Saúde

De que forma modelos matema¡ticos ajudam na compreensão da pandemia?
Atravanãs da abordagem, o grupo estima que, para cada morte notificada nopaís, existam atéoutras três aguardando registro. Isso ocorre porque a maioria do a³bitos (61%) leva mais de dez dias para ser confirmado e notificado.
Por Liana Coll - 27/06/2020


Modelos matema¡ticos e Covid-19: o que eles tem a dizer?

Desvendar possa­veis cenários da pandemia do novo coronava­rus e informar tomadas de decisaµes são contribuições que as pesquisas baseadas em modelos matema¡ticos e epidemiola³gicos buscam trazer para o controle da Covid-19. Da análise sobre o panorama da reprodução da doença atéo exame da intensidade do distanciamento social, pesquisadores driblam e calculam o atraso nos dados na tentativa de levantar informações importantes para a conformação de políticas públicas. Sa£o diversos grupos de pesquisa que atuam nesse sentido. Na Unicamp, os pesquisadores Fla¡via Maria Marquitti, Paulo Silva e JoséGeromel salientam como o campo de pesquisa vem ajudando a entender a pandemia.

Uma das contribuições destacadas pela bia³loga e matemática aplicada Fla¡via Marquitti, pa³s-doutoranda no Instituto de Fa­sica Gleb Wataghin (IFGW) e integrante do Observatório da Covid-19, que reaºne pesquisadores em torno de estudos cienta­ficos a respeito da pandemia, são as análises de nowcasting. Ela destaca que essa abordagem não era comum nopaís, mas foi levantada pelo Observatório devido a  problema¡tica de atraso nos dados referentes a  epidemia no Brasil. Atravanãs da abordagem, o grupo estima que, para cada morte notificada nopaís, existam atéoutras três aguardando registro. Isso ocorre porque a maioria do a³bitos (61%) leva mais de dez dias para ser confirmado e notificado. 


Estudo realizado pelo Observatório: atravanãs de análises de nowcasting, pesquisadores identificam mortes notificadas e mortes estimadas (clique para ampliar)

“A análise de nowcasting émuito importante. Na³s a colocamos em pauta e outros grupos de pesquisa e alguns órgãos paºblicos começam a olhar para isso porque existe uma importa¢ncia muito grande no atraso de dados no Brasil. a€s vezes o dado chega, mas atéser colocado na base demora, então épreciso considerar esse tempo para se fazer análises mais precisas sobre o estado da epidemia nopaís e nos estados. Essa análise teve como resultado discussaµes com tomadores de decisaµes”, explica Fla¡via, cuja experiência de atuação se da¡ na interface entre biologia e matemática. 

A maior precisão obtida pela abordagem, além de melhorar a possibilidade de olhar para o cena¡rio presente, e não de semanas passadas, levou, por exemplo, a uma parceria do Observatório com Secretaria de Saúde do munica­pio de Sa£o Paulo para o monitoramento da Covid-19 na capital paulista. 

Tomadas de decisão e ciaªncia

Entretanto, frisa a pesquisadora, nem sempre as tomadas de decisaµes são baseadas na ciência Ela salienta, nesse sentido, que os estudos conduzidos pelo Observatório mostram que a epidemia de Covid-19 no Brasil ainda não estãodiminuindo. Por isso, as análises do grupo não indicam que esse seria o momento ideal para afrouxar as medidas de isolamento e distanciamento social. 

A ponderação leva em conta o chamado R efetivo (Rt), ou número efetivo de reprodução, que mede a capacidade de propagação do va­rus, designando quantas pessoas em média são infectadas por um contagiado pela Covid-19. Se o Rt estãoacima de 1, quer dizer que a doença ainda estãoaumentando entre a população. Já abaixo de 1 indica uma diminuição da doena§a, e um número pra³ximo a 1 mostra uma tendaªncia a  estabilidade. “a‰ uma medida que a gente usa em biologia de populações para entender se a epidemia estãoem expansão ou não. Ele serve para tomar decisaµes a respeito da epidemia”, elucida Fla¡via. 

