Talento

Ultrassom de alta intensidade apresenta solução inovadora para a segurança e a qualidade de alimentos de origem animal
Tese vencedora do Prêmio CAPES propõe tecnologias não-térmicas como alternativas sustentáveis e aponta novos rumos para a indústria alimentícia brasileira
Por Gabriel Guimarães - 17/08/2025


Domínio público


Um dos grandes desafios da indústria de alimentos é equilibrar segurança sanitária, qualidade sensorial e impacto ambiental. Foi com base nesse tripé que o médico-veterinário Yago Alves de Aguiar Bernardo desenvolveu sua tese de doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), premiada como a melhor do país na área de Medicina Veterinária pelo Prêmio CAPES de Tese 2024. O estudo explora o uso de tecnologias não-térmicas, o ultrassom de alta intensidade (HIUS) e o dióxido de carbono supercrítico aplicadas ao processamento de alimentos de origem animal como leite, carne e pescado.

A proposta vai ao encontro de uma demanda crescente por métodos que preservem a qualidade dos alimentos sem agredir o meio ambiente. “Os processos térmicos tradicionais, embora eficazes, apresentam altos custos energéticos e não atendem às exigências dos consumidores por soluções limpas e sustentáveis”, explica o pesquisador. A escolha pelas tecnologias emergentes não foi por acaso: ambas já são conhecidas por sua versatilidade e potencial de aplicação em diferentes etapas da cadeia produtiva, mas ainda carecem de estudos que comprovem sua eficiência e viabilidade em larga escala.

Um novo olhar sobre o processamento de alimentos

A tese High-intensity ultrasound and supercritical carbon dioxide in the safety and quality of animal-origin products investigou como o ultrassom de alta intensidade e o dióxido de carbono supercrítico podem substituir ou complementar métodos convencionais. Bernardo trabalhou com diferentes matrizes alimentares — leite caprino, carne bovina e pescado — em contextos distintos, avaliando desde a inativação de patógenos até a conservação e a melhoria da textura dos produtos.

“O ultrassom tem uma gama muito ampla de aplicações. Pode ser usado para amaciamento de carnes, inativação de microrganismos, secagem, descongelamento e até na intensificação de processos como a extração de compostos bioativos”, afirma. A técnica se baseia no fenômeno da cavitação, que ocorre quando ondas sonoras de alta frequência formam e colapsam microbolhas em meio líquido, gerando efeitos físicos e químicos que destroem estruturas celulares.

No leite, a aplicação do HIUS mostrou-se eficaz na eliminação de bactérias patogênicas como a Escherichia coli O157:H7, que faz parte do grupo dos coliformes fecais. Bernardo destaca que o processo de termossonicação (combinação de ultrassom com temperaturas moderadas) foi capaz de promover a inativação completa do patógeno. “Os danos causados à membrana celular e ao material genético impedem que essas bactérias se multipliquem, o que garante um alimento mais seguro ao consumidor”, explica.

Mecanismos invasivos do ultrassom. A aplicação do ultrassom em um meio líquido, como o leite, resulta na (1) formação de microbolhas na superfície do líquido. Essas microbolhas crescem e iniciam movimentos de expansão e compressão, conhecidos como (2) cavitação. A cavitação (3) divide e colapsa a bolha, gerando (4) ondas de choque que (5) percorrem o meio líquido. A propagação da onda de choque causa perturbação na célula, induzindo (6) o colapso da parede celular e alterando a permeabilidade, resultando na liberação de conteúdo citoplasmático (7). Além disso, o colapso das microbolhas leva a (8) altas temperaturas locais (pontos quentes) e resulta na geração de (9) radicais altamente reativos, que se recombinam e entram na célula na forma de peróxido de hidrogênio, (10) danificando o DNA.

Tecnologia amacia e conserva sem agredir o meio ambiente

Além do leite, a carne bovina também foi um foco importante da pesquisa. O uso do ultrassom para amaciar cortes normalmente mais duros mostrou resultados expressivos ao provocar o enfraquecimento das fibras musculares e a ativação de enzimas naturais, como as calpaínas. “O efeito miofibrilar do HIUS contribui diretamente para a maciez da carne, algo valorizado tanto pela indústria quanto pelo consumidor final”, ressalta o pesquisador.

