Saúde

Doente sob as regras do matadouro
Como os profissionais de saúde, os que estãona linha de frente da produção de carne nos EUA correm alto risco durante a pandemia. Os perigos não param no novo coronava­rus.
Por Amanda Loudin - 30/07/2020


Doma­nio paºblico

No final de abril, as manchetes alertaram para a crescente escassez de carne e aumentos acentuados de prea§os nos supermercados dos EUA devido aos surtos de COVID-19 nas fa¡bricas de processamento em todo opaís. Executivos da indústria de carne tocaram alarmes paºblicos. O presidente da Tyson Foods chegou a publicar anaºncios de pa¡gina inteira no The New York Times e no Washington Post , alegando que a cadeia de suprimento de alimentos dos Estados Unidos estava basicamente quebrando.

Em reação, algumas lojas impuseram limites a  compra de carne e, quando não o fizeram, os clientes aplicaram suas prática s de acumulação de papel higiaªnico a frango, porco e carne bovina. Por um curto período, algumas daºzias de plantas foram desativadas, resultando em uma escassez tempora¡ria de carne e também no abate em grande escala de animais. No ini­cio de maio, a indústria de sua­nos em Minnesota estimou a eutana¡sia dia¡ria de sua­nos em 10.000 a 15.000.

Em 28 de abril, o presidente Trump assinou uma ordem executiva declarando que o processamento de carne era essencial e que as fa¡bricas deveriam permanecer abertas e em operação. Quase da noite para o dia, as fa¡bricas voltaram a ficar on-line e a preocupação dos consumidores diminuiu.

Os temores em torno da escassez de carne podem ter desaparecido, mas as consequaªncias menos divulgadas não desapareceram: notavelmente, os surtos de COVID-19 entre os trabalhadores da linha de produção de carne. Em maio, o CDC registrou aproximadamente 5.000 infecções em fa¡bricas de processamento de carne, espalhadas por 19 estados. Duas investigações independentes estimaram as taxas de infecção nessa população em duas vezes a média nacional. Em 17 de julho, de acordo com o Centro - Oeste do Centro de Informações Investigativas , havia 133 mortes relatadas de trabalhadores em 43 fa¡bricas em 24 estados

As estata­sticas alarmantes chamaram a atenção de vários especialistas do corpo docente da Johns Hopkins, que estãotomando medidas para lidar com o surto e outras preocupações com a saúde dessa população, sob os a¢ngulos da recomendação de políticas, educação e extensão e parceria da comunidade.

As ma¡s condições de trabalho nas linhas de produção de carne não são novidade, diz Ellen Silbergeld , professora emanãrito do Departamento de Saúde e Engenharia Ambiental da Bloomberg School of Public Health. O autor de Frango para criação de fazendas e alimentos: como a produção industrial de carne paµe em perigo trabalhadores, animais e consumidores (Johns Hopkins University Press, 2016), Silbergeld diz que muitos fatores influenciam as condições inseguras, comea§ando muito antes do pandemia. Um fator importante: grande volume. Até175 galinhas podem ser "processadas" por minuto, de acordo com as diretrizes existentes, resultando em, em média, 25 milhões de mortos por dia em fa¡bricas americanas.

"A linha de produção de alimentos éuma adaptação da linha de produção de carros Henry Ford, com o objetivo de aumentar a eficiência e reduzir os custos para os consumidores", diz ela. "Mas as linhas de processamento de carne são rápidas e as empresas continuam a torna¡-las mais rápidas. Isso cria condições perigosas".

Trabalhadores em uma fa¡brica de processamento de aves embalam carne
Legenda da imagem:A pandemia de coronava­rus aumentou os perigos para os
trabalhadores das fa¡bricas de processamento de carne, que geralmente precisam
trabalhar por longos turnos em locais pra³ximos
IMAGEM CRa‰DITO: GETTY IMAGES

Uma análise do Escrita³rio de Prestação de Contas do governo das estata­sticas do Departamento do Trabalho dos EUA de 2004 a 2013 revelou que, quando se trata de ferimentos e infecções, os trabalhadores nas linhas de processamento de carnes e aves estãoem maior risco do que os empregados em qualquer outro tipo de fabricação. A pesquisa de Silbergeld em 2014, publicada no American Journal of Industrial Medicine , retrocede nessas descobertas. O surto de coronava­rus apenas compaµe esses perigos.

"Este éum trabalho em que os trabalhadores ficam ombro a ombro", aponta Silbergeld. "Eles também não tem EPI adequado - eles nunca tem".

Combinar o problema, diz Silbergeld, éa escassa quantidade de supervisão da Administração de Segurança e Saúde Ocupacional. "Nãohádiretor e a agaªncia estãoefetivamente desmantelada no momento", diz ela. "Nãohádiretrizes necessa¡rias para as plantas seguirem em relação a  segurança do trabalhador no meio da pandemia".

