Saúde

A ponta do iceberg: o virologista David Ho (BS '74) fala sobre o COVID-19
O virologista David Ho se reuniu com membros da comunidade Caltech para discutir o novo coronava­rus e o futuro da nossa sociedade a  luz dessa pandemia global.
Por Lori Dajose - 22/03/2020


Virologista Divid Ho

Em 20 de mara§o, mais de 8.700 pessoas em todo o mundo morreram de COVID-19, a doença causada pelo coronava­rus 2 da sa­ndrome respirata³ria aguda grave (SARS-CoV-2). O administrador da Caltech, David Ho (BS '74), do Centro de Pesquisa de Aids Aaron Diamond, da Universidade de Columbia, diz que essa éapenas a ponta do iceberg. Ho, especialista em epidemias virais, passou décadas pesquisando HIV / AIDS, tendo iniciado sua carreira em Los Angeles, "ponto zero" do primeiro surto, no ini­cio dos anos 80. Em 18 de mara§o, Ho se reuniu com membros da comunidade Caltech para discutir o novo coronava­rus e o futuro da nossa sociedade a  luz dessa pandemia global.

Acompanhe-nos pela disseminação do va­rus nos Estados Unidos. Como éopaís agora?

Deixe-me apenas dar uma imagem do que vejo aqui em Nova York. Cerca de duas semanas atrás, tivemos nosso caso inicial, e agora na cidade de Nova York, casos confirmados recentemente diagnosticados estãotriplicando a cada dois dias. Em nosso Hospital Presbiteriano de Nova York, aproximadamente 25% das amostras de swab enviadas para teste são positivas. Nas comunidades suburbanas fora de Nova York, aproximadamente 10% dos swabs enviados são positivos. Então, o va­rus estãoem todo lugar. E em Nova York, sabemos que estamos na fase de crescimento exponencial da epidemia.

Olhando para o que aconteceu no mundo, vimos a primeira onda atingir a China; a segunda onda atingiu a Coranãia do Sul, Ita¡lia e Ira£; e depois, apenas uma semana depois, Frana§a, Alemanha, Espanha e EUA. Todos sabemos que a China passou por um período de grande devastação. Possui mais de 80.000 casos. A Ita¡lia estãoalcana§ando rapidamente, com mais de 31.000 casos. Suspeitamos que nos EUA isso varra rapidamente das regiaµes costeiras e atingira¡ a Amanãrica Central. Já estãola¡, mas veremos um crescimento exponencial muito, muito em breve. Então, éclaro, estamos todos preocupados com o que aconteceria quando essa epidemia atingisse lugares como a áfrica e a andia, onde o sistema de saúde émenos desenvolvido.

Vocaª pode nos contar sobre a patologia da doena§a?

O COVID-19 geralmente causa febre e tosse seca. Pode-se sentir dores no corpo - os maºsculos - e, se for grave o suficiente, havera¡ falta de ar devido a pneumonia.

Sintomas gastrointestinais podem ocorrer e são uma indicação de doença mais grave. Nãoémuito comum ter corrimento nasal ou fungadela, e uma dor de garganta também não écomum.

O período de incubação da exposição ao ini­cio dos sintomas éentre quatro e seis dias; e se vocêdeseja cobrir 95 a 98% dos casos, isso ocorre entre três e 10 dias. a‰ muito raro ter um período de incubação fora desse intervalo.

O que em particular torna esse va­rus tão perigoso?

O que épreocupante éque o derramamento de va­rus, detectado na boca ou no nariz, émuito, muito comum e pode estar presente antes do ini­cio dos sintomas. a‰ por isso que a transmissão pode ocorrer a partir de indivíduos assintoma¡ticos. E o derramamento de va­rus pode continuar por dias atétrês semanas após a recuperação da pessoa. Isso éextremamente preocupante para a propagação deste va­rus. Além disso, a estabilidade desse va­rus também épreocupante. Se vocêcoloca¡-lo na forma de aerossol e mantaª-lo no ar, a meia-vida éde várias horas; se vocêo deixar cair emsuperfÍcies de cobre ou papela£o, ele podera¡ sobreviver cerca de um dia. Mas se estiver emsuperfÍcies de aa§o ou pla¡stico, vocêainda podera¡ detectar va­rus infeccioso após 72 horas, embora a infecciosidade diminua com o tempo.

O que sabemos sobre a biologia do va­rus?

O va­rus estãoaltamente relacionado a outro coronava­rus chamado SARS. Esse foi outro surto que ocorreu em todo o mundo 17-18 anos atrás, e principalmente na China e na asia.

