Saúde

Como as mortes injustas da pola­cia prejudicam a saúde mental dos negros americanos
A pesquisa rastreia as maneiras como a discriminação racial causa um impacto fa­sico e psicola³gico
Por Christina Pazzanese - 15/05/2021


David R. Williams, de Harvard Chan, cuja pesquisa analisa como a discriminação afeta a saúde dos negros, apareceu no programa "60 Minutes" em abril. Cortesia da Harvard Chan School

Desde o assassinato de George Floyd pelo policial Derek Chauvin de Minneapolis, muitos afro-americanos relataram se sentir a s vezes oprimidos pelo trauma, angaºstia e indignação provocados pela morte de Floyd, bem como outros incidentes de violência policial contra vitimas negras. A frequência perturbadora desses eventos, e a cobertura incessante das nota­cias no ano passado, tem causado um grande estrago emocional.

Um estudo inanãdito em 2018 descobriu que um assassinato policial de um afro-americano desarmado causou dias de saúde mental preca¡ria para os negros que vivem naquele estado nos três meses seguintes - um problema significativo, dado que hácerca de 1.000 homicidios policiais anualmente, em média, com afro-americanos compreendendo um número desproporcional de 25% a 30% deles. O acaºmulo de dias dolorosos ao longo de um ano foi compara¡vel a  taxa experimentada por diabanãticos, de acordo com o autor do estudo, David R. Williams , Florence Sprague Norman e Laura Smart Norman Professora de Saúde Paºblica e presidente do Departamento de Assuntos Sociais e Ciências do Comportamento na Escola de Saúde Paºblica de Harvard TH Chan .

Williams, um dos principais especialistas em influaªncias sociais da saúde e professor de Estudos Africanos e Afro-Americanos e Sociologia na Universidade de Harvard, conversou sobre o que viu no ano passado, os efeitos fa­sicos e mentais da discriminação na vida dos negros e o que os indivíduos podem fazer para ajudar a mitiga¡-los.

Perguntas & Respostas
David R. Williams


Esta éuma nova área de investigação acadaªmica. O que vocêdescobriu atéagora sobre os va­nculos causais que as mortes por policiais tem na saúde mental dos negros?

WILLIAMS: O que procuramos fazer foi identificar se o assassinato de civis pela pola­cia teve efeitos negativos não apenas na familia da va­tima, parentes imediatos e amigos, mas na comunidade em geral. Analisamos todos os disparos policiais na Amanãrica durante um período de três anos [entre 2013-2015] e, em seguida, vinculamos isso, em um projeto quase experimental, com dados do CDC [Centros para Controle e Prevenção de Doena§as] sobre a saúde mental de a população em cada estado. E o que descobrimos foi que todo tiroteio feito pela pola­cia contra um negro desarmado estava relacionado a uma pior saúde mental para toda a população negra no estado onde o tiroteio ocorrera nos três meses seguintes.

Nãofoi todo tiroteio da pola­cia que fez isso. Se o negro estava armado, não houve efeito negativo na saúde mental do negro. Tambanãm não encontramos nenhum efeito de tiroteios policiais contra negros, armados ou desarmados, sobre a saúde mental de brancos nesses estados. E não encontramos nenhum efeito sobre a saúde mental dos negros em disparos de policiais contra brancos [desarmados]. Portanto, encontramos um efeito muito especa­fico. Achamos que étanto a percepção de ser injusto quanto a maior sensação de vulnerabilidade que isso cria.

Vocaª ficou surpreso com esses resultados?

WILLIAMS: a‰ uma descoberta impressionante e éa primeira vez que foi documentada dessa forma. Por outro lado, não étotalmente surpreendente. Ha¡ um corpo de evidaªncias emergindo que sugere que esses incidentes estãotendo um impacto negativo não apenas sobre os familiares [das vitimas], mas háuma comunidade mais ampla de luto; existe uma “ameaa§a” mais ampla para a comunidade; háum aumento mais amplo na vulnerabilidade pessoal que tem consequaªncias para a saúde mental. … Ainda estamos no começo da compreensão do que estãoacontecendo.

“… Nãoéapenas o que acontece nas coisas grandes, como na discriminação no trabalho ou nas interações com a pola­cia. Mas existem indignidades do dia-a-dia que prejudicam o bem-estar das populações de cor ... ”


Desde o assassinato de George Floyd em maio de 2020, tem havido um foco maior na violência policial e no racismo antinegro nopaís. Entre va­deo, a¡udio, análise de especialistas e conversas comuns, bem como atos de violência policial e intimidação de manifestantes Black Lives Matter, como vocêacha que este último ano afetou a saúde mental dos negros?