Apesar do potencial, Bernardo reconhece que ainda há barreiras para a adoção da técnica em escala industrial. “A primeira é estrutural: ainda não há equipamentos de ultrassom projetados para operar com grandes volumes de carne. Também é necessário avaliar o custo-benefício, o impacto sensorial no produto final e, claro, a aceitação do consumidor”, pontua.

Outro destaque da tese é a aplicação do dióxido de carbono supercrítico na conservação de pescados. A tecnologia atua removendo a umidade e reduzindo a atividade de água dos alimentos, o que inibe o crescimento microbiano. “A secagem com CO2 supercrítico é muito mais rápida do que os métodos tradicionais e ainda preserva as características físico-químicas dos peixes”, afirma Bernardo. “Você estende a validade comercial sem comprometer a qualidade.”

Pesquisador e ultrassom na indústria alimentícia / Imagens de arquivo pessoal.

Sustentabilidade na prática

Um dos aspectos mais relevantes da pesquisa está em sua contribuição para uma indústria alimentícia mais limpa. Por não depender do uso de calor intenso, tanto o ultrassom quanto o CO? supercrítico reduzem significativamente o consumo de energia. “Essas tecnologias não geram resíduos tóxicos e não deixam subprodutos prejudiciais à saúde humana ou ao meio ambiente”, destaca o pesquisador. “Isso representa um avanço não só do ponto de vista científico, mas também social e ambiental”, complementa.

Os resultados indicam que essas tecnologias não-térmicas são eficazes, seguras e promissoras. No entanto, a transição para o uso industrial exige mais estudos em escala piloto, testes sensoriais e análises de viabilidade econômica. “Estamos diante de ferramentas que podem mudar a forma como produzimos alimentos, mas para isso precisamos de investimento em pesquisa aplicada e diálogo com a indústria”, defende Bernardo.

Ele reforça que as descobertas da tese não encerram o debate, mas abrem caminho para novas investigações, inclusive com fontes alternativas de proteína. “Já estamos dando continuidade à pesquisa com o uso de farinhas de inseto em produtos cárneos. O objetivo é continuar propondo soluções alinhadas às demandas contemporâneas por sustentabilidade e inovação.”

Reconhecimento e impacto

A conquista do Prêmio CAPES de Tese 2024 foi, para Bernardo, uma validação do esforço coletivo e da relevância do tema. “É um reconhecimento importante, que mostra que é possível produzir ciência de qualidade e com impacto direto na sociedade. Representa também o trabalho de todo um grupo que se dedicou a gerar conhecimento com responsabilidade”.

Durante o doutorado, Bernardo foi bolsista da CAPES e participou do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), o que possibilitou experiências internacionais que ampliaram sua formação acadêmica. “O apoio da CAPES foi fundamental. Pude me dedicar exclusivamente à pesquisa, aprofundar os estudos e contribuir de forma mais efetiva para o desenvolvimento científico.”

Com uma abordagem multidisciplinar, a tese se insere em um campo estratégico para o Brasil, grande produtor e exportador de alimentos. Ao propor soluções sustentáveis, eficientes e seguras, o estudo oferece subsídios concretos para a modernização da indústria alimentícia e aponta alternativas viáveis para um futuro com alimentos mais saudáveis e menor impacto ambiental.

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Yago Alves de Aguiar Bernardo é pós-doutorando em Ciência de Alimentos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2023-2025). Doutor em Medicina Veterinária (Hig.Veter.Proc.Tecn.Prod.Orig.Animal) pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com período Sanduíche na Università degli Studi di Padova (2020-2023), e Prêmio CAPES de Tese na área de Medicina Veterinária (2024). Atualmente é bolsista de Pós-Doutorado Nota 10 da FAPERJ na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Colaborador na linha de pesquisa de Métodos não-térmicos aplicados em alimentos no Laboratório de Análises Avançadas em Bioquímica e Biologia Molecular (LAABBM) e no Núcleo de Análise de Alimentos do Laboratório de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico (NAL-LADETEC), ambos na UFRJ. No Mestrado adquiriu experiência na área de Vigilância Sanitária de Alimentos, no estudo e avaliação de metodologias (sensoriais e instrumentais) para avaliação de qualidade de peixe, com ênfase em método de índice de qualidade (QIM) e análise de perfil de textura (TPA). No Pós-doutorado atua como pesquisador nas linhas de tecnologias não-térmicas e desenvolvimento de produtos cárneos utilizando insetos comestíveis, além de orientar alunos de iniciação científica, Mestrado e Doutorado.

 

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