Saúde

Falta de melatonina na gravidez prejudica metabolismo da ma£e
Quadro pode causar diabete no futuro; realizado em ratas, estudo do Instituto de Ciências Biomédicas mostrou ainda que o horma´nio do sono tem papel vital para o pa¢ncreas retornar aos na­veis pré-gestacionais
Por Fabiana Mariz - 26/03/2021


Reprodução

Uma pesquisa realizada no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP demonstrou, pela primeira vez, de que forma a melatonina regula a sensibilidade a  insulina e a tolera¢ncia a  glicose durante a gravidez e no período pa³s-parto. O estudo foi feito em ratas e os resultados foram publicados em fevereiro na revista Journal of Pineal Research.

Melatonina éum horma´nio produzido pela gla¢ndula pineal, localizada no cérebro, e uma das suas funções principais éo controle dos ciclos do sono e da viga­lia. “Esse horma´nio, que éproduzido somente a  noite, tem acesso funcional a praticamente todos os sistemas fisiola³gicos”, explica ao Jornal da USP JoséCipolla Neto, professor do ICB e orientador do estudo. “Ela regula a atividade do sistema nervoso, tem um papel importante na regulação dos sistemas cardiovascular, imunológico e reprodutivo, por exemplo.”

A insulina éum horma´nio produzido pelo pa¢ncreas, responsável pela redução da glicose no sangue. Quando as células são resistentes, o organismo éincapaz de produzir a quantidade de insulina necessa¡ria para a manutenção do seu metabolismo normal. Já a tolera¢ncia a  glicose édefinida como a capacidade do corpo em manter os na­veis normais de açúcar no sangue.

Outro resultado importante mostrou que a melatonina também éresponsável por todo o remodelamento pancrea¡tico que acontece no organismo materno após a gestação.

Em uma gravidez sem ocorraªncias, a maioria dos tecidos metaba³licos aumenta a sua atividade para dar conta não são da ma£e, mas também do feto que estãoem desenvolvimento. Por isso, o pa¢ncreas passa por um processo de crescimento de tamanho, chamado hipertrofia, e de número de células, conhecido como hiperplasia. “Como consequaªncia, háum aumento na produção de insulina”, relata Patra­cia Rodrigues Lourena§o Gomes, fisioterapeuta e primeira autora do estudo. “Quando a gestante entra em trabalho de parto, hátodo um remodelamento desses tecidos, ou seja, eles retornam a s condições semelhantes ao período não grava­dico [anterior a  gravidez].” Se isso não ocorrer, a dedução dos cientistas éque ele vai continuar trabalhando excessivamente e, ao longo do tempo, pode entrar em falaªncia, causando diabete tipo 2.

“Pela primeira vez, se atribuiu um significado funcional ao incremento da produção de melatonina que ocorre naturalmente durante a gravidez”, destaca JoséCipolla Neto.

Experimentos

Estudos anteriores ofereceram três informações importantes para os cientistas. A primeira éque háum aumento progressivo de produção de melatonina do primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro trimestre da gestação, mas não se sabia o porquaª. A outra diz que o metabolismo materno se modifica para satisfazer não são o organismo materno, mas o do bebaª (ou dos bebaªs) em desenvolvimento. E a terceira fala que a melatonina tem uma ação metaba³lica importante, ou seja, regula a secreção e a ação da insulina, o dispaªndio energanãtico e a ingestãoalimentar.

Diante desses dados, Patra­cia decidiu olhar para o organismo das ratas durante a gestação: como estava o metabolismo de glicose na ausaªncia de melatonina e após a suplementação desse horma´nio, além de analisar a atividade do pa¢ncreas nessas duas situações.

A primeira etapa do trabalho foi selecionar ratas virgens (para não haver nenhum tipo de interferaªncia causada por gestações prévias), que foram divididas em quatro grupos experimentais. Um deles era o grupo controle. Nos outros três, os animais foram submetidos a  retirada da gla¢ndula pineal, processo conhecido como pinealectomia. Dentro dessa categoria, uma parte foi separada para o experimento. “A ideia era mimetizar uma pessoa que não produzia melatonina de forma sistemica, ou que trabalha em turnos e possui a produção de melatonina comprometida”, explica Patra­cia.