WILLIAMS: Nãofiz nenhum trabalho especa­fico sobre esse ta³pico especa­fico no ano passado, mas quero enfatizar que estamos lidando com duas pandemias. Por um lado, estamos lidando com a pandemia de injustia§a racial, capturada por tiroteios policiais. Mas também estamos lidando com a pandemia de COVID-19, que teve um impacto desproporcional e negativo nas populações de cor. Se vocêolhar os dados para a população afro-americana, para a população latino-americana, para a população nativa americana, para nativos havaianos e outras ilhas do Paca­fico, todas essas populações tem taxas de mortalidade de COVID-19 que são pelo menos o dobro dos brancos.

O impacto econa´mico da pandemia COVID-19 também foi muito mais severo em americanos pobres de todos os grupos raciais / anãtnicos, e em afro-americanos e latinos, em particular. Portanto, estamos olhando para populações que também estãolidando com na­veis elevados de estresse financeiro.

Existe vacina para o va­rus COVID 19, mas não existe vacina para a saúde mental. Portanto, como nação, como lideres comunita¡rios, como lideres de saúde pública, precisamos pensar sobre como fornecemos apoio e recursos e criamos os Espaços para ajudar as pessoas a lidar com o trauma, os sintomas emocionais e fa­sicos - ansiedade, desamparo, na¡usea , dores de cabea§a - que eles podem estar lutando.

Acredito que estamos vendo efeitos emergentes na saúde mental agora. A longo prazo, eu esperaria ver alguns efeitos fisiola³gicos adversos. Existe um conjunto de pesquisas - não fiz a maior parte delas, mas meu trabalho éconsistente com elas. Alguns cientistas usam o termo “envelhecimento acelerado”; em outros estudos, eles usam o termo "intemperismo biola³gico". O que esse conjunto de pesquisas nos sugere éque, nos Estados Unidos, os afro-americanos estãoenvelhecendo biologicamente mais rapidamente do que os brancos. Na mesma idade cronola³gica, os afro-americanos são 7,5 anos mais velhos ou 10 anos mais velhos, em média, em comparação com seus homa³logos brancos. Achamos que o que esse envelhecimento mais rápido e a deterioração fisiola³gica refletem éo acaºmulo de todas essas exposições negativas e estressantes no ambiente fa­sico, qua­mico e psicossocial.

Vocaª também estuda os efeitos que o racismo tem na saúde fisiola³gica negra. Vocaª desenvolveu uma escala amplamente utilizada para medir a exposição de uma pessoa a  discriminação cotidiana que vocêdiz ser altamente preditiva de problemas de saúde. O que vocêaprendeu atéagora?

WILLIAMS: As evidaªncias são claras de que a discriminação éimportante para a saúde. E não éapenas o que acontece nas grandes coisas, como na discriminação no trabalho ou nas interações com a pola­cia. Mas existem indignidades do dia-a-dia que prejudicam o bem-estar das populações de cor: com que frequência as pessoas agem como se vocênão fosse inteligente? Com que frequência as pessoas agem como se tivessem medo de vocaª?

Descobrimos o que chamamos em pesquisas cienta­ficas de “relação dose-resposta” entre o número de indivíduos estressores com pontuação elevada e o número de sintomas depressivos. Portanto, quanto mais doma­nios de estresse vocêestãoalto, mais altos são os na­veis de sintomas depressivos. Portanto, os relatos de discriminação estãoligados a uma pior saúde mental e também a na­veis mais baixos de envolvimento com o sistema de saúde. Pessoas com pontuação alta na [escala] de discriminação cotidiana tem menos probabilidade de seguir as recomendações de seu provedor [de saúde] em termos de triagem e testes de acompanhamento.

Uma revisão dos estudos de discriminação e sono descobriu que em todos os estudos, sem exceção, a discriminação estava associada a um sono mais pobre, tanto em quantidade quanto em qualidade. Tambanãm vemos na­veis mais altos de discriminação cotidiana associada ao aumento da obesidade. Vemos isso ligado a uma ampla gama de resultados de saúde ... diabetes incidente, doença cardiovascular incidente, câncer de mama incidente ... bem como uma sanãrie de outros indicadores subjacentes de doença crônica, como inflamação. Portanto, a evidência éclara: essas pequenas indignidades se somam e afetam os indiva­duos.

Uma revelação importante éque, embora os na­veis de renda e educação sejam motores influentes da saúde de todos os grupos raciais, eles fornecem menos proteção contra os efeitos negativos da discriminação para os negros.