Os dois va­rus são cerca de 80% idaªnticos. Sabemos que a origem da SARS foi de um morcego atravanãs de um animal intermediário chamado gato da civeta.

Outro va­rus chamado va­rus respirata³rio do Oriente Manãdio, o MERS, também se originou em morcegos e camelos infectados, e os camelos o transmitiram aos seres humanos. Para o COVID-19, acreditamos que o hospedeiro original deve ser uma espanãcie de morcego, porque esse animal carrega um va­rus que é97% idaªntico ao que estamos vendo agora.

Por causa do surto de SARS e do MERS, e das pesquisas realizadas sobre esses dois patógenos, sabemos bastante sobre os coronava­rus.

O surto começou na China; como eles estãolidando com o va­rus?

Essa epidemia foi identificada pela primeira vez em alguns casos com pneumonia em dezembro de 2019. Em retrospecto, houve casos dispersos em novembro, de acordo com autoridades chinesas. Eu diria que inicialmente houve erros e falta de transparaªncia que contribua­ram para o surto explosivo na cidade de Wuhan, na prova­ncia central de Hubei. Essa epidemia na China central éresponsável por 85% dos casos confirmados na China. Isso levou as autoridades de Pequim a colocar em quarentena toda a prova­ncia de 50 milhões de pessoas. A epidemia atingiu o pico no ini­cio de fevereiro, com 4.000 casos diagnosticados diariamente. Mas desde o bloqueio e as várias medidas draconianas aplicadas, o número de novos casos a cada dia diminui pela metade a cada semana, e notavelmente diminui para cerca de 20 por dia. O resto da China '

Sabemos que o que eles fizeram não ésustenta¡vel e a pergunta anã: o que a China fara¡ agora se relaxar as medidas de controle de infecção? Alguns dos pacientes recuperados ainda estãolana§ando va­rus e agora a China estãocercada por vizinhos doentes. Certamente, se abrirem suas fronteiras, a infecção ocorrera¡ da mesma maneira que ocorreu nos EUA. O mundo estãoesperando para ver o que a China fara¡.

Agora, em termos dos EUA, obviamente estamos passando por um crescimento exponencial. Os 10.400 casos confirmados são uma subestimação grosseira. A falta de testes éembaraa§osa. a‰ um fracasso total na liderana§a.

Quais são os testes necessa¡rios para detectar a infecção por coronava­rus?

Todo mundo estãofalando sobre testes e isso estãose referindo a testes de PCR [reação em cadeia da polimerase], procurando RNA viral para determinar se uma pessoa estãoinfectada. Mas ainda não se fala em testes de anticorpos para determinar quais pessoas o fizeram e são imunes, e essa éoutra ferramenta crucial que precisamos para combater essa epidemia. Muitos laboratórios de pesquisa em todo opaís - tenho certeza também na Caltech - poderiam estar realizando testes de anticorpos agora para pesquisar a população e nos dizer qual éa verdadeira penetração desse pata³geno em nossas comunidades. Estamos pesquisando, com base em pesquisas, para entender o grau de infecção na cidade de Nova York e fora dela.

Quanto tempo leva atéos EUA verem a disponibilidade de testes semelhante ao que a Coranãia do Sul implementou?

O teste de PCR, que éo aprovado, agora estãoaumentando muito, muito rapidamente em laboratórios estaduais e locais, bem como em centros médicos acadaªmicos e no setor comercial. Sua produção crescera¡ tremendamente. A Roche possui uma ma¡quina que executa 1.000 amostras por vez. Se vocêfor a um laboratório comercial, eles pegam uma zaragatoa, empacotam e costumam envia¡-la para outra instalação em outro lugar. O tempo de resposta égeralmente 72 horas. Nesse período, émuito, muito difa­cil gerenciar pacientes e seus contatos. a‰ um pesadelo para o profissional de saúde.

Precisamos de testes no local de atendimento. Esses tipos de testes estãodisponí­veis para o HIV e para muitas outras doena§as; vocêusa uma espa¡tula, coloca o sangue em um dispositivo pequeno e faz uma leitura em 15 minutos. Esses testes medem a resposta do anticorpo ao va­rus e são extremamente aºteis. No entanto, não temos um aºnico teste licenciado nos EUA. Na China, na Coranãia do Sul e na Europa, esses testes são usados. O fabricante para este teste rápido estãoproduzindo um milha£o por dia. Esta¡ la¡. Mas, em nome da proteção do paºblico, o FDA mudou muito, muito devagar. Esse atraso, na minha opinia£o, causou mais mal do que bem.