A pesquisadora Fla¡via Marquitti evidencia que as análises de nowcasting para saber
o que estãoacontecendo de fato no momento, o que édifa­cil devido ao atraso de dados

No Brasil, o número de reprodução do va­rus ainda estãoacima de 1, embora venha caindo gradualmente. “Então não seria o momento exato de ter relaxamento de medidas de distanciamento social”, avalia a pesquisadora, que no momento vem se dedicando aos diferentes manãtodos de ca¡lculo de reprodução efetiva, incorporando também as análises de nowcasting para maior precisão. A bia³loga também aponta para os perigos de medidas que se voltam para a remediação da doena§a, e não para a sua mitigação. “Estão olhando para ver quantos podem cuidar e não para prevenir que a doença se espalhe”, afirma.

Vidas salvas pelo isolamento

Os dados levantados pelo Observatório, que constam numa grande plataforma repleta de gra¡ficos e análises comentadas, embasam também pesquisas feitas por outros cientistas. O professor do Instituto de Matema¡tica, Estata­stica e Computação Cienta­fica (IMECC) da Unicamp, Paulo Silva, por exemplo, levanta de la¡ os dados para o estudo chamado Vidas Salvas pelo Isolamento Social. Realizada em conjunto com a pesquisadora do IMECC Claudia Sagastiza¡bal, a pesquisa estima, levando em consideração da taxa de transmissão do va­rus (o Rt), quantas mortes são poupadas pela estratanãgia de isolamento social.


Estimativa de vidas salvas por regiaµes divulgada no dia 23 de junho - os dados são atualizados diariamente

Atéo dia 24 de junho, a estimativa éque a cada minuto, duas vidas sejam salvas pelas medidas de distanciamento social. No estado de Sa£o Paulo, são no dia 23 de junho, a pesquisa aponta 204 vidas poupadas, número que cresce ao longo dos dias atébater as 2.537 vidas em 5 de julho. No entanto, o professor pondera que, devido ao atraso dos dados, os números são ajustados diariamente e, pelo período de incubação da doença ser de até14 dias, eles refletem o que aconteceu hátéduas semanas.

Em relação a  taxa de reprodução ba¡sica do va­rus, que no Brasil estãoem 1.16, enquanto no ini­cio da pandemia era de 2.20, Paulo avalia que éuma boa nota­cia, pois indica uma tendaªncia a  estabilidade, mas traz algumas ponderações sobre o processo de relaxamento do isolamento. “Como existe um delay, fica agora a daºvida se a reabertura não vai mexer nisso, pois corremos esse risco. Normalmente os outrospaíses não reabriram quando a doença se estabilizou, mas depois que havia decrescido fortemente a doena§a”, observa. 

Essa também éa indicação da Organização Mundial da Saúde, que orienta reabertura somente com taxas de reprodução abaixo de 1, e de forma controlada, já que algunspaíses que iniciaram a reabertura com taxas abaixo de 1 voltaram a subir os a­ndices após a flexibilização. 

Estratanãgias além da quarentena

O Brasil hoje tem uma estimativa de quase 1 milha£o de infectados, segundo o balana§o do Ministanãrio da Saúde de 18 de junho. Isso faz com que estratanãgias como o rastreamento da cadeia de transmissão seja muito difa­cil e, segundo o professor, humanamente impossí­vel, atémesmo porque não existe uma testagem ampla nopaís. “Paa­ses que tem controlado a doença por períodos longos sem precisar de isolamento severo, como a China e a Coreia do Sul, tem feito esse processo de, toda vez que aparece um caso, saber tudo sobre aquele caso para pegar a cadeia de transmissão. E com isso eles conseguem manter por semanas a sociedade razoavelmente aberta sem um surto de casos. O número de casos étão pequeno que épossí­vel outras estratanãgias que não são a quarentena”.

Dessa forma, ele avalia que épreciso primeiro atingir o decrescimento da doena§a, para depois tomar medidas de afrouxamento do isolamento social. “Esse processo de rastreamento da cadeia de transmissão são épossí­vel se vocêtem poucos doentes de partida. Se vocêtem muitos doentes éhumanamente impossí­vel fazer. No Brasil hoje em dia eu diria que isso éhumanamente impossí­vel de fazer. Se vocêtem muitos casos, a primeira coisa a fazer éa quarentena para diminuir o número, porque se não, não épossí­vel trabalhar. E no Brasil o que se estãofazendo édiminuir a quarentena sem diminuir o número de casos, e isso me parece muito perigoso”, afirma.

