Saúde

Coronava­rus no cérebro: Drogas que bloqueiam receptor poderiam prevenir ou tratar problemas neurola³gicos
Grupo propaµe que invasão do coronava­rus no Sistema Nervoso Central envolve a ativaa§a£o do receptor P2X7 e que, portanto, medicamentos que o bloqueiam podem ser estratanãgia promissora
Por Luiza Caires - 18/03/2021


Reprodução da Imagem

Sintomas neurola³gicos tem sido relatados em pacientes com covid-19 e crescem as evidaªncias de que o coronava­rus tem a capacidade de neuroinvasão, ou seja, de entrar no sistema nervoso central e infectar suas células. Um artigo de pesquisadores da USP e colaboradores no peria³dico Molecular Psychiatry discute possa­veis mecanismos para que os va­rus acessem o sistema nervoso e os efeitos inflamata³rios que provocam no cérebro, sugerindo que a ativação exagerada de um receptor celular chamado P2X7R estãoassociada a essa “tempestade inflamata³ria”.

Coordenador da pesquisa, o professor do Instituto de Quí­mica (IQ) da USP Henning Ulrich explica que a infecção por sars-cov-2 induz a uma condição de neuroinflamação, e que “a inflamação crônica no cérebro éuma caracterí­stica em doenças psiquia¡tricas como depressão e também neurodegenerativas, como a doença de Parkinson”.

Deste modo, os pacientes com estes distúrbios, que estãoassociados a  ativação de mecanismos neuroimunes, podem ser mais suscetíveis a desenvolver condições graves do sistema nervoso central pela covid-19. Drogas para diminuir esta ativação, portanto, poderiam ser um caminho para evitar os danos da doença no cérebro.

O cérebro estãologo ali

A primeira pergunta que podemos fazer anã: como o coronava­rus chega atéo cérebro?. Este éum processo intrincado para ser descrito, mas que na prática pode ocorrer relativamente rápido.

“Estudos após a morte indicam que o va­rus écapaz de infectar células do cérebro, uma vez que ele já foi identificado no tecido cerebral de pacientes infectados com o sars-cov-2”, diz Deidiane Elisa Ribeiro, que realiza pa³s-doutorado no IQ e que divide a primeira autoria do trabalho com a também pesquisadora em pa³s-doutorado agatha Oliveira Giacomelli. Ela explica que, para isso, o va­rus precisa ultrapassar uma proteção que envolve nosso encanãfalo chamada barreira hematoencefa¡lica, e hálgumas hipa³teses sobre como ele consegue fazer isso.

Para comea§ar, o va­rus entra no corpo principalmente pelo nariz, e chega atéos pulmaµes. E para infectar qualquer canãlula, ele precisa se ligar a protea­nas que ficam nas membranas das células, chamadas receptores. Mas énecessa¡rio que sejam os receptores certos. Nos pulmaµes, ele utiliza tanto receptores TMPRSS2 como ACE2.

Apa³s infectar algumas células do pulma£o, e se reproduzir usando a maquinaria celular (já que o va­rus não possui uma), o sars-cov-2 se espalha pelo órgão rapidamente. As células que foram infectadas liberam protea­nas pra³-inflamata³rias e moléculas de ATP (aquela molanãcula mais conhecida por ser a reserva de energia nas células). Quando estãoem grande quantidade no meio externo a  canãlula, o ATP causa danos celulares.

O ATP também ativa receptores P2X7 em células pulmonares e em macra³fagos oscélulas de defesa que fagocitam (englobam e destroem) agentes estranhos como va­rus. Isso faz com que os macra³fagos aumentem a liberação das principais substâncias do processo inflamata³rio, as citocinas, além de quimiocinas ose mais ATP, num ciclo que se retroalimenta induzindo a  famosa “tempestade de citocinas”. Va¡rios processos fisiola³gicos ficam desregulados em razãodisso.

