Saúde

Pesquisa identifica genes de transmissão vertical da Covid-19
Estudo indica protea­nas que poderiam favorecer infeca§a£o da placenta pelo novo coronava­rus
Por Karina Toledo - 25/06/2020

Doma­nio paºblico

Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu identificaram dois genes altamente expressos na placenta humana que codificam protea­nas que poderiam servir como uma espanãcie de “porta alternativa” para a entrada do novo coronava­rus (SARS-CoV-2) nas células: a dipeptidil peptidase 4 (DPP4) e a catepsina L (CTSL).

Detalhes da pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram descritos em artigo dispona­vel na plataforma bioRxiv (sem revisão por pares).

Como explicam os autores no texto, as células da placenta expressam, durante toda a gestação, quantidades muito pequenas das duas principais moléculas usadas pelo SARS-CoV-2 para infectar células humanas: a enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2) e a serino-protease transmembranar 2 (TMPRSS2). No entanto, a presença do va­rus nesse órgão já foi confirmada, em estudos de outros grupos, tanto por microscopia eletra´nica quanto por RT-PCR (reação em cadeia da polimerase após transcrição reversa), exame capaz de identificar o RNA viral usado para diagnosticar a COVID-19. Além disso, o va­rus já foi detectado no organismo de recanãm-nascidos. Ainda não se sabe se a transmissão ocorreu dentro do aºtero ou durante o parto.

“Partindo dessas evidaªncias, decidimos investigar se haveria um mecanismo alternativo capaz de permitir a infecção das células placenta¡rias, ainda que de forma menos eficiente do que o mediado pela protea­na ACE2. A presença do SARS-CoV-2 na placenta poderia levar a  transmissão intrauterina do novo coronava­rus, condição associada a prejua­zos no desenvolvimento fetal”, diz a  Agência FAPESP Luis Antonio Justulin, professor do Instituto de Biociências de Botucatu (IBB-Unesp).

No Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do IBB-Unesp, o pesquisador coordena um projeto dedicado a investigar como diferentes condições vivenciadas no aºtero materno e ao longo da primeira infa¢ncia podem impactar a saúde da prole ao longo da vida, de acordo com o conceito da Origem Desenvolvimentista de Saúde e Doena§a (DOHaD). Em um experimento feito com ratos, por exemplo, o grupo mostrou que filhos de ma£es alimentadas com dieta pobre em protea­nas durante o período de gestação e lactação correm risco consideravelmente maior de desenvolver câncer de pra³stata ao envelhecer.

No caso do SARS-CoV-2, ainda não hárelatos de bebaªs nascidos com sequelas decorrentes da infecção materna. Contudo, estudos já mostraram que o va­rus pode causar alterações vasculares na placenta que, em teoria, poderiam prejudicar o aporte de oxigaªnio e nutrientes para o feto.

Para entender melhor como o novo coronava­rus interage com as células da placenta, o grupo liderado por Justulin decidiu analisar dados de expressão gaªnica de diferentes tipos de células placenta¡rias em diferentes momentos da gestação. Foram usados na pesquisa dados obtidos em estudos anteriores e depositados em reposita³rios paºblicos, como o Gene Expression Omnibus (GEO). O grupo então cruzou esse achado relacionado a  placenta com o conteaºdo de outro banco de dados denominado P-HIPSTer (sigla em inglês para predição de interações moleculares pata³geno-hospedeiro por similaridade de estrutura), cujo algoritmo explora informações baseadas em sequaªncias e estruturas moleculares para inferir a probabilidade de interações entre va­rus e protea­nas humanas. Esse Human-virus interactome atlas mapeia possa­veis redes de interação entre protea­nas humanas e protea­nas de diversos va­rus, possibilitando a identificação de potenciais alvos terapaªuticos.