“O problema da doença éque existe uma inanãrcia, vocênão mede o que vai acontecer amanha£, vocêmede o que aconteceu háuma semana, uma semana e meia atrás. Se vocêdecidir pisar no freio, écomo pisar no freio de um navio ou de um trem, existe uma inanãrcia e ele vai seguir andando por um tempo. Vocaª tem que ter cuidado e calcular que daª tempo de frear antes de bater”, diz o professor, fazendo uma analogia evidenciando que, pela caracterí­stica de incubação da Covid-19, épreciso saber que estratanãgias de contenção da epidemia podem demorar a surtir efeito.

Por isso, ele indica que os protocolos adotados pelas autoridades públicas deveriam confiar mais nos modelos. “Eles dizem o que pode acontecer”, afirma. 

Ponderações e aprimoramento dos modelos

Assim como Fla¡via e Paulo, o professor Jose Claudio Geromel, da Faculdade de Engenharia Elanãtrica e de Computação da Unicamp (FEEC), avalia que os modelos fornecem informações importantes para avaliar políticas públicas de combate a  epidemia. “Permitem, por exemplo, calcular a chamada taxa ba¡sica de reprodução (R0) e colocar em evidência se o isolamento social adotado estãosendo efetivo, no sentido de diminuir o número de novos infectados e, por conseguinte, o número de a³bitos”, observa.

Entretanto, para tomar os modelos matema¡ticos no entendimento da pandemia e na tomada de decisaµes por autoridades, são necessa¡rias ponderações. A primeira ponderação que Geromel traz éque modelos matema¡ticos introduzem simplificações da realidade e, por isso, precisam ser observados a partir dessa compreensão. “Mas, ao serem adotados com cuidado e cautela, são essenciais para subsidiar a tomada de decisão de forma mais precisa e segura”, afirma.

Outro ponto levantado pelo pesquisador relaciona-se a  impossibilidade de projeções a longo prazo, já que o comportamento da doença e das pessoas, em relação ao uso de máscaras e ao isolamento, por exemplo, impactam diariamente sobre os parametros adotados. “Como os seus parametros podem variar durante a evolução da epidemia, ao serem determinados a partir de um conjunto de dados disponí­veis em um momento, podem deixar de bem representar a realidade mais a  frente. Desta forma, previsaµes de longo prazo são evitadas, pois estãosujeitas a imprecisaµes que, em geral, são expressivas”.

Em conjunto com os pa³s-graduandos da FEEC Jorge A. Costa Jr. e Amanda C. Martinez, o professor propa´s uma nova variante para o modelo cla¡ssico que leva em conta os indivíduos sauda¡veis (S), infectados (I) e recuperados/removidos (R), denominado modelo SIR, o qual ébastante difundido na análise de cenários relacionados a  Covid-19. Essa nova variante, observa, foi obtida a partir de uma formulação alternativa que descreve os encontros aleata³rios entre indivíduos das classes S e I.

“O modelo proposto tem boa aderaªncia a  realidade, mas sofre das mesmas limitações de qualquer modelo da classe SIR. Ao nosso ver, isso coloca em evidência que épreciso desenvolver modelos computacionais mais precisos (com representação evento-a-evento) que possam ter maior grau de previsão”, elucida.

Assim, Geromel indica que são imperativos alguns aprimoramentos. “a‰ necessa¡rio determinar o impacto epidemiola³gico associado a cada indiva­duo de uma população tão grande como a nossa, se deslocando em uma imensa área territorial, com densidade populacional muito heterogaªnea. Esse éum desafio cienta­fico que devemos enfrentar, no futuro pra³ximo, para entender como melhor proceder no enfrentamento de epidemias”. 

“A única arma que temos atualmente para combater esta epidemia éo distanciamento social”, lembra o professor, que reafirma as medidas individuais como fundamentais para o controle da doena§a. “Esta fase vai passar, mas todos devemos contribuir para que ela passe mais rápido. Lavar as ma£os, manter distância, evitar aglomerações e são sair de casa se for absolutamente necessa¡rio, são contribuições fundamentais de cada um ao bem-estar de todos”, orienta

 

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