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Pesquisadores da Unicamp publicam estudo pioneiro sobre ancestralidade gena´mica de pacientes com anemia falciforme
Pesquisa liderada por Pedro Cruz mostra que diferentes herana§as gena´micas configuram formas especa­ficas de manifestaa§a£o da doena§a
Por Antonio Scarpinetti - 05/12/2019


Pedro e Ma´nica, do CBMEG, integram equipe que se dedica a estudo dos gla³bulos vermelhos na Unicamp

A divergaªncia entre as herana§as genanãticas de grupos distintos de portadores de anemia falciforme foi a motivação do estudo de Pedro Rodrigues Sousa da Cruz, do Laborata³rio de Genanãtica Humana do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genanãtica (CBMEG) da Unicamp, publicado recentemente na revista Scientific Reports. Em cooperação com outros pesquisadores que se dedicam a essa mesma linha de pesquisa, Pedro analisou pacientes com anemia falciforme no Brasil e nos Estados Unidos e verificou diferenças nas origens ancestrais e o potencial impacto da história demogra¡fica na manifestação da doena§a, demonstrando que os achados genanãticos investigados em uma população especa­fica não necessariamente podem ser extrapolados para pacientes de uma nacionalidade distinta.

Os resultados da pesquisa foram categorizados em gena´mico e pontual. No a¢mbito gena´mico, observou-se que os pacientes das duas nacionalidades apresentaram proporções distintas de componentes genanãticos de origens africana, europeia e amera­ndia, bem como de representatividade de regiaµes geogra¡ficas africanas na composição ancestral. No a¢mbito pontual, isto anã, na regia£o em que o alelo HbS estãolocalizado, no cromossomo 11, essa diferença na composição se manteve entre as populações. Na análise do genoma total, excluindo-se os cromossomos sexuais, a amostra de pacientes brasileiros apresentou uma constituição geral média de 43% de origem africana, 45% europeia e 10% inda­gena, contra 78%, 19% e 1,5%, respectivamente, da população estadunidense avaliada.

Além disso, as origens por regia£o africana também diferiram entre as duas amostragens. Brasileiros apresentaram um componente genanãtico do oeste e sul africano, presumivelmente do tronco Bantu, responsável por dois tera§os da origem africana. Em pacientes estadunidenses tal componente responde por metade da origem dos indiva­duos, enquanto um componente do oeste africano, provavelmente do tronco Mandanã, éresponsável pela outra metade. Os achados, conforme explica Pedro, estãode acordo com os registros do tra¡fico negreiro e ressaltam a importa¢ncia da análise de aspectos da demografia e origem da mutação em cada população para compreender mais a fundo as formas de manifestação da doena§a. No plano local, restrito ao cromossomo 11, pacientes brasileiros apresentaram origens 44% africana, 39,3% europeia e 16,7% inda­gena em média, enquanto pacientes americanos apresentaram, respectivamente, 76%, 18,3% e 5,7%, portanto mantendo a diferença também localmente.

Na regia£o mais próxima a  mutação causadora, destaca-se um ponto de grande divergaªncia na ancestralidade nas duas populações. Muitos pacientes brasileiros apresentaram ali um pico incomum de herana§a europeia acompanhado de sinais de seleção natural. “No ponto em que o gene que causa a anemia estãolocalizado, os brasileiros apresentaram uma queda abrupta da herana§a africana e um aumento acentuado da herana§a europeia. Isso éum evento que se chama introgressão e érelativamente raro de acontecer de uma forma tão clara”, explica Pedro.

O pesquisador observou, por meio de diferentes a­ndices, que háevidaªncias de um fena´meno de seleção natural que motivou a análise mais aprofundada da localidade. Foi constatada a associação entre a regia£o analisada e a produção de hemoglobina fetal, a qual impacta positivamente sobre o prognóstico de vida dos pacientes com anemia falciforme. Isso acontece, provavelmente, porque esta hemoglobina não éafetada pela doença e, quando em na­veis aumentados, melhora a qualidade de vida dos pacientes, sendo inclusive alvo do tratamento.

