Saúde

'Jangadas' nos neura´nios são chave para entender ação de antidepressivos
Na­vel de colesterol na membrana celular determina estrutura e funcionamento de protea­na que serve de alvo para antidepressivos
Por Júlio Bernardes - 15/03/2021


Doma­nio paºblico

Regiaµes especializadas na membrana das células do sistema nervoso, ricas em colesterol e conhecidas como jangadas lipa­dicas oslipid rafts, em inglês ospodem ser a chave para entender a ação dos medicamentos antidepressivos. Em um estudo com participação da Faculdade de Medicina de Ribeira£o Preto (FMRP) da USP, cientistas verificaram que onívelde colesterol nessas regiaµes da membrana celular determina a estrutura e o funcionamento de um receptor, uma protea­na que serve de alvo para os antidepressivos nos neura´nios. A pesquisa édescrita em artigo publicado na revista cienta­fica Cell.

“Para o estudo foram utilizadas diversas classes de antidepressivos, incluindo drogas cla¡ssicas, como a fluoxetina e a imipramina, e os antidepressivos de ação rápida, descobertos mais recentemente, como por exemplo a ketamina”, conta o pesquisador Cassiano Ricardo Alves Faria Diniz, que realiza pa³s-doutoramento na FMRP e participou do trabalho. “A partir de abordagens in vitro, em laboratório, e in silico, usando simulações computacionais de alta performance, verificou-se que nas jangadas lipa­dicas os antidepressivos se ligam diretamente ao receptor TRKB, sendo assim capazes de modular a atividade do receptor ao passo que estabilizam a sua estrutura tridimensional.”

“A protea­na TRKB, quando ativada, conduz a uma cascata de vias intracelulares responsa¡veis, em linhas gerais, pelo refinamento e o reforço de conexões sina¡pticas, ou seja, entre as células do sistema nervoso”, explica Faria Diniz. “A ação do TRKB regula então a atividade de regiaµes especa­ficas do sistema nervoso central, como por exemplo o hipocampo e o cortex pré-frontal, que são envolvidas com a modulação das nossas respostas comportamentais ao estresse.”

Os dados obtidos na pesquisa indicam que o TRKB pode assumir diferentes conformações, dependendo da quantidade de colesterol na membrana. “Os antidepressivos, por sua vez, estabilizam a conformação do receptor num estado mais propenso a  ativação”, relata o pesquisador. “Observamos experimentalmente que a mesma alteração na regia£o do TRKB que prejudicou a interação deste com a fluoxetina, determinada por simulação computacional, reduziu também a interação do TRKB com vários outros antidepressivos in vitro.”

Mecanismo de ação

Essa mesma alteração do TRKB, quando presente em camundongos, torna os animais menos responsivos aos antidepressivos, sejam eles de ação rápida ou lenta. “Portanto, os experimentos in vivo [em animais] corroboram os dados in vitro e in silico ao sugerir que, de fato, a potencial ação direta sobre o TRKB éimportante para a ação dos antidepressivos”, destaca Cassiano Diniz, “mesmo quando o efeito destes são colocados a  prova dentro de organismos biola³gicos complexos”.

De acordo com o pesquisador da FMRP, acreditava-se que a diferença no mecanismo de ação prima¡rio entre drogas cla¡ssicas e novas seria a responsável pelas diferenças na lataªncia de efeito, ou seja, no tempo necessa¡rio para os efeitos clínicos serem detectados. “O resultado do nosso trabalho nos leva a crer que, além dos mecanismos prima¡rios, a atuação dos antidepressivos depende de uma ação direta sobre o TRKB”, ressalta. “A lataªncia para o efeito seria decorrente da demora pelos antidepressivos cla¡ssicos, mas não por novos compostos como a ketamina, em atingir concentrações suficientes no sistema nervoso central para agir sobre o TRKB.”

As conclusaµes do estudo podera£o direcionar o desenvolvimento de novas moléculas capazes de se ligar ao TRKB com maior afinidade, modular sua resposta e ao mesmo tempo serem capazes de ultrapassar rapidamente a barreira hematoencefa¡lica, avalia o pesquisador. A barreira hematoencefa¡lica éuma proteção natural do corpo, espanãcie de “corda£o de isolamento” que impede que va­rus, fungos, bactanãrias e outros corpos estranhos cheguem ao sistema nervoso central.

“Lembrando que milhões de pessoas ao redor do mundo fazem uso dia¡rio de antidepressivos, e que essas drogas são usadas no tratamento de diversos distúrbios psiquia¡tricos, além de serem importantes também para o tratamento de outras doena§as, como por exemplo a dor crônica”, afirma. “Assim, compreender melhor o mecanismo de ação destas drogas facilitaria o desenvolvimento de novas moléculas com melhor perfil terapaªutico e, portanto, éde grande interesse da cla­nica médica.”


O estudo foi liderado por Pla­nio Casarotto e Caroline Biojone, atualmente contratados como pesquisadores no grupo do professor Eero Castranãn, da Universidade de Helsinki (Finla¢ndia), ambos egressos do Departamento de Farmacologia da FMRP e ex-bolsistas da Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp), incluindo um esta¡gio na Universidade de Helsinki pelo programa BEPE. O trabalho contou com a colaboração de Faria Diniz, também do Departamento de Farmacologia da FMRP, quando em esta¡gio pelo programa BEPE (via bolsa de pa³s-doutorado Fapesp).

Tambanãm participaram do estudo pesquisadores das Universidades de Freiburg (Alemanha) e Bergen (Noruega), além do Departamento de Fa­sica da Universidade de Helsinki, responsável pela modelagem molecular. O artigo Antidepressant drugs act by directly binding to TRKB neurotrophin receptors foi publicado na revista cienta­fica Cell em 4 de mara§o.

 

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