Nos outros dois, uma parte das ratas recebeu reposição fixa de melatonina e o outra, doses crescentes ao longo de toda a gravidez. A administração foi feita sempre durante a noite. “Toda essa suplementação foi feita durante 21 dias, que équanto dura a gestação em ratas, e mais 21 dias, que corresponde ao período da lactação”, esclarece a pesquisadora.

Metade das ratas de todos os grupos foi eutanasiada no momento do parto, ou seja, no 21º dia, e a outra metade, no 21º dia de lactação. Os cientistas extraa­ram um grupamento de células chamadas de ilhotas pancrea¡ticas. Dentre elas, estãoas células β (beta), responsa¡veis pela produção de insulina. Além disso, amostras de sangue também foram coletadas para a realização de análises metaba³licas. “Os ensaios, então, se concentraram no estudo da secreção de insulina, além da avaliação da capacidade de proliferação e morte dessas células β”, elucida Patra­cia .

Resultados

O primeiro resultado do estudo foi que a melatonina não interfere no peso da gestante, seja na sua ausaªncia ou na sua suplementação. Esses dados são importantes porque a gestação éum período em que a mulher ganha peso por conta do feto em formação.

O horma´nio do sono éo responsável por controlar a tolera¢ncia a  glicose e a resistência a  insulina. “Quando estamos com a glicose (também conhecida como glicemia) aumentada no sangue, esse estado funciona como um sensor para ativar a sa­ntese de secreção de insulina pelo pa¢ncreas. Se o animal étolerante a  glicose, significa que ele estãofuncionando muito bem”, elucida Patra­cia.

Se o pa¢ncreas não funciona bem durante a gestação, acontece a resistência a  insulina. “Os tecidos perifanãricos, como maºsculo-esquelanãtico, tecido adiposo branco, maºsculo carda­aco e fígado são responsivos a esse horma´nio. Isso quer dizer que quando tem insulina, esses tecidos entendem que eles precisam internalizar a glicose que estãono sangue, para que as células tenham combusta­vel para funcionar”, relata a pesquisadora. “Mas se o tecido da ma£e estiver muitosensívela  insulina, ele vai pegar toda a glicose do sistema para ela, não sobrando nada para o feto.”

Como a melatonina éo horma´nio que regula essa distribuição, os estudos mostraram que os animais pinealectomizados (e que, portanto, não produziam melatonina) não secretavam insulina da mesma maneira que o grupo controle e dos grupos que foram submetidos a  reposição enda³gena do horma´nio. Segundo Patra­cia, esses dados já sinalizaram que esse era um inda­cio de que o pa¢ncreas não funcionava em sua plenitude nesse período tão cra­tico, que éa gravidez.

Dando continuidade aos achados, os pesquisadores viram que essas mesmas ma£es submetidas a  cirurgia tiveram o remodelamento pancrea¡tico prejudicado. “Elas apresentaram um crescimento excessivo desse tecido em relação aos demais. Aparentemente, o pa¢ncreas tentou se remodelar logo no terceiro dia após o parto, mas no terceiro dia de lactação, observamos uma tendaªncia desse pa¢ncreas a continuar se proliferando”, esclarece a primeira autora. “Pode ser que, a longo prazo, esse tecido trabalhe tão exaustivamente que chegue a falhar em algum momento, causando a diabete tipo 2.”

Dormir a  noite faz bem

A melatonina comea§a a ser liberada no ini­cio da noite, quando cai a iluminação natural. Tendo em vista que a noite da Terra na primavera e no outono tem duração média de 12 horas, o pico da produção do horma´nio se da¡ entre 3 e 4 horas da madrugada. Depois disso, os na­veis va£o caindo e, quando acordamos, a melatonina já deixou de ser produzida. “Mas, claro, esses hora¡rios variam, dependendo das estações do ano e se um indiva­duo ématutino ou vespertino”, explica Cipolla. “O pico noturno vai acompanhar a fisiologia para a noite para o tipo da pessoa em particular.”

