Saúde

Sequelas em pacientes recuperados de Covid-19 podem persistir por longo período
No Brasil hámais de 1,6 milha£o de recuperados da Covid-19. O Sistema de Vigila¢ncia Epidemiola³gica do Ministanãrio da Saúde aponta que 50% dos pacientes mais graves sobrevivem.
Por Eliane Comoli - 26/07/2020


Profissionais do Hospital de Cla­nicas (HC) da Unicamp assistem paciente contaminado com coronava­rus

Desde o primeiro caso oficial de Covid-19 na China em dezembro de 2019 pesquisadores buscam desvendar o mecanismo de ação do Sars-CoV-2 (novo coronava­rus) que ataca diversos órgãos além dos pulmaµes e provoca alterações na circulação, podendo levar a  morte não apenas por insuficiência pulmonar. O Servia§o Nacional de Saúde depaíses em esta¡gios mais avana§ados da pandemia, como o Reino Unido, acredita que diversas sequelas físicas, cognitivas e psicológicas devem persistir em pacientes da Covid-19, principalmente as respirata³rias se seguirem os padraµes de SARS (Sa­ndrome Respirata³ria Aguda Grave) e MERS (Sa­ndrome Respirata³ria do Oriente Manãdio).

Publicações recentes nas revistas cienta­ficas New England Journal of Medicine e Brain documentam os sintomas neurola³gicos em pacientes com Covid-19. Variam de simples dificuldades cognitivas a  confusão mental, além de dor de cabea§a, perda de olfato e formigamento, assim como encefalites, hemorragia, trombose, AVC isquaªmico,mudanças necra³ticas e Sa­ndrome de Guillain-Barranã, condições neurolégicas nem sempre correlacionadas com a severidade de sintomas respirata³rios. “O que mais impressionou os patologistas foram os sinais de isquemia e hipoxemia, mais que lesões inflamata³rias. a‰ extremamente intrigante e não sabemos porque o va­rus causa tantos problemas neurola³gicos. A via olfata³ria éuma possí­vel porta de entrada, mas não apenas ela justificaria os problemas psiquia¡tricos”, explica Clarissa Lin Yasuda, neurologista do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Nãofoi detectado va­rus no la­quor em nenhum dos estudos mencionados. Clarissa comenta o caso de um paciente com quadro muito grave de perda de coordenação motora também com ausaªncia do va­rus nas imagens de ressonância magnanãtica e no la­quor. “Parece que os efeitos não ocorrem por ação direta do va­rus e sim por mecanismos mais indiretos que fazem lesões no sistema nervoso. Nãovimos muitos casos de encefalite especa­fica ou necrotizante tão graves como os reportados nesses estudos e sim outras manifestações como a Sa­ndrome de Guillain-Barréque podem evoluir para quadros muito graves”, explica.

Patologistas avaliam lesões nos tecidos e órgãos e auxiliam no tratamento de casos graves. “Auta³psias que realizamos nos últimos meses em pacientes diagnosticados com Covid-19 revelam que o va­rus se espalha por vários órgãos como o coração e rins além dos pulmaµes e chega ao cérebro por meio do nervo olfata³rio”, disse Paulo Saldiva, patologista do Hospital das Cla­nicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sa£o Paulo (USP), durante a Reunia£o Anual Virtual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 13 de julho. Segundo Paulo em muitos casos as alterações cardiovasculares acontecem mesmo quando o pulma£o estãomais preservado.

