Casos graves e fatais de covid-19 em criana§as são muito raros. Assim, o caso de uma menina de onze anos de idade, sem problemas de saúde, mas que foi internada em estado grave e morreu devido a complicações causadas pela doena§a, foi analisado em detalhes por médicos do Hospital das Cla­nicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). O estudo relatou, pela primeira vez, a presença departículas do va­rus da doença em células musculares carda­acas, determinando uma relação causal entre a covid-19 e a sa­ndrome inflamata³ria multissistemica pedia¡trica (SIM-P), um processo inflamata³rio grave que pode afetar diversos órgãos, inclusive o coração. Os resultados do estudo, que contribui para entender os efeitos da doena§a, são descritos em artigo publicado na revista médica The Lancet Child & Adolescent Health. A SIM-P começou a ser relatada a partir de abril deste ano por médicos da Europa e dos Estados Unidos. “A sa­ndrome éum quadro inflamata³rio sistemico grave, identificado em criana§as e adolescentes, que pode atingir vários órgãos, como o trato gastrointestinal, pulmaµes, pele e sistema nervoso central, e provocar disfunção carda­aca em casos mais graves”, afirma Marisa Dolhnikoff, professora da FMUSP e primeira autora do trabalho. “Ainda não havia confirmação de que a SIM-P fosse causada pelo va­rus SARS-CoV-2. O estudo descreveu as alterações associadas a  sa­ndrome e buscou também determinar se existe de fato uma relação direta entre a infecção pelo va­rus e o quadro grave de disfunção e falaªncia carda­aca.”

A criana§a não apresentava doenças previamente existentes, e foi levada ao pronto-socorro do Instituto da Criana§a do HC em estado grave, apresentando desconforto respirata³rio, gripe, febre alta persistente e dor abdominal. “Apa³s a entrada na UTI, o quadro evoluiu para disfunção carda­aca e choque cardiogaªnico em 28 horas, com necessidade de ventilação meca¢nica pulmonar e suporte de medicações para o sistema cardiovascular”, relata a médica Juliana Ferranti, que participou do estudo. “Foi uma evolução grave da covid-19, muito rara dentro da pediatria”. A confirmação da doença foi feita por um teste de PCR realizado após a morte da paciente.

Durante o atendimento, a paciente foi submetida a exames de sangue, radiografia e tomografia de ta³rax. “Devido a  evolução cla­nica, que já sugeria um quadro de miocardite e choque cardiogaªnico, também foram feitos eletrocardiograma [ECG] e ecocardiograma [ECO] para avaliar a função carda­aca”, relata Juliana. “Os exames indicaram um processo inflamata³rio importante, com aumento de marcadores inflamata³rios, e a evolução cla­nica, associada aos resultados do ECG e ECO, mostrava comprometimento severo do funcionamento do coração.”

Apa³s a morte da paciente, para avaliar as alterações teciduais e os possa­veis mecanismos fisiopatola³gicos associados a  SIM-P, foi realizada a análise microsca³pica de tecido coletado de vários órgãos, atravanãs da auta³psia minimamente invasiva guiada por ultrassom. “Nesse manãtodo, as amostras de tecido são coletadas por agulhas direcionadas aos diferentes órgãos, usando a imagem do ultrassom como guia. Tambanãm foi feita a pesquisa de RNA viral em pulmaµes e coração atravanãs de exames moleculares (PCR)”, descreve a professora Marisa. “Além disso, o tecido carda­aco foi analisado por microscopia eletra´nica, manãtodo que permite a observação do tecido com aumento da ordem de centenas a milhares de vezes, possibilitando a avaliação de detalhes celulares e a identificação da parta­cula viral.”

A análise microsca³pica dos pulmaµes mostrou um quadro leve de pneumonia, causada pelo va­rus SARS-CoV-2, e a presença de microtrombose pulmonar. “Essa obstrução dos vasos sangua­neos do pulma£o éencontrada em um grande número de pacientes com quadro grave de covid-19”, ressalta Marisa. “Neste caso, entretanto, o órgão mais comprometido pela doença foi o coração, que mostrava uma importante inflamação [miocardite], com necrose e perda de fibras carda­acas, o que levou a  insuficiência carda­aca e a  morte da paciente.”

O exame de PCR foi positivo tanto nos pulmaµes como no coração, indicando a presença do va­rus nesses órgãos. “A microscopia eletra´nica evidencioupartículas virais em células do coração, determinando uma relação direta entre a lesão carda­aca causada pelo va­rus SARS-CoV-2 e o quadro de miocardite e disfunção carda­aca”, destaca a professora. “Pela primeira vez, o estudo revelou a presença do va­rus em células musculares carda­acas (cardiomia³citos) de um paciente com covid-19. Além disso, o va­rus também foi identificado em outras partes do coração, como células endoteliais, fibroblastos e células inflamata³rias.”

De acordo com Marisa, apesar da SIM-P ser bastante rara, com cerca de 1.000 casos registrados em todo o mundo, a comunidade médica alerta para a necessidade de a sa­ndrome ser rapidamente reconhecida e tratada. “Neste estudo, a evidência de lesão carda­aca causada diretamente pelo va­rus no mioca¡rdio, levando a  inflamação, necrose e falaªncia do coração, confirma que a SIM-P éuma das formas possa­veis de apresentação da covid-19 em criana§as, e que o coração pode ser o a³rga£o-alvo nesses casos”, aponta. “Os estudos atéo momento mostram que com a internação e o tratamento, a grande maioria das criana§as com SIM-P tem uma evolução favora¡vel e se recupera. Entretanto, os achados deste trabalho alertam para a possibilidade de sequelas carda­acas nessas criana§as, que sera£o acompanhadas.”

“Agora, pacientes com quadros sugestivos de miocardite e suspeita de covid-19 podem receber tratamentos com foco na possí­vel lesão carda­aca que o va­rus pode causar”, conclui Juliana. O estudo teve a participação dos departamentos de Patologia, Pediatria, do Instituto da Criana§a e da Gastroenterologia da FMUSP. A investigação post-mortem foi realizada pelo Grupo de Auta³psia Minimamente Invasiva do Departamento de Patologia da FMUSP, que inclui os professores Marisa Dolhnikoff, Paulo Hila¡rio Nascimento Saldiva, Luiz Fernando Ferraz da Silva, Thais Mauad e os pesquisadores Amaro Nunes Duarte-Neto, Renata Aparecida de Almeida Monteiro e Khallil Taverna Chaim.

A professora Elia Garcia Caldini, responsável pelo Centro Multiusua¡rio de Microscopia Eletra´nica do HC, conduziu a parte de microscopia eletra´nica do estudo. “A microscopia eletra´nica éimportante para entender a fisiopatologia da doença porque permite localizar o va­rus e, ao mesmo tempo, avaliar em profundidade o dano celular”, afirma. Os médicos pesquisadores do Instituto da Criana§a foram responsa¡veis pela assistaªncia a  paciente, pela avaliação dos dados clínicos e laboratoriais e pela avaliação gena´mica, com a participação dos professores Magda Carneiro-Sampaio, Werther Brunow de Carvalho e dos médicos Juliana Ferreira Ferranti, Nata¡lia Viu Degaspare, Artur Figueiredo Delgado, Carolina Montanari Fiorita, Gabriela Nunes Leal, Regina Maria Rodrigues. O estudo molecular (PCR) foi conduzido pelo professor Joa£o Renato Rebello Pinho e a pesquisadora Michele Soares Gomes-Gouvaªa, do Departamento de Gastroenterologia.