Vocaª pode elaborar testes no ponto de atendimento?

a‰ quase como um teste de gravidez em casa ou um teste de HIV em casa. Esses testes existem hámuito tempo. O teste ao qual estou me referindo especificamente, saindo da China, Coranãia do Sul e aprovado na Europa, éum teste de anticorpos. Vocaª coloca uma gota de sangue em uma lâmina de pla¡stico, adiciona outra gota do tampa£o que acompanha o teste e deixa repousar por 15 minutos. Então, vocêolha para as bandas. Vocaª énegativo se tiver apenas uma banda ou positivo se tiver mais de uma banda. O teste também informa o tipo de anticorpo. Existe um tipo de anticorpo chamado IgG [imunoglobulina G] e outro tipo chamado IgM [imunoglobulina M]. Normalmente, quando uma pessoa éinfectada, a resposta IgM éanterior e a resposta IgG éposterior. As duas bandas indicam o curso da infecção.

Este tipo de teste estãodispona­vel em todo o mundo para o HIV. A tecnologia estãola¡, os testes estãola¡. Mas eles não são aprovados pela FDA. Embora eu ache que estejam quase perto de serem aprovados, deixamos passar várias semanas e isso étra¡gico para mim.

Esse coronava­rus serásazonal?

Todo mundo estãoperguntando se este va­rus estãoaqui para ficar. Inicialmente, apenas com base no que a China fez com a SARS hámuito tempo, havia esperana§a de que o clima mais quente e mais luz solar ajudassem a matar o va­rus em nosso ambiente e, portanto, diminua­ssem a probabilidade de transmissão.

Mas agora esse va­rus ganhou uma posição tão forte na população humana. Já é25 vezes maior que o SARS e já estãoincorporado no hemisfanãrio sul. Se vocêolhar para a Austra¡lia, áfrica do Sul, Argentina, Brasil, já existem casos e a transmissão da comunidade estãoocorrendo. Amedida que o tempo muda, talvez o hemisfanãrio norte ganhe vantagem. Mas a epidemia no hemisfanãrio sul vai acelerar.

O resultado a longo prazo pode assemelhar-se a  gripe, para que tenhamos ataques sazonais, com o va­rus oscilando entre os hemisfanãrios norte e sul. Claro que isso éapenas especulação, mas éo que vemos com a gripe.

Por que o COVID-19 tem menos impacto nas criana§as e mais impacto nos idosos?

Bem, a última parte éfa¡cil. As pessoas mais velhas geralmente se saem menos bem com todos os tipos de infecções respirata³rias, incluindo influenza e SARS. Então esse éapenas o cena¡rio ta­pico que vemos. As criana§as, no entanto, são um mistanãrio. Como vocêsabe, as criana§as geralmente pegam gripe ou outros va­rus respirata³rios muito rapidamente e as levam para casa para infectar os pais. Mas neste caso em particular, o número de criana§as infectadas na China, após extensos estudos, não parece indicar que esse éo caso desse coronava­rus.

Algumas pessoas parecem apresentar sintomas leves, enquanto outras tem uma experiência mais severa. O va­rus já sofreu mutação?

Todos os va­rus de RNA se replicam com baixa fidelidade. As mutações ocorrem a taxas bastante semelhantes e esses va­rus geralmente não tem funções de revisão. Por outro lado, replicamos nosso DNA com alta fidelidade e temos uma função de revisão para corrigir os erros. Então, toda vez que eles se replicam, háuma taxa fixa de mutação. Este va­rus estãoem mutação, mas sofreu muito pouco atéagora. Existem diferenças, mas provavelmente elas não são funcionalmente importantes, então essa não éa explicação do motivo pelo qual vocêvaª diferentes cursos de doenças entre os infectados.

Para o HIV, éa mesma coisa: 10 pessoas podem ser infectadas pela mesma cepa, mas vocêtem resultados muito diferentes. Com o HIV, fatores genanãticos e ambientais desempenham um papel. Parte da genanãtica foi elaborada; sabemos que existem certos tipos de tecidos que protegeriam e outros que prejudicariam. Eu suspeito que éo mesmo aqui.

Depois de se infectar com o va­rus, vocêpode obtaª-lo novamente?

Existem algumas histórias da China sobre reinfecção, mas, se vocêexaminar esses relatórios com atenção, eles não estãobem documentados. Pode ser que as pessoas continuem a lana§ar va­rus da infecção inicial. Apenas um estudo foi formalmente realizado e não éum estudo em humanos. a‰ um estudo de macacos. Eles infectaram macacos com esse va­rus, depois esperaram atéque os macacos se recuperassem e tentassem reinfecta¡-los. Eles não poderiam. Isso acabou de sair nos últimos dias. Isso éum bom pressa¡gio para a imunidade humana.

