Pesquisador fala das alternativas para diagnóstico e tratamento da necrose na cabeça do osso do quadril, problema com efeitos incapacitantes para os pacientes

Em casos avançados, a reconstrução do quadril é a opção mais utilizada e resolutiva para a osteonecrose – Ilustração: kjpargeter/Freepik
A osteonecrose da cabeça femoral (ONCF) ocorre quando, por motivos variados, há morte de tecido ósseo nesta parte do quadril. A condição tem efeito devastador, devido a quadros dolorosos incapacitantes para atividades habituais e esportivas. Os causas são multifatoriais e as apresentações clínicas diversas, o que dificulta a padronização de um tratamento específico, principalmente no início. Em estágios iniciais da doença, ainda não há colapso subcondral – falha estrutural do osso logo abaixo da cartilagem – e a articulação do quadril está preservada.
O pesquisador Helder Miyahara revisitou a literatura científica para fazer um panorama atualizado da doença. Ele é médico assistente do grupo de Quadril do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FMUSP) e autor do artigo intitulado Osteonecrose da cabeça femoral: Artigo de atualização, publicado na Revista Brasileira de Ortopedia.
“Nos adultos, as principais artérias responsáveis pela irrigação sanguínea da cabeça femoral são as artérias circunflexas medial e lateral. Alguns motivos podem levar a uma interrupção do fluxo sanguíneo na cabeça do fêmur, o que leva à morte das células ósseas — essa morte é o que chamamos de necrose. Portanto, a osteonecrose é a morte do tecido ósseo causada pela interrupção da irrigação sanguínea”, explica Miyahara. Pacientes inicialmente assintomáticos podem ter o diagnóstico como um achado de exame solicitado por outra queixa. Nos quadros avançados, há artrose, com degeneração da cartilagem articular, piorando as queixas de dor e limitação funcional.
São diversas as doenças que levam ao comprometimento da circulação microvascular da cabeça femoral, entre elas: compressão dos vasos por acúmulo de gordura na medula óssea; uso de corticosteroides; alterações da fisiologia normal do tecido ósseo; danos mecânicos às células ósseas; e abuso de álcool. A literatura científica relata que o abuso de álcool com a ingestão de mais de um litro por semana aumenta os riscos em quase 18 vezes. Sobre a dificuldade para padronização das intervenções, o médico exemplifica: “Um paciente que faz uso de corticoides, por exemplo, pode responder de forma diferente de um paciente com HIV”.
A grande dificuldade é que a resposta ao tratamento pode variar conforme a causa da necrose. Por isso, é difícil determinar um tratamento específico conforme o perfil clínico do paciente, o tamanho e a localização da lesão – Helder Miyahara
A classificação dos quadros clínicos mais utilizada é a de Ficat e Arlet, que é baseada em achados clínicos, radiográficos e anatomopatológicos. Ela, porém, não permite prever como a doença tende a se desenrolar – falta de informação é uma das principais fontes de angústia dos pacientes. Já na classificação Arco e Kerboul, o tamanho e localização das lesões medidas em exames de tomografia e ressonância magnética permitem ao especialista dar mais informações sobre o prognóstico.
O tratamento da osteonecrose da cabeça femoral inclui medidas não cirúrgicas, como uso de analgésicos, apoio para marcha, fisioterapia, além de outras terapias auxiliares que tem sido testadas, mas ainda sem evidências robustas. Já as intervenções cirúrgicas podem ir desde a descompressão simples até os procedimentos mais complexos, como enxertos ósseos, ou a reconstrução do quadril em casos avançados.
Inovações para a fase inicial
Como não há cura para a enfermidade, os pesquisadores têm buscado uma gama de diferentes tratamentos em estudos clínicos de curto prazo com potencial de ajudar nas fases iniciais da doença. Mesmo sem evidências robustas, alguns estudos apontam que ondas de choque podem melhorar os sintomas. Estimulação eletromagnética e câmara hiperbárica (que usa a pressão do ar para permitir que o corpo absorva mais oxigênio) também mostraram resultados positivos em alguns casos, em estágios precoces.
Até a terapia genética ou molecular, procedimento que lida com o material genético das células, vem sendo testada, mas nenhum desses tratamentos tem evidência estatística comprovada de superioridade em relação a outros.
“Algumas terapias ainda são experimentais”, indica Miyahara. Mas ele lembra que há eficácia de outras abordagens, considerando que para fases iniciais há um leque maior de opções. “A descompressão é um dos tratamentos mais antigos e pode ser combinada com outras técnicas para obter melhores resultados”, continua. Esse procedimento pode ser associado ao enxerto ósseo, que utiliza material ósseo retirado do próprio paciente (enxertia óssea autóloga) ou material sintético, a fim de promover o alívio dos sintomas e uma melhora na circulação sanguínea local com a diminuição da pressão intraóssea. Em estágios avançados, a prótese total do quadril é a opção mais utilizada e resolutiva.
Tratamento individualizado
Conforme o médico, a osteonecrose é um assunto bem estudado e muito debatido nos congressos da ortopedia. “O objetivo do artigo foi oferecer para ortopedistas gerais, que é um público amplo, e também para subespecialistas em quadris, uma revisão clara dos casos e tratamentos, incluindo alguns mais recentes, e servir como orientação para esses profissionais”, explica. Devido às diferentes apresentações da doença, Miyahara considera de suma importância uma avaliação médica detalhada com investigação laboratorial minuciosa. Obter o diagnóstico correto é fundamental para otimizar o tratamento e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
Ele observa que o tratamento deve ser sempre baseado nos sintomas, buscando a melhora da dor e a prevenção da artrose, com a degeneração da articulação. Isso demanda uma individualização do paciente por parte da equipe médica, o que pode ser um desafio de realizar no Sistema Único de Saúde. “Um dos grandes problemas no sistema público de saúde é o grande volume de pacientes [para a quantidade de profissionais], o que às vezes atrasa o diagnóstico e o atendimento. Não conseguimos individualizar muito o paciente. Mesmo depois de feito o diagnóstico de necrose, pode demorar para ele chegar a um especialista”, contextualiza Miyahara.

Rapidez no diagnóstico da osteonecrose e individualização do tratamento podem ser um desafio para o Sistema Único de Saúde – Foto: rawpixel.com/Freepik
Ele alerta que os pacientes normalmente estão na faixa de 40, 50 anos, e devem ser buscadas medidas eficazes para assegurar melhoria na vida deles. Além da atenção rigorosa dos profissionais para individualizar o atendimento, os materiais disponíveis para os cuidados precisam ser de alta qualidade para haver eficácia, o que é outro desafio. “A qualidade da prótese influencia bastante nos resultados”, enfatiza.
Para encontrar soluções em comum, planos iniciais para criar um centro de necrose estão em debate nos congressos de ortopedia em São Paulo, de acordo com o médico. “[O centro] poderia dar um pouco mais de visibilidade e, consequentemente, disponibilizar pesquisas e avanços nos tratamentos. Um horizonte bacana seria unir centros grandes como Hospital das Clínicas, Santa Casa, Escola Paulista e promover estudos multicêntricos para entender como melhorar a qualidade de vida desses pacientes. A necrose é uma doença bem debilitante, tanto em fases inicias quanto tardias”, conclui.