Tecido adiposo branco, marrom e perivascular interagem de maneiras diferentes com o etanol; estudo pode ajudar a aumentar a eficácia do tratamento e na prevenção de doenças hepáticas

A obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de doenças hepáticas, o que torna o consumo do álcool uma questão emergente de saúde pública – Foto: Marcos Santos/USP Imagens
O consumo de álcool associado ao sobrepeso é uma importante questão de saúde pública, pois aumenta a predisposição à doença hepática alcoólica. Pesquisadores da USP em Ribeirão Preto publicaram um artigo de revisão a fim de compreender os mecanismos fisiopatológicos envolvidos nesse processo.
Os adipócitos são células especializadas em armazenar energia na forma de gordura, mas também exercem função endócrina – regulando o metabolismo energético e processos inflamatórios do corpo humano. Segundo Thales Dourado, pesquisador no Laboratório de Farmacologia Cardiovascular, o tecido adiposo e o fígado interagem constantemente.
“A partir de um balanço geral de dados, nós desenvolvemos uma linha de pesquisa que busca entender como o consumo de etanol influencia no tecido adiposo e como essa influência impacta o sistema cardiovascular”, explica.
Os pesquisadores observaram que o tecido adiposo marrom pode ter uma ação inicial “protetora” em relação aos efeitos nocivos do consumo de etanol. Isso se deve à capacidade da gordura marrom de queimar calorias e regular lipídios, o que contribui para a saúde metabólica e atenua os riscos associados à obesidade.
Estudos preliminares apontam que a modulação do tecido adiposo marrom pode ser uma estratégia para melhorar a saúde hepática. “Quando você entende os elementos que participam de uma condição de saúde, você consegue pensar em formas de bloquear esse processo e identificar potenciais alvos terapêuticos”, afirma Carlos Tirapelli, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP.
Tecido adiposo branco e marrom
A pesquisa investigou o comportamento de três tipos de tecido adiposo. O tecido adiposo branco é o tipo de gordura mais abundante no corpo humano e tem como funções principais o depósito de gordura para reserva energética e a secreção de adipocinas – proteínas de sinalização que modulam processos biológicos no pâncreas, no fígado e no sistema vascular. A depender de estímulos ambientais, o tecido adiposo branco pode adquirir um fenótipo pró-inflamatório: em quadros de obesidade, por exemplo, o tecido libera substâncias que prejudicam a atividade dos órgãos.
“Ele regula a função do fígado, e o fígado, por sua vez, é extremamente importante na esterificação de ácidos graxos e no metabolismo de lipídios”, exemplifica Thales Dourado. O consumo exacerbado de álcool diminui a lipólise (quebra das reservas de gordura para obter energia) e favorece a lipogênese (síntese e o armazenamento de gordura), processo que pode levar à esteatose hepática ou “fígado gorduroso”. Essa alteração pode causar o acúmulo de lipídios em outros tecidos e aumentar a resistência insulínica, um fator de risco para a diabetes tipo 2.
O tecido adiposo marrom, por outro lado, está localizado em regiões específicas do corpo, como atrás do pescoço. Sua principal função é produzir calor (termogênese) a partir da queima de gordura. Pesquisas com camundongos indicam que o etanol pode alterar a capacidade de termorregulação do corpo, pois ele reduz a expressão de genes fundamentais para a termogênese – e, por isso, o usuário se torna mais tolerante ao frio.
Ao longo das últimas décadas, cientistas tentaram manipular esse tecido para aumentar a eficiência da termogênese, o que aumentaria também a queima de gordura. “Ele possui diversas organelas que facilitam a degradação dos lipídios, diferente do branco, que possui apenas uma”, explica Dourado.
Os pesquisadores levantaram a hipótese de que, ao modular o tecido adiposo marrom, seria possível prevenir o desenvolvimento de uma doença hepática. “Alguns estudos mostram que ele tem um efeito protetor em relação aos efeitos nocivos do consumo de etanol”, afirma. “Se a gente conseguir regular a função do tecido adiposo marrom, protegeremos [o organismo] também de doenças cardiovasculares, que são especialmente perigosas em pacientes com sobrepeso.”
