Saúde

Genes do sistema imune podem explicar a resistência e a suscetibilidade ao novo coronava­rus
Pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Canãlulas-Tronco analisou dados de 86 casais em que um desenvolveu a doença e outro não; genes candidatos podem abrir caminhos para entender os mecanismos de aa§a£o do sars-cov-2
Por Fabiana Mariz - 28/04/2021


Por que algumas pessoas não desenvolvem covid-19? Pesquisadores da USP, Unesp e do Grupo Fleury identificaram alguns genes do sistema imune humano que podem ajudar a entender esse mecanismo. Getty Images
 
Na busca por tentar compreender por que algumas pessoas não desenvolvem covid-19, pesquisadores da USP, Unesp e do Grupo Fleury identificaram alguns genes do sistema imune humano que podem ajudar a entender esse mecanismo.  Os genes candidatos são conhecidos como MICA e MICB e pertencem ao complexo MHC (complexo principal de histocompatibilidade, em portuguaªs), localizado no cromossomo 6. Essas moléculas já foram descritas em estudos anteriores e estãoassociadas com estresse celular, como câncer e infecções.

Apa³s comparar 86 casais em que um desenvolveu a doença e o outro não (chamados casais discordantes), os pesquisadores observaram, por modelos matema¡ticos (também chamados in silico), que moléculas MICA estavam aumentadas e as MICB diminua­das nos indivíduos infectados. Por outro lado, as MICB estavam aumentadas nos resistentes.

Um artigo com os resultados do estudo foi publicado no último dia 25 na plataforma MedRxiv, e ainda não foi revisado por outros cientistas. Para que o MICA e o MICB  possam agir, as moléculas por eles codificadas precisam se ligar a um receptor chamado NKG2D, localizada nasuperfÍcie das células natural killers (NK) e linfa³citos TCD8+, principalmente.

Quando isso acontece, hátivação de células do sistema imune, com a produção de fatores inflamata³rios para combater a infecção, principalmente o IFN- Ï’, e liberação de protea­nas “ta³xicas”, culminando com a morte das células infectadas.

As células NK fazem parte do sistema imune inato e sua função principal éreconhecer o pata³geno invasor e destrui-lo rapidamente. A hipa³tese dos cientistas éque as moléculas MICA aumentadas sejam clivadas (cortadas) nasuperfÍcie celular infectada e passem para sua forma solaºvel. Nessa mudança, elas podem “inibir” seu receptor e diminuir a atividade de células NK, facilitando o desenvolvimento da doena§a.

“No caso do MICB, épossí­vel que sua expressão diminua­da nos pacientes infectados possa, da mesma forma que o MICA solaºvel, contribuir para uma menor ativação de células NK e linfa³citos TCD8+ e uma menor resposta imune contra o va­rus ”, explica ao Jornal da USP Maria Lucia Carnevale Marin, pesquisadora do Laborata³rio de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) e do LIM19, do Hospital das Cla­nicas da Faculdade de Medicina da USP. Ela fez parte da equipe que interpretou os dados da pesquisa.

Outro complexo estudado foi o LRC (complexo leucocita¡rio humano), localizado em uma fração muito pequena do cromossomo 19. Apa³s as análises, os genes LILRB1 e LILRB2 estavam cinco vezes mais expressos nos infectados dos que nos não infectados. Essas são variantes que atuam como inibidores das células NK, ou seja, não protege contra a infecção.

Os casais discordantes passaram por um critanãrio de seleção ra­gido para serem inclua­dos no estudo. Além disso, repetiram o exame de sorologia para certificar que um deles não desenvolveu anticorpos contra o va­rus. Dos 100 selecionados, sete ficaram de fora da pesquisa.

“Podemos pensar, futuramente, se seria possí­vel aumentar a expressão do MICB com a ingestãode alguma droga, por exemplo, e ajudar as células de defesa a combaterem a infecção”, afirma a professora Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Canãlulas-Tronco (CEGH-CEL) da USP e coordenadora da pesquisa.

O estudo foi realizado em 2020, quando as variantes P1 e P2 do sars-cov-2 ainda não circulavam pelo Paa­s.

Mecanismos de ação

O complexo principal de histocompatibilidade (MHC) éconhecido por ser a regia£o mais varia¡vel do genoma humano e da maioria dos vertebrados. Algumas moléculas codificadas por genes desse complexo desempenham várias funções, como a de apresentar anta­genos para as células T e B citota³xicas do sistema imune, que identificam esse corpo estranho e iniciam a resposta imune contra eles.