"A LINHA DE PRODUa‡aƒO DE ALIMENTOS a‰ UMA ADAPTAa‡aƒO DA LINHA DE PRODUa‡aƒO DE CARROS HENRY FORD, COM O OBJETIVO DE AUMENTAR A EFICIaŠNCIA E REDUZIR OS CUSTOS PARA OS CONSUMIDORES. MAS AS LINHAS DE PROCESSAMENTO DE CARNE SaƒO RaPIDAS E AS EMPRESAS CONTINUAM A TORNa-LAS MAIS RaPIDAS. ISSO CRIA CONDIa‡a•ES PERIGOSAS".

Ellen Silbergeld
Autor, Frango em explorações agra­colas e alimentos: como a produção industrial de carne paµe em perigo trabalhadores, animais e consumidores

O CDC e a OSHA emitiram diretrizes volunta¡rias conjuntas para as fa¡bricas de processamento de carne, que incluem o distanciamento fa­sico padrãode 1,8 m e outras medidas. As agaªncias declararam que apoiariam quaisquer empresas que enfrentassem lita­gios por exposição ao coronava­rus, desde que seguissem as diretrizes. Além disso, o Departamento do Trabalho anunciou que reivindicaria autoridade sobre os estados para garantir que as plantas permanea§am abertas durante a pandemia.

Silbergeld espera trabalhar com os sindicatos para entrar nas fa¡bricas e ver algumas das condições. "Sa£o trabalhadores que vivem em locais apertados e lotados. Eles não tem acesso a testes. Eles geralmente não tem assistaªncia médica como parte do trabalho", diz ela. "Se um trabalhador ficar doente com COVID e precisar ficar em casa, ele podera¡ perder o emprego".

Keeve Nachman , professor associado do Departamento de Saúde e Engenharia Ambiental, diz que, na sociedade americana, os trabalhadores da produção de alimentos são praticamente invisa­veis. Segundo a Fundação da Fama­lia Kaiser, aproximadamente 22% de todos os trabalhadores da produção de alimentos são não-cidada£os e a ocupação paga uma renda familiar abaixo de 200% donívelfederal de pobreza de US $ 12.760. "Ha¡ muito tempo insistimos que esses trabalhadores permanea§am no emprego, mas não os apoiamos como apoiamos os profissionais de saúde", diz ele. "a‰ uma incompatibilidade de nossas expectativas que teremos um suprimento de comida sauda¡vel".

Recentemente, Nachman foi co-autor de um resumo de políticas, juntamente com dois colegas de seu departamento e um do Centro Johns Hopkins para um Futuro Habita¡vel , voltado para formuladores de políticas e empregadores e intitulado " Para Salvaguardar a Cadeia de Suprimento de Alimentos dos EUA Durante a Pandemia COVID-19, Precisamos proteger os trabalhadores agra­colas e de alimentos. "No relatório, eles descrevem etapas para ajudar a proteger os trabalhadores, não apenas das fa¡bricas de processamento de carne, mas também das instalações de distribuição de alimentos, fazendas e em qualquer lugar da cadeia de suprimento de alimentos.

O documento descreve uma abordagem em quatro frentes, que inclui blindagem, teste, rastreamento e tratamento. "Esperamos que, com base na ciaªncia, possamos fornecer recomendações que sirvam como um roteiro para a mudança", diz Nachman.

As recomendações de blindagem incluem conselhos para reconfigurar o ambiente de trabalho, instalar barreiras físicas entre os trabalhadores sempre que possí­vel e escalonar os hora¡rios de chegada, partida e intervalo. Isso pode exigir a diminuição da velocidade das linhas para acomodar as sugestaµes. "a‰ prova¡vel que os impactos variem de acordo com a instalação e o animal que estãosendo processado", diz Nachman. "Embora provavelmente não resulte em abate em massa de animais, épossí­vel que as reduções nas velocidades das linhas limitem o processamento e resultem em acaºmulos de processamento de animais em menor escala".

No que diz respeito aos testes, o documento incentiva os empregadores a garantir testes frequentes e triagem suplementar, como verificações de temperatura. Isso leva a s diretrizes de rastreamento, que sugerem que os empregadores cooperem com as agaªncias locais de saúde para ajudar a evitar propagação adicional.

A parte final do artigo - tratar - visa garantir que os trabalhadores recebam assistaªncia médica adequada, isolamento e pagamento de quarentena. Isso inclui políticas flexa­veis de licena§a médica e monitoramento conta­nuo.

O CLF recentemente desenvolveu e distribuiu uma pesquisa, supervisionada por Roni Neff , que tem como alvo os pra³prios trabalhadores e foi projetada para examinar pontos em comum e diferenças nos vários setores do processamento e produção de alimentos. Neff, diretor do programa de sustentabilidade alimentar e saúde pública do centro, enviou-o a 4.000 trabalhadores de todo o sistema alimentar emnívelnacional. Isso incluira¡ a produção de alimentos (agricultura e pesca); processamento (carne e latica­nios); distribuição (caminhaµes e armazenagem); varejo de alimentos; restaurantes; e atéprogramas de assistaªncia alimentar, como despensas e merenda escolar.