O comportamento do Sars-CoV-2 a longo prazo éum enigma preocupante. O va­rus varicella-za³ster que causa a catapora, por exemplo, pode ficar inativo na medula espinhal por anos e reativar em situação de imunidade baixa provocando a herpes-za³ster (cobreiro). Clarissa comenta dois casos de pacientes já recuperados da Covid-19, desde abril, que voltaram a ter sintomas em julho quando testaram novamente positivos no RT-PCR, teste usado ​​para análise da expressão gaªnica e quantificação do RNA viral. “Nãoestãocom alterações neurolégicas, mas com sintomas da Covid-19. Os infectologistas não sabem se eles se contaminaram novamente com o Sars-CoV-2 ou com outro va­rus não detectado, ou se o Sars-CoV-2 ficou alojado no tecido. a‰ impossí­vel dizer pois não se sabe se as pessoas desenvolvem ou não imunidade a esse va­rus”, alerta a neurologista.

Apesar do impacto do Sars-CoV-2 nos pulmaµes ser precedente e assustador, impactos duradouros no sistema nervoso podem ser maiores e atémais avassaladores devido a  difa­cil regeneração do tecido nervoso podendo resultar em incapacidades gerais já que o sistema nervoso coordena as funções do organismo como um todo.

Rastros da Covid-19

No Brasil hámais de 1,6 milha£o de recuperados da Covid-19. O Sistema de Vigila¢ncia Epidemiola³gica do Ministanãrio da Saúde aponta que 50% dos pacientes mais graves sobrevivem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a chance de sequelas aumenta em pacientes graves que tiveram permanaªncia prolongada em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e necessidade de usar aparelhos respiradores. A recuperação pode levar de três a seis semanas ou mais.

Muitas podem ser as complicações pa³s-intubação decorrentes da intubação (respiração artificial) prolongada seguida de traqueostomia (procedimento que facilita a chegada de ar aos pulmaµes quando háobstruções), sendo os mais comuns danos lara­ngeos como lesões nas cordas vocais e estreitamento da laringe, e traumas nas vias aanãreas. Podem causar prejua­zos a  vocalização, a  respiração e a  deglutição.

Luciana Castilho de Figueiredo, supervisora da fisioterapia da UTI do Hospital de Cla­nicas (HC) da Unicamp, enfatiza a necessidade de reabilitação multiprofissional e interdisciplinar dos pacientes pa³s-Covid-19 graves, envolvendo fisioterapeutas, fonoaudia³logos, médicos, nutricionistas e outros. “Sintomas como a perda de paladar e olfato já eram sinais de algo muito sanãrio em relação ao ha¡bito alimentar e agrava-se mais por causa da disfagia (dificuldade de engolir) decorrentes da intubação prolongada e traqueostomia”. Alterações da deglutição não tratadas adequadamente; podem acarretar em desnutrição, desidratação, broncopneumonia e atélevar a  morte. “Falar e comer fazem parte de hábitos de felicidade, faz parte do que édigno para as pessoas”, salienta a fisioterapeuta.

Processos emba³licos podem ocorrer no desmame da ventilação meca¢nica ou devido a  resposta inflamata³ria exagerada. Pequenos coa¡gulos se desprendem e são transportados pelo sangue atévários órgãos onde podem obstruir vasos e impossibilitar a oxigenação das células. As consequaªncias podem ser embolia pulmonar, tromboses, ataques carda­acos e AVC isquaªmico (acidente vascular cerebral). “Um AVC isquaªmico pode gerar uma infinita quantidade de comprometimentos como a paralisia de movimentos e perda da fala”, enfatiza Luciana.

“Percebemos uma polineuropatia (distaºrbio dos nervos) que aparece de forma muito aguda, rápida e grave englobando fraqueza muscular e perda muscular e da motricidade”, comenta a fisioterapeuta. Pacientes menos graves estãomanifestando desenvolvimento gradativo de sinais da polineuropatia: sensação de formigamento e dormaªncia, dor semelhante a  queimação e incapacidade de sentir vibrações ou a posição dos membros e das articulações. Foi o que relatou Alessandra Alday, 48 anos. “Ha¡ dois meses tive os primeiros sintomas da Covid-19 e ainda sinto fraqueza, dores musculares no corpo e forte indisposição, como uma fadiga crônica. Sa³ depois vieram as sensações de formigamento e peso nas pernas. O médico suspeita de desordem neurola³gica perifanãrica semelhante a  Sa­ndrome de Guillain-Barranã”, revela Alessandra que testou positivo para a doença em maio.