A estratanãgia permitiu aos pesquisadores avaliar quais genes expressos durante a gravidez codificam protea­nas com maior potencial para interagir com as principais protea­nas de diferentes coronava­rus, entre eles os SARS-CoV-2, o SARS-CoV (causador da sa­ndrome respirata³ria aguda grave) e o MERS-CoV (da sa­ndrome respirata³ria do Oriente Manãdio).

“Fizemos dois tipos de análise. Inicialmente avaliamos a interação das protea­nas virais com todas as protea­nas placenta¡rias. Em seguida, avaliamos essa interação considerando quais genes tinham a expressão diminua­da ou aumentada ao longo da gravidez”, explica Justulin.

Com o objetivo de descobrir especificamente quais células da placenta expressam os genes das protea­nas identificadas que potencialmente interagem com o va­rus, o grupo recorreu a conjuntos de dados paºblicos disponí­veis nos bancos COVID-19 Cell Atlas e Human Cell Atlas Data Portal. Esses reposita³rios possuem dados de sequenciamento de RNA de canãlula única (do inglês, single-cell RNA-Seq). Com esse tipo de análise, épossí­vel obter o transcriptoma de cada uma das células que compõem um tecido, em vez de olhar o tecido como um todo.

As análises por bioinforma¡tica foram realizadas em colaboração com os pesquisadores Robson Carvalho (IBB-Unesp) e Canãlia Regina Nogueira (Departamento de Cla­nica Manãdica da Faculdade de Medicina de Botucatu), além da aluna de doutorado Sarah Santiloni Cury (IBB-Unesp).

Principais achados

As análises e simulações revelaram que as células trofobla¡sticas que compõem as vilosidades coria´nicas da placenta osparte fetal do órgão oscoexpressam altas quantidades de DPP4 e de CSTL durante toda a gestação.

“A DPP4 já foi relacionada a  infecção pelo MERS-CoV em estudos anteriores e, a CSTL, ao SARS-CoV. Fizemos algumas análises de tecidos fetais e vimos que essas duas protea­nas também estãoexpressas no feto em quantidades significativas”, conta Justulin.

O estudo revelou ainda que ao longo da gravidez háuma grande alteração na expressão dos genes DAAM1 e PAICS (enquanto o primeiro aumenta, o segundo diminui com o passar dos trimestres). Ambos codificam protea­nas que, segundo as simulações computacionais realizadas na Unesp, são capazes de interagir com protea­nas de coronava­rus.

Na avaliação dos autores, o artigo recanãm-divulgado apresenta as primeiras evidaªncias da existaªncia de um mecanismo alternativo de infecção das células placenta¡rias pelo SARS-CoV-2, que precisara¡ ser confirmado e melhor compreendido em estudos futuros. Uma das ideias do grupo éanalisar a expressão gaªnica na placenta de gestantes que contraa­ram COVID-19.

“Tambanãm pretendemos infectar células placenta¡rias in vitro e observar o que acontece em termos de expressão gaªnica. Mas esse tipo de experimento requer um laboratório comnível3 de biossegurança e, para isso, estamos firmando parcerias com grupos de outras instituições”, diz Justulin.

O trabalho divulgado na bioRxiv contou com apoio da FAPESP também por meio de um auxa­lio concedido a Carvalho e de uma Bolsa de Doutorado concedida a Fla¡via Bessi Constantino, primeira autora.

“Neste momento de dificuldade mundial égratificante poder contribuir de alguma forma para desvendar os mecanismos de infecção do va­rus. Como nossa linha de pesquisa érelacionada com as fases iniciais do desenvolvimento, ficamos intrigados com a possibilidade de o va­rus infectar a placenta e causar complicações para o desenvolvimento embriona¡rio. Foi assim que surgiu a ideia do trabalho”, afirma Constantino.

O artigo  Prediction of non-canonical routes for SARS-CoV-2 infection in human placenta cells pode ser lido em www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.06.12.148411v1.full.pdf. 

 

.
.

Leia mais a seguir