Saúde

Contato anterior com outros tipos de coronava­rus influencia gravidade da covid-19, sugere estudo
Forma severa da covid-19 atinge mais idosos que jovens, o que pode ser devido a  reatividade cruzada com outros va­rus da fama­lia, que causam o resfriado comum
Por Marcelo Canquerino - 10/08/2020


Hista³rico de exposições de cada pessoa a outros tipos de coronava­rus pode influenciar na severidade da covid-19 osFoto: Pixabay
 
Uma pesquisa internacional com participação de cientistas da USP analisou o possí­vel impacto no grau de severidade da covid-19 do hista³rico de infecções causadas por coronava­rus endaªmicos osoutras espanãcies de coronava­rus, que emsua grande maioria causam apenas resfriados. Uma das possibilidades levantadas éde que a exposição prévia aos outros coronava­rus provoque uma reatividade cruzada com o SARS-CoV-2, va­rus causador da covid-19, e que esta pode ser benanãfica ou prejudicial dependendo do número de exposições, o que estãorelacionado a  idade. Assim, pacientes mais velhos tenderiam a ter uma forma mais grave da doença do que os mais jovens. Os resultados do artigo, que ainda estãoem revisão, estãodisponí­veis na plataforma MedRxiV (preprint).

De acordo com Daniel Santa Cruz Damineli, pesquisador na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) que atua na área de Biologia Computacional, a ideia central das investigações era entender por que os coronava­rus endaªmicos atacam mais a população infantil e menos as pessoas mais velhas, e com o va­rus da covid-19 acontece o contra¡rio. “A população poderia ter uma suscetibilidade ao novo coronava­rus diferente de acordo com a idade e quera­amos explorar o porquaªâ€, contou ao Jornal da USP.

O estudo foi feito no Departamento de Pediatria, dentro do Laborata³rio de Gena´mica Pedia¡trica, que écoordenado pelo professor Carlos Alberto Moreira Filho, da FMUSP, em colaboração com o Instituto de Matema¡tica e Estata­stica (IME) da USP.

Para buscar respostas, os cientistas simularam uma equação que descreve a severidade da covid-19 de acordo com a exposição a infecções causadas por coronava­rus endaªmicos. Os dados que alimentaram o modelo são depaíses da Unia£o Europeia e do Reino Unido.

Os resultados mostraram que a heterogeneidade nos hista³ricos de exposição individual a coronava­rus endaªmicos consegue explicar os padraµes de idade e hospitalizações causados pela covid-19. Uma das hipa³teses levantadas éde que as primeiras infecções com outros tipos de coronava­rus conferem uma proteção inicial ao SARS-CoV-2, porque ambos os va­rus possuem similaridades em protea­nas estruturais. Essa proteção, conhecida como reatividade cruzada ou heterota­pica, que acontece quando um indiva­duo responde a um pata³geno com memória imunola³gica de outro, pode ser malanãfica ao longo do tempo porque o nosso organismo comea§a a especializar a resposta imune para os coronava­rus endaªmicos, o que dificultaria o combate ao va­rus da covid-19.

A relação com a idade baseia-se na probabilidade de pessoas mais velhas já terem tido mais contato com diversos outros tipos de coronava­rus. “Isso poderia tanto conferir uma proteção inicial como levar a uma piora conforme vocêfica mais velho”, detalhou Damineli. Uma criana§a, por exemplo, que teve pouco contato com coronava­rus endaªmicos pode desenvolver uma resposta heterota­pica benanãfica quando exposta ao va­rus da covid-19, o que faria a doença menos severa.

Outro resultado apontado pelo modelo éa diferença na severidade da covid-19 dentro da própria população infantil. Segundo o pesquisador, fazendo-se comparações entre a população pedia¡trica, os mais jovens tem uma severidade ligeiramente maior ao SARS-CoV-2. Isso poderia ser explicado pelo fato de os infantes não terem tido contato com os coronava­rus endaªmicos, que iriam conferir uma proteção inicial, atravanãs da reatividade cruzada, ao va­rus da covid-19. “Esse dado mostra uma caracterí­stica interessante do modelo: não éum perfil monota´nico, pois nem sempre ele aumenta. Ha¡ uma queda inicial e depois uma piora bem grande com a idade”, explicou.

Hipa³tese para o aumento da severidade
 
A reatividade cruzada éum mecanismo complexo do sistema imunológico que nem
sempre pode ser benanãfico. “Nãoquer dizer que a reatividade cruzada protege, ela
apenas reage, e essa reação pode ser pior, inclusive. No modelo que desenvolvemos, a
ideia éque ela éinicialmente melhor, se háuma exposição ou poucas, e vai piorando
porque vocêvai refinando e deixando a resposta imune mais especa­fica para os outros
tipos de coronava­rus”, explicou Daniel Santa Cruz Damineli osFoto: Pixabay
 
O mecanismo de piora da reatividade cruzada não estãocontido no modelo, entretanto Damineli explica que existe uma hipa³tese, levantada pelos pesquisadores, para explicar o fena´meno.

Essa suposição estãorelacionada a um artifa­cio para sabotar o sistema imune: o ADE (Antibody-dependent enhancement), sigla para potenciação dependente de anticorpos. O que acontece éque a imunidade contra um subtipo de va­rus acaba atrapalhando a defesa contra outro subtipo. Neste caso, a defesa contra coronava­rus endaªmicos, que fica mais especializada e refinada com o tempo, atrapalharia o sistema imune no momento de montar uma reação contra o va­rus da covid-19. “Se vocêtem um monte de anticorpos não neutralizantes cobrindo o va­rus, vocêcria uma forma nova do va­rus infectar outras células”, explicou o pesquisador. Esse mecanismo já éconhecido para SARS, MERS e dengue, por exemplo.

Com esta pesquisa, os cientistas chamam atenção para a necessidade de se estudar mais detalhadamente a reatividade cruzada. “Precisamos entender como anticorpos que foram desenvolvidos ao coronava­rus endaªmicos reagem ao SARS-CoV-2. Se não entendermos isso, podemos estar perdendo um mecanismo que explica grande parte do que estãoacontecendo na pandemia”, finalizou Damineli.

A pesquisa Potential impact of individual exposure histories to endemic human coronaviruses on age-dependence in severity of COVID-19, dispona­vel em preprint, já estãopassando pela revisão por pares para ser publicada.

 

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