WILLIAMS: Minha motivação para desenvolver a escala de discriminação cotidiana foi tentar entender o estresse da discriminação racial e a contribuição que ela traz para as disparidades raciais na saúde. Quando minha carreira começou, a maioria dos pesquisadores pensava que as diferenças raciais na saúde eram simplesmente uma função das diferenças raciais de renda, educação e status ocupacional. Para a maioria dos indicadores em a¢mbito nacional, as lacunas de saúde entre brancos com diploma universita¡rio e brancos com ensino manãdio incompleto émaior do que a lacuna preto / branco. E a diferença entre os afro-americanos entre os com educação universita¡ria e aqueles que não conclua­ram o ensino manãdio émaior do que a diferença entre negros e brancos. Portanto, a renda e a educação são importantes para a sua saúde, independentemente da sua raça.

Mas, ao mesmo tempo, a raça ainda éimportante. Aos 25 anos, por exemplo, os brancos em pior situação, em termos de expectativa de vida futura, [são] aqueles que não conclua­ram o ensino manãdio. Mas eles vivem 3,1 anos a mais do que os afro-americanos que não conclua­ram o ensino manãdio. A diferença aumenta a  medida que a educação aumenta, com uma diferença de 4,2 anos entre brancos e negros com ensino superior.

Ha¡ uma estata­stica impressionante nas análises que fizemos: os afro-americanos em melhor situação em termos de expectativa de vida aos 25 anos, aqueles com diploma universita¡rio, tem expectativa de vida mais baixa do que os brancos com diploma universita¡rio; tem menor expectativa de vida do que brancos com alguma educação universita¡ria; e tem menor expectativa de vida do que brancos que conclua­ram o ensino manãdio. [Isso] nos diz que hálgo profundo sobre renda e educação que impulsiona a saúde, independentemente de sua raça, mas hálgo mais sobre raça que importa mesmo depois de levarmos em conta a renda e a educação. a‰ por isso que comecei a olhar para o que mais isso existe no ambiente social? O que significa ser negro em nossa sociedade e como isso influencia a saúde?

Além de impedir essas mortes por policiais e eliminar o racismo, que medidas as pessoas podem tomar hoje para proteger sua própria saúde mental e física?

WILLIAMS: O que a pesquisa mostra de forma bastante convincente éque a qualidade das relações sociais pode ter um grande impacto na redução dos efeitos negativos da discriminação e de outros tipos de experiências estressantes. Um estudoexaminou adolescentes afro-americanos com idades de 16, 17 e 18 anos e mediu a discriminação relatada por esses adolescentes. As criana§as que [pontuaram] consistentemente alto na discriminação relatada aos 16, 17 e 18 tinham na­veis mais altos de horma´nios do estresse - cortisol, epinefrina, norepinefrina - na­veis mais altos de inflamação (protea­na C reativa), IMC [andice de Massa Corporal] mais alto, e pressão arterial mais alta aos 20 anos, não aos 30 ou 40 anos. No entanto, essa associação foi completamente apagada, não éevidente, entre aqueles adolescentes que tinham relacionamentos bons e de apoio com seus pais, professores e colegas. Portanto, a qualidade dos laa§os sociais parece ser uma estratanãgia eficaz para reduzir todos ou pelo menos alguns dos efeitos negativos da discriminação. Construir esse senso de comunidade éimportante.

Outro recurso que éparticularmente poderoso na comunidade afro-americana éa religia£o: um estudo nacional de negros americanos descobriu que na­veis mais elevados de envolvimento religioso, conforme medido pela frequência a  igreja, por maior contato de apoio com membros de sua comunidade religiosa e por “buscar a orientação de Deus na vida cotidiana ”, essas três estratanãgias religiosas reduziram os efeitos negativos da exposição a  discriminação racial sobre a saúde mental.

Outro exemplo [vem de] um estudo feito entre as comunidades das Primeiras Nações no Canada¡, comunidades inda­genas. Como grupo, essa população teve uma das taxas mais altas de suica­dio de jovens do mundo. Mas os pesquisadores ficaram impressionados com o fato de que metade das quase 200 comunidades não teve nenhum suica­dio nos cinco anos anteriores. O que eles descobriram foi que aquelas comunidades que estavam envolvidas em contestar o governo federal do Canada¡ sobre direitos de tratado, sobre o controle de seus servia§os paºblicos (suas escolas, cuidados de saúde, etc.), e que tinham lugares na comunidade onde suas tradições eram celebradas , tiveram taxas mais baixas de suica­dio. Cada um desses indicadores - de protesto, defesa e empoderamento - foi associado a taxas mais baixas de suica­dio.

A entrevista foi editada para maior clareza e extensão.

 

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