O ATP também ativa receptores P2X7 em células pulmonares em e macra³fagos oscélulas de defesa que fagocitam (englobam e destroem) agentes estranhos como va­rus. Isso faz com que os macra³fagos aumentem a liberação das principais substâncias do processo inflamata³rio, as citocinas, além de quimiocinas ose mais ATP, num ciclo que se retroalimenta induzindo a  famosa “tempestade de citocinas”. Va¡rios processos fisiola³gicos ficam desregulados em razãodisso.

Pela circulação, tanto o va­rus como os fatores pra³-inflamata³rios liberados chegam a outros tecidos do corpo, inclusive ao cérebro. Para isso, ele infecta as células endoteliais da barreira hematoencefa¡lica, além de infectar astra³citos e neura´nios adjacentes aos vasos sangua­neos ligando-se aos receptores ACE2 destas células.

Durante a infecção, a barreira hematoencefa¡lica fica mais permea¡vel e deixa que passem para o tecido cerebral citocinas (moléculas pra³-inflamata³rias) e células de defesas como leuca³citos. O problema éque muitos desses leuca³citos estãoinfectados, recheados de va­rus, e agem como cavalos de tra³ia, levando os va­rus para dentro do sistema nervoso central. Esta¡ aa­ uma das rotas do sars-cov-2 atéo cérebro, mas háoutra possí­vel, que também comea§a no nariz.

Na cavidade nasal, o va­rus infecta e se multiplica em células sustentaculares, usando como acesso, novamente, os receptores TMPRSS2 e ACE2. Essas células também expressam os receptores P2X7 e iniciam um ciclo semelhante ao já descrito.

Finalmente, o sars-cov-2 também pode infectar neura´nios sensoriais olfativos, e usar suas conexões para ingressar no sistema nervoso central.

Uma vez no cérebro, o va­rus pode alterar funções cerebrais tanto infectando neura´nios e células da glia (outras células do sistema nervoso que tem uma sanãrie de funções), quanto pelos efeitos que vão da tempestade de citocinas. O resultado éum processo inflamata³rio caracterizado por hiperativação das células da glia. Ainda, a tempestade de citocinas induz a  formação de coa¡gulos e aumenta a permeabilidade de pequenos vasos sangua­neos, os capilares, podendo resultar em um acidente vascular cerebral, o AVC.

A importa¢ncia do receptor P2X7

Na fisiologia humana, alguns esta­mulos podem levar a um ciclo que reforça o desequila­brio. Ciclos assim são chamados de feedback positivo, ou retroalimentação positiva. O mecanismo envolvido nos prejua­zos causados pelo coronava­rus no tecido cerebral pode ser caracterizado como um feedback positivo, desencadeando uma sanãrie de eventos danosos que se intensificam mutuamente.

Primeiramente, o estresse celular induz a  liberação daquelas substâncias pra³-inflamata³rias, as citocinas, e do ATP. O ATP, por sua vez, ativa os receptores P2X7, que no cérebro estãopresentes principalmente em células da glia. A primeira éa micra³glia, que no sistema nervoso central tem, entre outros papanãis, a função de defesa. Outro tipo de células da glia que tem receptores P2X7 são os astra³citos. Com os receptores P2X7 ativados, aumenta a entrada de ca¡lcio nestas células, o que, por sua vez, aumenta a liberação de um neurotransmissor chamado glutamato. O glutamato ativa outros receptores presentes nos astra³citos e nos terminais nervosos dos neura´nios oso que também abre as portas para entrada de ca¡lcio nessas células, resultando, de novo, em liberação de glutamato e de mais ATP. “O ATP foi sugerido hápouco tempo como um neurotransmissor”, lembra Deidiane Ribeiro, “então esta éuma proposta relativamente recente, e tem se mostrado que este sistema tem várias funções em diversas patologias”.

