Tecnologia Científica

Alimentos são melhorados a partir de resíduos do pescado
Pesquisadores utilizam componentes encontrados em caranguejos, peixes e algas para melhorar a qualidade dos produtos da pesca
Por Kevin Alencar - 19/09/2019

Foto: Viktor Braga/UFC
Os pesquisadores desenvolveram um filme para revestir e preservar o pescado

Imagine que vocêtenha comprado um filéde peixe e decidiu guarda¡-lo no congelador para são depois usa¡-lo, mas acabou lembrando dele apenas alguns meses depois. O normal éque, após tanto tempo, a carne tenha perdido suas qualidades e não possua mais a mesma suculaªncia ou atéo peso de antes, devido ao processo de deterioração e a  atividade de micróbios.

Para solucionar esse problema, pesquisadores do Laborata³rio de Tecnologia do Pescado (LATEPE) da Universidade Federal do Ceara¡ tem desenvolvido revestimentos e filmes feitos a partir de moléculas encontradas nos pra³prios pescados e em seres marinhos como algas. Envolto por essas molanãculas, o mesmo filéde peixe, por exemplo, teria uma carga microbiana duas vezes menor que a normal e, consequentemente, maior durabilidade.

Essa sobrevida dada ao alimento, com o aumento do tempo de  armazenamento e a melhora da qualidade do produto, ocorre por conta das moléculas utilizadas pelo laboratório: a partir de componentes como quitosana, gelatina e cola¡geno épossí­vel produzir revestimentos e filmes que tenham atividade antimicrobiana, evitem a perda de águada carne ou ainda que sejam antioxidantes.

“No congelador, o pescado perde águapor sublimação [mudança de estado sãolido para gasoso, sem passar pelo la­quido], e o filme ou o revestimento pode ser a camada protetora que evita essa perda de a¡gua. Se ele perder a¡gua, perde suculaªncia, peso e qualidade”, explica o coordenador da pesquisa, Prof. Bartolomeu de Souza, que  comanda o Programa de Pa³s-Graduação em Engenharia de Pesca.

Outro problema que os revestimentos podem evitar éo da oxidação lipa­dica (ou seja, das gorduras), um dos principais processos de degradação dos peixes, que resulta em alterações de cor, cheiro e valor nutritivo. Oxidado, um pescado perde a capacidade de ser consumido, uma vez que pode atéproduzir compostos ta³xicos prejudiciais a  saúde.

“O pescado éextremamente pereca­vel, devido a uma alta atividade de águae um alto grau de insaturação dos a¡cidos graxos, podendo essas alterações ocasionar possa­veismudanças na coloração do filanã. Se o pescado for gordo, ele vai deixar de ser branco e ficar amarelado”, exemplifica o pesquisador. “Quando revestimos o pescado com essa solução [desenvolvida no LATEPE], se ela possuir atividade antioxidante, vai reduzir esse problema.”

SUSTENTABILIDADE


A pesquisa baseia-se na utilização de subprodutos da indústria pesqueira, como casca de caranguejo, escama da tila¡pia e resíduos do camara£o. Com isso, há criação de um ciclo sustenta¡vel de produção, já que esses subprodutos, que seriam provavelmente descartados, acabam retornando a  indústria na forma de melhorias para os pra³prios pescados. Além disso, o laboratório também faz prospecção de moléculas em algas originadas de cultivo.

No caso do caranguejo, por exemplo, a casca éprocessada, resultando na produção de uma farinha. Dessa farinha, são removidos todos os minerais, protea­nas e pigmentos, para se chegar a  quitina. Por meio do processo de desacetilação (remoção do grupo qua­mico acetila), a quitosana éproduzida para finalmente servir como base para o revestimento em que o filéde peixe serámergulhado. Quitina e quitosana são polímeros ata³xicos e biodegrada¡veis.

Foto: Viktor Braga/UFC
A principal molanãcula usada na produção dos filmes éa quitosana 

O grau de desacetilação (que atualmente estãoem 92%, pela pesquisa do LATEPE) éimportante para definir a forma como o revestimento vai atuar no pescado. “Quanto maior o grau, melhor vai ser o filme. Ele vai ser menos solaºvel em águae vai ter melhor atividade antimicrobiana”, ressalta Diego do Vale, doutorando e integrante da pesquisa.

Outro exemplo éa produção de filmes a partir da escama da tila¡pia, da qual éextraa­da a gelatina, espanãcie de pa³ fino. Apa³s a caracterização tanãrmica e química desse componente, os pesquisadores produzem o filme que revestira¡ o pescado. Assim como a quitosana e as outras moléculas pesquisadas, a gelatina também écomesta­vel, não trazendo qualquer prejua­zo ao consumo do pescado.

MERCADO


A vantagem da pesquisa do LATEPE ‒ desenvolvida em parceria com a EMBRAPA Agroindaºstria Tropical e com o Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da UFC ‒ torna-se evidente pelo retorno econa´mico e produtivo para a indústria pesqueira, mas são muitos os passos atéque o revestimento chegue de fato ao mercado. “Temos que buscar os resíduos, extrair deles as molanãculas, caracteriza¡-las quimicamente e são então produzir o filme”, detalha o Prof. Bartolomeu de Souza.

Além disso, hádiferentes caracteri­sticas que podem ser exploradas em cada molanãcula. “Se eu quero que o alimento não perca a¡gua, o filme deve ter baixa permeabilidade ao vapor de a¡gua. Se quero que não passe oxigaªnio pelo filme para o alimento, deve haver baixa permeabilidade ao oxigaªnio. Além disso, épreciso avaliar a cor, solubilidade, atividades antioxidantes e antimicrobianas”, diz.

Foto: Viktor Braga/UFC
A equipe do LATEPE, coordenado pelo Prof. Bartolomeu de Souza (a  esquerda), éformada por alunos da graduação e pós-graduação.

Um dos pra³ximos passos da pesquisa seráa tentativa de diminuição do custo de produção, sem a perda de qualidade já alcana§ada com os materiais desenvolvidos. Para tanto, uma revisão da quantidade de reagentes empregados nos revestimentos devera¡ ser feita.

Além disso, uma nova aplicação da pesquisa estãoplanejada, com a utilização da quitosana em conjunto com outra molanãcula, a carragenana, extraa­da de macroalgas. A ideia éproduzir um nanofilme que possa servir como revestimento para o filéde atum, com camadas intercaladas, utilizando as caracteri­sticas das duas moléculas para também reduzir o crescimento de bactanãrias no pescado.

Pelo menor custo de produção, a expectativa éque o novo nanofilme possibilite uma maior adesão por parte da indaºstria. A quantidade de meses de sobrevida que o revestimento podera¡ garantir ao pescado na prateleira, poranãm, éalgo que deve ser constatado apenas ao fim da pesquisa, previsto para 2021.

 

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