“Na³s vimos que os indivíduos brasileiros tem uma importante herana§a europeia nessa regia£o gaªnica, possivelmente relacionada a  produção de hemoglobina fetal. Uma hipa³tese, que precisa ser comprovada, éde que algum grupo de europeus possua­a uma produção alta de hemoglobina fetal e, ao haver miscigenação, foi vantajoso para os falciformes ter essa regia£o que promove o aumento da hemoglobina fetal”, afirma o pesquisador.


Para a realização do estudo, foram analisados os dados genanãticos de indivíduos brasileiros, provenientes dos estados de Sa£o Paulo, de pacientes atendidos no Hemocentro de Campinas;  de Pernambuco, pacientes atendidos na Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (HEMOPE); e do estado da Pensilva¢nia, nos Estados Unidos, onde foi estabelecida uma parceria com o The Children’s Hospital of Philadelphia, local em que Pedro realizou esta¡gio quando era doutorando no Programa de Pa³s-Graduação em Genanãtica e Biologia Molecular da Unicamp.

A professora Ma´nica Barbosa de Melo, pesquisadora do CBMEG, que foi orientadora de Pedro e também assina o artigo, aponta que o estudo ressalta a necessidade de se aprofundar o olhar sobre a ancestralidade gena´mica, pois, esta, além de nos permitir compreender melhor o processo demogra¡fico que permeia a formação de nossa população, pode revelar caracteri­sticas únicas que, no caso deste trabalho, estãoassociadas a uma doença na população brasileira. “Este éo primeiro estudo no Brasil, e dentre os pouqua­ssimos emnívelmundial, que aborda a ancestralidade gena´mica destes pacientes”.

Anemia falciforme

A anemia falciforme éa mais grave entre as doenças falciformes. Embora não haja dados precisos, estima-se que entre duas e três mil criana§as com doença falciforme nasa§am a cada ano no Brasil. A doença se caracteriza por uma alteração na forma dos gla³bulos vermelhos do sangue, as hema¡cias, que são responsa¡veis pelo transporte de oxigaªnio pelo corpo. Por ficarem com formato semelhante a uma foice, a doença recebeu o nome de falciforme. O Acidente Vascular Cerebral (AVC), a aºlcera de perna, priapismo, necrose avascular da cabea§a do faªmur, hipertensão pulmonar, retinopatia e crises de dor são algumas das consequaªncias enfrentadas pelos pacientes com a anemia falciforme, cuja expectativa de vida varia entre 40 e 50 anos devido a  gravidade da doena§a.

Na Unicamp, um grupo de pesquisadores se dedica ao estudo da anemia falciforme e demais doenças que afetam os gla³bulos vermelhos. O professor Fernando Ferreira Costa, também autor do artigo publicado na Scientific Reports, coordena o Projeto Tema¡tico financiado pela Fundação de Amparo a  Pesquisa do Estado de Sa£o Paulo (Fapesp) que deu origem a  pesquisa conduzida por Pedro. Fernando, juntamente a outros pesquisadores, lidera o grupo de pesquisa sobre hemoglobina no Centro de Hematologia e Hemoterapia da Universidade, que oferece diagnóstico, tratamento e acompanhamento de pacientes falciformes e portadores de outras doenças genanãticas que alteram a hemoglobina, as denominadas hemoglobinopatias.

“Sa£o vários pesquisadores trabalhando com a mesma doença sob diferentes aspectos: celulares, genanãticos, bioquí­micos, e sua associação com as caracteri­sticas cla­nicas dos pacientes”, observa Ma´nica. Os levantamentos e pesquisas realizados pela equipe culminam na compreensão melhor sobre as doenças falciformes, e tanto Pedro quanto Ma´nica anseiam seguir com os estudos para que futuramente haja uma aplicação direta que impacte sobre a qualidade de vida desses pacientes.

“Na³s conseguimos acrescentar um pouco ao entendimento da doena§a, achar uma regia£o que tem um papel importante na regulação da hemoglobina fetal e existe ainda um grande trabalho a ser feito para entender o que essa regia£o de fato faz. Acaba sendo um ini­cio para novas explorações”, finaliza Pedro.

O estudo, que conta também com autoria de pesquisadores do Departamento de Genanãtica Manãdica da Faculdade de Ciências Manãdicas da Unicamp, da Universidade Federal de Pernambuco; do HEMOPE e do The Children’s Hospital of Philadelphia (EUA).

 

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