"Uma das coisas em que pensamos muito aqui écomo vocêtorna os sistemas alimentares mais resistentes a desastres", diz Neff. "A COVID éapenas uma das muitas em nosso futuro. Como podemos garantir que os trabalhadores estejam protegidos e também protegemos o sistema em geral?"

Neff espera que, coletando informações e compartilhando os resultados com o paºblico e as pessoas em posição de efetuarmudanças, a pesquisa faz a diferença. "Na medida em que podemos ajudar a mudar as políticas e as abordagens empregadoras em relação a  segurança dos trabalhadores e atender a outras necessidades, éaa­ que nos encaixamos", explica ela.

"UMA DAS COISAS EM QUE PENSAMOS MUITO AQUI a‰ COMO VOCaŠ TORNA OS SISTEMAS ALIMENTARES MAIS RESISTENTES A DESASTRES. O COVID a‰ APENAS UM DOS MUITOS EM NOSSO FUTURO. COMO GARANTIMOS QUE OS TRABALHADORES ESTaƒO PROTEGIDOS E TAMBa‰M PROTEGEM O SISTEMA EM GERAL?"

Roni Neff
Centro para um futuro habita¡vel

"Independentemente do COVID, estamos preocupados hálgum tempo com a dependaªncia geral de nosso suprimento de comida dos trabalhadores que fazem isso acontecer", diz ela. "As empresas não são criadas adequadamente para proteger os trabalhadores em situações como a pandemia".

A história e a ciência comportamental mostraram que grandesmudanças de comportamento ocorrem frequentemente quando os consumidores são forçados a sair de suas normas. Um receio em relação a  produção de carne, juntamente com o surgimento de alternativas de protea­nas como o Burger Impossí­vel, iniciara¡ uma revolução sem carne? "Procuramos alcana§ar aqueles que estãoabertos a serem alcana§ados", diz Neff. "Em um momento como esse, o número de pessoas abertas para fazer uma mudança pode estar aumentando."

A colega de Neff, CLF, Becky Ramsing, diretora saªnior de programas para comunidades de alimentos e saúde pública, traz mais uma melhoria na segurança dos trabalhadores: reduzir a demanda por carne. "Os consumidores reagem ao seu ambiente alimentar", diz ela. "Nossas mensagens precisam ser relevantes para eles. Tentamos entender onde estãoos consumidores e fornecer ideias fa¡ceis de implementar e que fazem sentido culturalmente".

Em seu trabalho dia¡rio, Ramsing se concentra em uma variedade de pontos de vista para ajudar a mudar os hábitos de consumo de carne, incluindo seu impacto na saúde e no meio ambiente. Altas quantidades de consumo de carne vermelha e processada, por exemplo, podem levar ao diabetes, certos tipos de câncer e doenças carda­acas. No lado ambiental, a indústria requer considera¡vel uso de águae terra - em comparação com alimentos a  base de plantas - esgotando os recursos necessa¡rios e aumentando os na­veis de poluentes. A pandemia traz outras oportunidades para educar o paºblico sobre as consequaªncias da produção de carne, incluindo a saúde dos trabalhadores.

Ramsing aconselha a campanha do Meatless Monday , lana§ada em 2003, que tem como objetivo transmitir que uma simples mudança pode fazer uma grande diferença. "A segunda-feira sem carne éuma das poucas iniciativas voltadas para o consumidor com as quais estamos envolvidos no CLF para ajudar as pessoas a tomar melhores decisaµes em torno do consumo de alimentos", diz ela.

Educar as pessoas sobre por que elas deveriam considerarmudanças como o Meatless Monday pode ser um trabalho diferenciado, diz Ramsing. "Vocaª não pode simplesmente dizer a s pessoas que muita carne faz mal a elas e ao meio ambiente", explica ela. "Se vocêpuder demonstrar que as pessoas se sentira£o melhor reduzindo o consumo de carne, éisso que as levara¡ atéla¡. Sessenta por cento das pessoas reduzem sua ingestãode carne por motivos de saúde, mesmo aqueles que estãocientes dos impactos ambientais da carne".

A esperana§a éque uma variedade de abordagens possa ajudar a mudar a agulha da segurança dos trabalhadores do setor alimenta­cio. Segundo os especialistas, a maior barreira que todos enfrentam écomo transformar suas mensagens em ação. Obter adesão de consumidores, empregadores e formuladores de políticas éuma tarefa difa­cil. Enquanto Nachman ajudou a promovermudanças legislativas nos sistemas alimentares, este éseu primeiro projeto voltado para a saúde dos trabalhadores do sistema alimentar.

"Quando vocêpode vincular tudo a  segurança alimentar, chama a atenção dos americanos", diz Silbergeld. "Este tem sido sempre o caso."

Nachman espera que, falando sobre a fragilidade da cadeia de suprimento de alimentos, o paºblico se preocupe o suficiente para fazermudanças significativas. "Estou mais preocupado com os trabalhadores que não tem escolha a não ser estar na linha de frente", diz ele. "Mas nem todo mundo pensa assim. Ao demonstrar que toda a cadeia alimentar pode entrar em colapso devido a um colapso ao longo da linha, as pessoas podem estar inclinadas a se importar".

 

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