Luciana salienta que a intervenção fisioterapaªutica tem um impacto muito grande na reabilitação do paciente Covid-19 grave. “Visa fazer o paciente reaprender a respirar sozinho de forma esponta¢nea e segura, pois são assim ele podera¡ sair da UTI para a enfermaria. Auxilia na mobilização precoce ao longo da internação com finalidade de auxa­lio no deslocamento. Nas sequelas respirata³rias persistentes e que não evolua­rem para fibrose (substituição do tecido pulmonar funcional por tecido não funcional, cicatriz) acentuada com dependaªncia de oxigaªnio, a fisioterapia na reabilitação cardiovascular que envolve uma adaptação fisiola³gica ao exerca­cio éfundamental”.

Por quanto tempo persistira£o?

O cena¡rio ainda éobscuro e seránecessa¡rio o monitoramento das complicações nas vitimas da Covid-19. O HC-Unicamp avalia implementar um programa de telemedicina e telereabilitação. “O primeiro passo seria avaliar o prejua­zo respirata³rio demonstrado pela fadiga na prova de função pulmonar, seguido de um programa de reabilitação individualizado em que o paciente pudesse receber um kit com um dispositivo de comunicação, um exercitador respirata³rio e um programa de atividade que ele possa fazer em casa”, informa a fisioterapeuta.

Dados preliminares coletados pela neurologista Clarissa atravanãs de questiona¡rio on-line apontam que cerca de 67% dos pacientes recuperados da Covid-19 sem internação apresentam algum sintoma neurola³gico persistente: fadiga crônica (30%), problemas de memória (25%), perda de olfato (20%), dores de cabea§a (15%) e perda de paladar (10%). Apenas 33% se consideram sem sintomas. “a‰ muito grave dizer que apenas 33% se consideram sauda¡veis e sem sintomas, sendo que nenhum desses pacientes foi internado. Imagine a situação dos pacientes graves como sera¡â€, enfatiza Clarissa.

O Laborata³rio de Neuroimagem do HC-Unicamp, associado ao Cepid Brainn (Instituto Brasileiro de Neurociaªncia e Neurotecnologia vinculado ao programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fapesp) realizara¡ um estudo de ressonância magnanãtica em pacientes com quadros neurola³gicos pa³s-Covid-19 e que tiveram alterações neurolégicas na fase aguda, em pacientes com poucas alterações neurolégicas ou apenas alterações do olfato e paladar, e nos assintoma¡ticos do ponto de vista neurola³gico. “No processamento de imagem conseguimos detectar alterações cerebrais sutis. Minha hipa³tese éque o va­rus poderia causar alterações estruturais ou mesmo da função cerebral, ou atéalgum grau de atrofia”, explica a neurologista. O acompanhamento desses pacientes permitira¡ avaliar o impacto do Sars-CoV-2 no sistema nervoso a longo prazo.

Atualmente, o Brasil perdeu mais 82 mil brasileiros para a Covid-19 e hámais de 1,6 milha£o de recuperados, dos quais boas parte podera¡ ainda precisar de cuidados médicos. “a‰ difa­cil falar sobre as marcas da Covid-19. A quantidade de mortes éum impacto que não tem tamanho. O negacionismo da ciência e descuido com as vidas me impressiona. Senti tristeza, desa¢nimo, medo de transmitir o va­rus para a minha fama­lia, medo de morrer ou ter sequelas. Estou aprendendo uma nova forma de viver curtindo minhas flores e redescobrindo pequenas coisas que me da£o alegria. A perspectiva de ressignificação me da¡ esperana§a. Aqui tem vida e ela estãoflorescendo”, refletiu esperana§osa Alessandra Alday.

 

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