Cipolla ressalta que, na sociedade contempora¢nea, o ser humano leva a luz do dia para dentro de casa a  noite, como o crescente uso de aparelhos eletra´nicos (celulares, tablets e computadores). “Até300 anos atrás, não havia luz elanãtrica. Esse novo comportamento estãolevando a população a entrar em um estado patogaªnico chamado hipomelatoninemia, que éa redução da produção de melatonina pela gla¢ndula pineal”, alerta o professor.

“Da forma como estamos vivendo, nos colocamos em uma condição que bloqueia a nossa sa­ntese de melatonina e isso équase catastra³fico”, destaca Cipolla ao Jornal da USP. “Esse éum determinante importante de patologias encontradas em populações urbanas, como doenças metaba³licas, cardiovasculares e neurodegenerativas.”


Algumas ações bem simples podem minimizar os danos causados pelo uso conta­nuo de eletra´nicos a  noite. Existem programas que bloqueiam o comprimento de onda da luz azul, que éum dos causadores da hipomelatoninemia. Nos Estados Unidos, existem la¢mpadas especa­ficas para uso durante a noite.

Já com trabalhadores noturnos, que não podem trocar o tipo de iluminação pois precisam se manter concentrados no trabalho, não háo que fazer. “Eles sempre estara£o em dano fisiola³gico, por isso, a incidaªncia de doenças émuito maior nesses indiva­duos, além de a longevidade ser menor.”
 
Ingerir melatonina sintanãtica, alerta o professor, pode causar danos sanãrios a  saúde. “O indiva­duo pode atédormir, mas a viga­lia dele não vai ser adequada, o sistema cardiovascular não vai trabalhar direito, o metabolismo pode desenvolver problemas sera­ssimos, como resistência a  insulina e intolera¢ncia a  glicose. Lidar com melatonina não écoisa para amadores. Tem que ter um acompanhamento médico por trás dessa administração terapaªutica.”

Futuro

Patra­cia pretende continuar trabalhando com o tema mas, dessa vez, vai olhar para a programação genanãtica dos filhotes. “Sera¡ que esse momento de gestação tão crítico foi capaz de alterar, de reprogramar geneticamente as células para o aparecimento de doenças no futuro?”
 
Já o professor Cipolla, em sua linha de pesquisa, tem o interesse de fazer o uso terapaªutico de melatonina em mulheres gra¡vidas sauda¡veis. Na literatura, explica o professor,  já existe uma associação entre a redução da melatonina noturna na gestação com o aparecimento de diabetes grava­dico, pré-ecla¢mpsia (hipertensão arterial especa­fica da gravidez) e ecla¢mpsia (evolução da pré-ecla¢mpsia, que coloca em risco a vida da ma£e e do feto) .

Olhar para os fetos de ratos gerados em hipomelatoninemia também faz parte dos planos do grupo de pesquisa de Cipolla. Já existem evidaªncias de que um filhote de ma£e sem melatonina desenvolve diabete, tem dislipidemia (elevação de colesterol e triglicera­deos no plasma ou a diminuição dos na­veis de HDL que contribuem para a aterosclerose) e redução da função pancrea¡tica.

 Além disso, pode provocar alterações no desenvolvimento desse filhote, tais como retardo no processo de desenvolvimento (abertura vaginal, deiscaªncia do testa­culo, aparecimento de pelos, tamanho da orelha, abertura dos olhos etc.). “Esse animal seráanalisado sob todos os aspectos da fisiologia.”

Para finalizar, o pesquisador também estãodesenvolvendo um trabalho com filhos de ma£es que trabalharam a  noite durante a gravidez. “A nossa ideia écomparar essas criana§as com outras da mesma idade, em termos de desenvolvimento psicomotor, metaba³licos, cardiovasculares e estrutura do sono, por exemplo”, finaliza.

 

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