A partir daa­, o ca¡lcio que ingressa nos neura´nios desencadeia outros mecanismos que resultam na produção de a³xido na­trico, entrando em reações que, por sua vez, geram as chamadas espanãcies reativas de oxigaªnio, mais conhecidas como radicais livres, extremamente danosos a s células, desde as membranas celulares atéo pra³prio DNA. “O principal efeito disso seria a morte de neura´nios”, explica Deidiane Ribeiro.

Conforme o ca¡lcio entra na canãlula pela ativação do receptor P2X7, o pota¡ssio sai dela. Nas micra³glias, esse pota¡ssio pode desencadear a ativação de um inflamassoma (complexo de protea­nas que éum sensor da inflamação) chamado NLRP3. “O inflamassoma éuma espanãcie de sensor de perigo”, define o professor Ulrich. O NLRP3 então induz a uma cascata de eventos que, ao final, resulta no agravamento do processo inflamata³rio.

A hiperativação do receptor P2X7 e a estimulação do inflamassoma NLRP3 são observadas em pacientes com desordens psiquia¡tricas e doenças neurodegenerativas, como o Parkinson. Isso, postulam os pesquisadores, poderia aumentar tanto a suscetibilidade destes pacientes a  infecção pelo sars-cov-2 quanto a gravidade com que a covid-19 se manifesta neles. Além disso, a infecção pelo sars-cov-2 em si poderia desencadear ou agravar esses transtornos cerebrais.

Assim, argumentam, inibir a expressão exagerada do receptor P2X7 e também do inflamassoma NLRP3 poderiam ser estratanãgias promissoras para prevenir ou tratar complicações psiquia¡tricas ou doenças neurodegenerativas associadas a  covid-19.

Alto impacto

O professor Henning Ulrich destaca o reconhecimento do trabalho dos pesquisadores, publicado numa revista cienta­fica de alto impacto pertencente ao grupo Nature. “Temos poucos trabalhos brasileiros nesta revista, que também cobra uma taxa de mais de 4 mil da³lares para que os artigos fiquem disponí­veis em acesso aberto. Devido a  importa¢ncia do nosso trabalho, reconhecida pelos editores, foi permitido que o artigo ficasse aberto sem que fosse cobrada esta taxa”, conta, ao ressaltar que este éo segundo artigo do seu grupo publicado no peria³dico desde o último ano.

Ulrich éo principal nome no Brasil na pesquisa de doenças psiquia¡tricas e neurodegenerativas e mecanismos de neurorregeneração envolvendo a chamada sinalização purinanãrgica, descoberta nos anos 1990, e de que participam os receptores purinanãrgicos, especialmente o P2X7, ativado pelo ATP.

“O que investigamos éo efeito danoso deste receptor na doença de Parkinson, em que estamos vendo caracteri­sticas similares ao que estamos propondo aqui para a covid, como a morte celular”, diz. E completa: “quando inibimos o receptor P2X7 em modelos animais, vemos tanto uma melhoria na função motora, afetada no Parkinson, como uma redução da morte neuronal, especificamente dos neura´nios dopaminanãrgicos, envolvidos nesta doena§a, além de uma diminuição da neuroinflamação, com a redução da ativação excessiva da glia, que émuito danosa no sistema nervoso”.

Henning Ulrich

O artigo Hyperactivation of P2X7 receptors as a culprit of COVID-19 neuropathology tem autoria de Deidiane Elisa Ribeiro (IQ) e agatha Oliveira-Giacomelli (IQ), com colaboração de Talita Glaser (IQ), Vanessa F. Arnaud-Sampaio (IQ), Roberta Andrejew (IQ), Luiz Dieckmann (Unifesp), Juliana Baranova (IQ), além da professora do IQ Claudiana Lameu, do professor Mariusz Z. Ratajczak (Universidade de Louisville, EUA) e do professor do IQ Henning Ulrich, que éo coordenador das pesquisas.

 

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