Tecido adiposo perivascular
O tecido adiposo perivascular (PVAT, do inglês Perivascular Adipose Tissue) circunda os vasos sanguíneos. Ele não possui adipócitos brancos nem marrons, mas pode apresentar características de ambos a depender da sua localização. Segundo o professor Tirapelli, o PVAT foi, por muitos anos, considerado apenas um tecido de proteção mecânica. “Até que, em 1991, um grupo de pesquisadores sugeriu que essa gordura talvez tivesse uma função biológica adicional: modular o tônus vascular”, conta.
O tecido adiposo perivascular apresenta características contraditórias. “Numa situação fisiológica normal, ele promove a síntese de fatores que ajudam a manter o vaso dilatado, o que é bom”, explica Carlos Tirapelli. Mas em situação de risco, como obesidade, ele perde suas propriedades originais e passa a secretar mais fatores de contração e pró-inflamatórios, podendo causar disfunção endotelial – danificar o fluxo sanguíneo e a coagulação – e alterações estruturais nas células. “O consumo de etanol é um fator de risco para hipertensão arterial, então é provável que esse vaso tenha uma capacidade de contratilidade maior”, ressalta o professor.

O produto da metabolização do etanol é o acetaldeído, molécula identificada pelo corpo humano como nociva. Por isso, quando há uma superexposição, o organismo produz espécies reativas, que causam alterações nas estruturas celulares - Foto: Wikimedia Commons
O álcool como questão de saúde pública
Após beber uma dose de bebida alcoólica, algumas pessoas se sentem relaxadas e percebem uma diminuição na sua pressão arterial. Já na literatura médica, constata-se que o etanol promove a hipertensão. Mas por que isso acontece?
A OMS estabelece que não há dose segura para o consumo de etanol. Entretanto, o consumo agudo e crônico possuem efeitos diferentes no corpo humano. Uma única dose pode induzir efeitos anticontráteis – pois aumenta a ação do neurotransmissor Gaba, que tem efeito calmante e reduz a atividade neural –, enquanto a exposição contínua tem o efeito contrário.
“Num consumo baixo, o etanol possui características que favorecem efeitos ansiolíticos. Mas, a longo prazo, ele dispara mecanismos secundários intracelulares que promovem danos teciduais, associados principalmente ao estresse oxidativo”
Thales Dourado
O maior problema, segundo os pesquisadores, é que o álcool é uma substância psicoativa, que induz a dependência física e psicológica. Não se trata apenas de beber com moderação: “Quanto maior a quantidade e a frequência de consumo de álcool, maior a chance de desenvolver complicações. E como o álcool gera ‘recompensa’, a tendência é consumir cada vez mais”, destaca Tirapelli.
Redução de danos e tratamento
A melhor resposta terapêutica para efeitos nocivos é cortar o consumo do álcool. Porém, pacientes que fazem uso crônico muitas vezes já apresentam danos duradouros no organismo. “É comum ouvir: ‘Se o etanol faz mal, é só parar de beber que o problema vai embora’. E muitas vezes não vai”, diz o professor.
O consumo também tem efeitos variáveis nas pessoas. No geral, populações asiáticas, por exemplo, têm uma alteração genética que prejudica a expressão das enzimas metabolizadoras do etanol. Por esse motivo, eles têm uma tolerância menor ao consumo de álcool em comparação a populações ocidentais. Mulheres também têm uma menor expressão dessa enzima quando comparada a homens. “Muita gente consome o álcool sem entender as consequências, então o nosso primeiro passo é esclarecer os riscos”, comenta Thales Dourado.
Pensando em possibilidades de tratamento, Carlos Tirapelli aponta que a losartana é um medicamento que dilata os vasos sanguíneos, permitindo uma melhor circulação do sangue. “Nós identificamos que quando tratamos os animais com losartana, prevenimos a disfunção do tecido adiposo perivascular causada pelo etanol”, celebra. “Além de prevenir esses danos, a losartana também diminui a pressão arterial induzida pelo álcool.”
Terapias focadas na restauração das funções protetoras do tecido adiposo perivascular, na preservação da função endócrina do tecido adiposo branco e na manutenção da termogênese do tecido adiposo marrom são promissoras para reduzir os riscos induzidos pelo etanol. Encontrar novos alvos moleculares pode melhorar a expectativa de vida de pacientes com doença hepática e prevenir repercussões cardiovasculares. “Cada organismo responde de maneira diferente, e se a gente entender como o etanol faz mal, podemos desenvolver intervenções específicas para cada indivíduo”, conclui Dourado.
Mais informações: crtirapelli@usp.br, com Carlos Tirapelli, e thalesmhdourado97@usp.br, com Thales Dourado