permanecem no interior das células, cabe às células T reconhecer e eliminar células infectadas ou transformadas. Já em doenças como a dengue, os anticorpos podem se tornar um problema, pois, se não forem suficientemente específicos, acabam facilitando a replicação viral em vez de neutralizá-lo. Nesses casos, a indução de células T CD8 torna-se crucial para prevenir desequilíbrios imunológicos e oferecer proteção contra diferentes sorotipos. As células T CD8, também chamadas de linfócitos T citotóxicos, são essenciais para a defesa imunológica contra patógenos intracelulares, incluindo vírus e bactérias, e para a vigilância de tumores.
Colaboração científica
O projeto nasceu em 2020, no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas (LDV) do ICB, sob a coordenação do professor Luís Carlos Ferreira, onde Rúbens Alves teve a ideia inicial e conduziu os primeiros experimentos de prova de conceito. Em seguida, a ImunoTera, spin-off do LDV cuja CEO é Luana Raposo de Melo Moraes Aps – primeira autora do artigo – entrou como parceira estratégica: além de já estudar o adjuvante gD em vacinas contra câncer, assumiu parte dos experimentos em animais e dividiu com Alves o depósito do pedido de patente que protege a formulação.
Posteriormente, já no Institut Pasteur de São Paulo, Alves pôde contar com a infraestrutura de alta contenção (NB3), indispensável para os testes de desafio com o sars-cov-2. Essa trajetória reforça como a articulação entre diferentes instituições foi decisiva para consolidar os resultados e abrir caminho para vacinas mais universais, duráveis e adaptadas a diferentes populações – uma necessidade cada vez mais urgente frente à ameaça de novas epidemias e pandemias.
“Conseguimos mostrar que uma vacina desenhada para acionar células T e mirar partes do vírus que mudam pouco pode reduzir a doença em modelos animais, um caminho complementar às vacinas tradicionais e alinhado à realidade genética da população brasileira”, resume Alves.
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Sobre o IPSP
O Institut Pasteur de São Paulo (IPSP) é uma associação privada, sem fins lucrativos, fundada em 2023 pelo Institut Pasteur, fundação francesa de direito privado, e pela Universidade de São Paulo (USP). Sediado dentro da USP, na capital paulista, o IPSP desenvolve pesquisas de classe internacional em ciências biológicas sobre doenças transmissíveis, não transmissíveis, emergentes, reemergentes, negligenciadas ou progressivas, incluindo as que levam ao comprometimento do desenvolvimento ou degeneração do sistema neurológico. Seu objetivo é desenvolver métodos preventivos, de diagnóstico/prognóstico e terapêuticos em relação às doenças estudadas, promovendo a inovação, a transferência e a difusão do conhecimento em prol da saúde pública. O IPSP integra a Rede Pasteur composta de mais de 30 institutos de pesquisa presentes em 25 países.
Mais informações: luana.raposo@imunotera.com.br, com Luana Aps; lcsf@usp.br, com o professor Luís Carlos Ferreira; e ralves@pasteur-sp.org.br, com Rúbens Alves