Sa£o conhecidos como genes HLA cla¡ssicos de classe I (HLA-A, HLA-B e HLA-C) e classe II (HLA-DR e HLA-DQ). Em caso de transplantes, sua variabilidade pode se tornar um problema, pois a compatibilidade desses polimorfismos éessencial para que o novo órgão não seja rejeitado.

Já o MICA e MICB, especificamente, atuam como sinalizadores de estresse celular. Quando uma canãlula éinfectada, háum aumento da expressão desses genes, que interagem com receptores das células natural killer (células que apresentam uma resposta mais rápida contra infecções) e as ativam. Eventualmente, as NK conseguem destruir a canãlula infectada. “Por isso, são candidatos importantes a serem estudados em uma infecção pelo sars-cov-2”, explica Castelli.

O Complexo de Receptores Leucocita¡rios (LRC) écomposto por genes que, em sua maioria, codificam moléculas da familia das imunoglobulinas. “Além das diferentes sequaªncias dentro de cada um dos genes do sistema, existe mais uma complexidade: o indiva­duo pode ou não taª-los”, enfatiza Castelli. O LILRB1 e LILRB2, que estavam cinco vezes mais aumentados nos indivíduos infectados, são moléculas que inibem a ação das células natural killer e também poderiam contribuir para a diminuição da resposta imune contra o va­rus.

“a‰ importante ressaltar que a maioria das doenças não estãoassociadas a um aºnico gene”, explica Maria Lucia. “Eles fazem parte de um sistema complexo e uma ou outra molanãcula pode colaborar para a resistência ou suscetibilidade a uma infecção.”

O ina­cio

Mayana decidiu estudar casais discordantes quando dois conhecidos relataram um caso interessante. Ele foi infectado pelo novo coronava­rus e a parceira não, apesar de compartilharem o mesmo quarto. Intrigada, ela recorreu a s ma­dias impressa e televisiva com o objetivo de conhecer outras pessoas que passaram pela mesma situação.  Segundo ela, mais de 2 mil e-mails foram recebidos. Mateus Vidigal, bia³logo do CEGH-CEL e um dos autores do estudo, foi o responsável pela triagem e seleção dos voluntários. “Por questãode loga­stica, inclua­mos apenas casais moradores de Sa£o Paulo”, explica o pesquisador. 

Mayana relata  que os resultados preliminares surpreenderam os cientistas. “Tivemos uma diferença muito grande de gaªnero. O grupo dos suscetíveis era composto por 53 homens e 33 mulheres; entre os resistentes, estavam 29 homens e 57 mulheres.”

Na etapa seguinte, amostras de sangue dos voluntários passaram pela análise de exoma (conjunto de todas as regiaµes codificadoras osexons osdo DNA humano). “Vimos que essas variantes eram comuns na população de Sa£o Paulo”, explica a geneticista. Quando isso acontece, segundo ela, logo se deduz que devem ter muitos genes atuando na mesma condição.

Para realizar os estudos, seria preciso ampliar o estudo e selecionar de 20 a 30 mil pessoas. “Decidimos focar, então, em genes do sistema imunológico”, relata. “Entramos em contato com Erick Castelli, pesquisador do Departamento de Patologia Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, para que ele realizasse as análises dos exomas desses indiva­duos.”

Trabalhando com algoritmos

Castelli estuda genes dos sistemas MHC e LRC hábastante tempo e desenvolveu um modelo matema¡tico, junto com alunos de pós-graduação, capaz de analisa¡-los com mais precisão. Por causa da quantidade de variantes existentes, qualquer estratanãgia tradicional de investigação éincapaz de interpretar corretamente essas informações.

“Nosso manãtodo computacional utiliza algoritmos baseados em um banco de dados de sequaªncias já conhecidas de cada gene”, explica. “Ele corrige a montagem do sequenciamento e permite que a gente consiga ver variante por variante, e também qual éa sequaªncia que o indiva­duo tem em cada cromossomo.”

Com esses dados, épossí­vel predizer quais protea­nas essas variantes podem produzir. “Por isso, conseguimos comparar resistentes e infectados em diferentes na­veis”, relata. 

Futuro

“O que não sabemos ainda épor que existem moléculas que foram muito ou pouco expressas”, indaga Edanãcio Cunha Neto, professor da Faculdade de Medicina da USP. “As MICA podem estar sendo clivadas na membrana da canãlula, passam a circular no sangue e as células NK não conseguem reconhecer e fazer a interação com a canãlula infectada.”

Ainda, segundo Cunha Neto, sera£o necessa¡rios estudos in vitro (em laboratório) para validar os achados do modelo matema¡tico. “Devemos medir a expressão do MICA e do MICB nas células dos indivíduos suscetíveis e resistentes e estudar a resposta das células NK frente a  infecção”. 

 

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