Vimos agora muito soro de indivíduos convalescentes e essas amostras tem anticorpos contra a chamada protea­na de pico do va­rus. Essa éa protea­na que fica nasuperfÍcie da parta­cula do va­rus. Ligando firmemente, o anticorpo pode neutralizar o va­rus. Uma vez que uma pessoa infectada desenvolva anticorpos, deve haver imunidade protetora por algum tempo. a‰ por isso que precisamos ganhar tempo para o desenvolvimento da imunidade na população.

Depois que uma pessoa se recupera do va­rus, por quanto tempo ela ainda écontagiosa?

Essa éuma pergunta muito importante. Nãotemos certeza; um indiva­duo na China demonstrou ter va­rus persistente por mais de um maªs. Mas normalmente, estamos analisando um período de três semanas desde o ini­cio dos sintomas.

O que devemos fazer para limitar a propagação desta epidemia?

As estratanãgias de distanciamento social e boa higiene foram aplicadas com sucesso, na Coranãia do Sul, por exemplo, para reduzir a epidemia. Eles são o aºnico outropaís que achatou a curva - diminuiu o número de novas infecções para não sobrecarregar o sistema de saúde - e gradualmente controlou essa epidemia. Ha¡ muitos lugares que fizeram um bom trabalho ao não permitir que a epidemia explodisse, como Taiwan e Hong Kong. Sa£o lugares com bastante experiência no combate a  SARS, há17 anos.

Vocaª estãootimista de que essas medidas combinadas a  pesquisa sera£o suficientes para combater o coronava­rus?

Pessoalmente, acredito que vamos atenuar essa epidemia, mas acho que perdemos quatro a seis semanas em grande parte devido a  falta de testes e a  falta de uma certa preparação. Mas acho que ainda podemos fazer a diferença e controla¡-la com medidas muito duras.

Mas, novamente, essas medidas são sustenta¡veis? Temos que esperar que as empresas reabram e as escolas ensinem novamente. Seja em viagens, esportes ou entretenimento ao vivo, teremos que voltar a alguma aparaªncia de normalidade. Mas quais são as medidas eficazes e sustenta¡veis? Essa éuma questãoque nós, como sociedade, temos que lidar. Precisamos ganhar tempo para que gradualmente a população tenha um certo grau de imunidade.

Mais importante, precisamos ganhar tempo para permitir que a ciência fornea§a soluções. Na³s vamos ter que desenvolver drogas, anticorpos e vacinas. Eu acho que a mobilização da comunidade cienta­fica, na minha perspectiva, éincra­vel. Muitas pessoas se mobilizaram e pularam sobre isso e estãocontribuindo, desde a descoberta de medicamentos de moléculas pequenas que poderiam bloquear várias enzimas desse va­rus atéa criação de anticorpos que poderiam neutraliza¡-lo. Os pesquisadores já criaram alguns produtos químicos promissores que podem ser um bom começo para o desenvolvimento de medicamentos. Já existem alguns anticorpos neutralizantes isolados de indivíduos infectados; meu pra³prio grupo estãofazendo tudo isso.

E, claro, as pessoas estãotrabalhando em vacinas. Muitas empresas estãotrabalhando em vacinas e essas vacinas estãoem vários esta¡gios. Algumas semanas depois de entrar em testes em humanos, isso énota¡vel. Poranãm, existe uma coisa sobre as vacinas: algumas das experiências anteriormente realizadas na SARS sugeriam que quando os animais desenvolviam anticorpos e depois recebiam o va­rus, eles apresentavam maior lesão pulmonar devido a  presença dos anticorpos. A comunidade cienta­fica teria que resolver esse problema rapidamente e sua resolução interromperia as abordagens atuais ou as desencadearia para avana§ar a toda velocidade. Certamente participaremos disso. Acho que temos a possibilidade real de que o COVID-19 possa se tornar um fato da vida atéque a ciência aparea§a como aconteceu em epidemias passadas.

Isso vai levar algum tempo. Mas estou muito confiante de que a ciência se encarregara¡ da tarefa e fornecera¡ uma solução. Mas não vai demorar alguns meses, como sugere nosso presidente. Vai demorar muito mais que isso. Eu diria 18 meses ou 24 meses. Acho que todos estamos enfrentando desafios difa­ceis pela frente.

 

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