Saúde

Droga em teste contra o câncer reverte microcefalia em camundongos
Estudo, que contou com a participaa§a£o de pesquisadores da USP, mostrou melhora significativa nos animais tratados
Por Fabiana Mariz - 21/07/2020


Canãlulas de meduloblastoma, um tipo de câncer cerebral, infectadas pelo zika (vermelho) osFoto: Cegh-CEL via Revista Fapesp

Um medicamento em última fase de testes clínicos contra o câncer mostrou-se eficaz no tratamento de sintomas causados pelo zika va­rus. A droga, que por enquanto tem o nome de HP163, não são reverteu a microcefalia em filhotes de camundongos previamente infectados pelo pata³geno, como também diminuiu a quantidade desses microrganismos presentes em órgãos importantes, como cérebro, olhos, baa§o e placenta. Os resultados foram publicados nesta segunda-feira (20) na revista cienta­fica Nature Neuroscience.

A pesquisa, realizada em parceria com a USP, Universidade de Buenos Aires, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Escola de Medicina Monte Sinai, em Nova Iorque, além da Escola de Saúde Paºblica da Universidade de Boston, partiu de uma hipa³tese que intriga cientistas desde que surgiram no Brasil as primeiras ocorraªncias de sa­ndrome congaªnita do zika va­rus, em 2014. Durante a epidemia, foram reportados casos de mulheres que, mesmo infectadas, geraram bebaªs sem microcefalia. “Isso indica que existe uma lacuna de resistência e suscetibilidade nessas mulheres, e o nosso ponto de partida foi tentar entender o que rege essa lacuna”, explica Jean Pierre Schatzmann Peron, coordenador do Laborata³rio de Interações Neuroimunes do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. 

O desenvolvimento de terapias efetivas contra a zika ainda requer um melhor entendimento da interação dos fatores do hospedeiro, ou seja, as caracteri­sticas que afetam a suscetibilidade a doenças em comparação com outros indiva­duos. Por isso, a primeira fase do estudo, realizado na Argentina como parte do doutorado de Federico Giovannoni, teve o objetivo de identificar mecanismos moleculares associados a  replicação do va­rus. 

Trabalhando com hipa³teses

O aril hidrocarboneto (AHR) éum receptor celular e estãopresente no citoplasma da canãlula. Quando ativado por um de seus vários ligantes presentes na natureza, ele migra para o núcleo e pode ativar ou desativar genes. 

Estudos anteriores mostraram que o AHR étambém um biomarcador para ca¢ncer. Na­veis elevados do receptor foram encontrados em pacientes com leucemia, linfomas e também em ca¢nceres de ova¡rio e de pulma£o. 

Baseados nessas evidaªncias, os pesquisadores queriam saber se o AHR também desempenhava um papel importante durante a sa­ndrome congaªnita do zika. Eles infectaram células hepa¡ticas osHepG2 ose precursoras neurais osas NPCs, que mais tarde va£o dar origem aos neura´nios -, e as compararam a dados disponí­veis em bancos de dados internacionais. Foi utilizada uma técnica chamada de RNA-seq, que identifica, além de outras coisas, mutações e na­veis de expressaµes gaªnicas. “Percebemos que o AHR estava ativo nessas culturas ”, diz Carolina Manganeli, biomédica do Laborata³rio de Interações Neuroimunes do ICB. “Partimos, então, para elucidar por quais mecanismos isso acontecia”, explica.

Os resultados das análises subsequentes mostraram que, quando o va­rus entra na canãlula, o zika bloqueia a produção de duas substâncias usadas pelo sistema imune: intanãrferons do tipo 1 e a PML, que estãoenvolvida em processos de morte celular programada, de expressão gaªnica e de supressão de tumores. 

Zika em camundongos

Peron foi um dos participantes do estudo pioneiro, liderado por pesquisadores brasileiros, que comprovou a relação entre o va­rus zika e o aumento de casos de microcefalia em bebaªs. Na anãpoca, o imunologista infectou camundongos e acompanhou a evolução da doença em filhotes atéo nascimento. Os resultados, inanãditos atéentão, mostraram que o zika tem tropismo para células precursoras neurais osas que mais tarde va£o se transformar em neura´nios. Tropismo épropensão que um va­rus tem em infectar determinado tipo de canãlula ou tecido.

Por essa experiência anterior, Jean foi procurado para dar segmento a  pesquisa com o AHR. A primeira fase dos estudos in vivo caracterizou-se por infectar camundongas prenhes e analisar se o receptor AHR estava ativado nesses animais. “Verificamos que a AHR estava funcionando, assim como os genes-alvos dela”, diz Peron. “Partimos, então, para a fase de acompanhamento da evolução da doença durante a gestação.”

Duas drogas foram utilizadas: a CH223191, a mesma utilizada nos experimentos in vitro; e outra, que por enquanto, éconhecida como HP163 e estãona última fase de testes clínicos em pacientes com ca¢ncer. Esses dois medicamentos são antagonistas de AHR, ou seja, bloqueiam a atividade do receptor celular.

Os animais foram tratados um dia antes de serem infectados e, diariamente, recebiam doses dos medicamentos. A CH223191 reduziu a microcefalia e a carga viral do zika no cérebro e baa§o em alguns filhotes recanãm-nascidos. “Já os resultados com a HP163 foram gritantes”, comemora Carolina. 

A administração da droga em camundongas prenhes reverteu a microcefalia, diminuiu a quantidade de va­rus no cérebro, no olho, na placenta e no baa§o dos animais. “Além disso, os animais tratados ficaram exatamente do tamanho dos controles”. Carolina explica, ainda, que quando háinfecção, o tamanho do animal émenor, assim como o peso e todas as medidas cranianas.  

Pacientes com microcefalia apresentam, ainda, aumento do cortex e do ventra­culo cerebral. “Analisamos, também, a histologia dos filhotes e percebemos que os animais que receberam a droga tem tamanho normal de ventra­culo, enquanto que os infectados possuem ventra­culo bem grande”, completa Carolina. 

Por meio de análise de imunofluorescaªncia, os cientistas encontraram um aumento de nestina, que indica maior presença de células precursoras neurais. A morfologia dessas células também chamou a atenção. Quando estãoem repouso, elas tem um formato mais ‘espraiado’ e, quando ativadas, ficam mais redondas. “ Isso quer dizer que a microglia [células imunola³gicas do cérebro] dos camundongos com zika estãoativa, ou seja, se defendendo”, relata Carolina. 

Pra³ximas etapas

Carolina diz que o grande achado deste trabalho foi, além de reverter a microcefalia dos filhotes de camundongos, conseguir inibir a multiplicação do va­rus e diminuir todos os sintomas da zika. “Além disso, como a HP163 já estãodispona­vel, a aceitação dela podera¡ ser mais fa¡cil”, explica a biomédica, se referindo aos testes toxicola³gicos e de segurança a que uma droga ésubmetida antes de ser aprovada para uso medicinal.

Como pra³ximos passos, Peron diz que seria interessante testar a droga em macacos. “Nãopercebemos nenhum efeito deletanãrio em camundongos, mas precisara­amos testar em primatas para realmente termos certeza da segurança da HP 163”, conclui.

 

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